domingo, abril 30, 2006

3 POEMAS


Um Amor

Quando ela entrou na minha vida,
O seu corpo, não apenas a voz,
era receptáculo do mais doce mel.
Com o passar do tempo,
ela foi soltando as abelhas.


O Espectador e a Atriz

Sempre que vejo a atriz sozinha em cena,
me lembro daquele filme de Buster Keaton.
E tenho vontade de penetrar na tela.



Drummond revisitado

Ah, este choro de Pixinguinha,
esta cerveja mofada de gelo,
me deixam comovido como o diabo.
E eu nem preciso olhar a lua.

quarta-feira, abril 26, 2006

SOBRE UM BENFEITOR DA HUMANIDADE


Este artigo foi publicado num jornal de Natal em 5/7/1987. É aqui republicado com mínimas alterações de datas, nomes de filmes e de linguagem.
Numa longa entrevista ao jornalista Giovanni Grazzini (transformada no livro Fellini - Entrevista sobre o Cinema), Fellini, em mais de uma ocasião, refere-se ao ator cômico como um benfeitor da humanidade. Para ele, esses artistas que possuem o talento de fazer as pessoas se aliviarem de suas cargas de sofrimentos e tensões com a liberação do riso reparador, são tão importantes para o destino da humanidade, quanto um cientista que se dedica ao trabalho de descobrir a cura de uma enfermidade letal. Pode-se até presumir que a admiração do cineasta italiano por esses atores encubra uma certa inveja pelo bem que eles fazem ao espectador, quando ele revela o desejo de ter nascido para fazer rir.
O ano de 1987 assinala o trigésimo aniversário da morte de um desses benfeitores da humanidade - um dos maiores. Foi em 1957 que faleceu Oliver Hardy, que se tornou conhecido e amado em todo o mundo como "O Gordo". Estava afastado da tela há seis anos, desde A Ilha da Bagunça, que marcou a aposentadoria da maior dupla que teve o cinema, em cujo rastro inúmeras outras surgiram, até mesmo no cinema brasileiro. No ano anterior, O Gordo teve uma aparição episódica no filme de Capra, Nada Além de um Desejo, com Bing Crosby. Mas o seu nome não apareceu nos créditos.
Os dados biográficos do Gordo dão-no como tendo abandonado o curso de Direito, para abrir um cinema. E impressionado com o trabalho dos atores, resolveu tentar a interpretação. É em 1914, como "Babe" Hardy, que o seu nome aparece pela primeira vez numa tela, no filme A Tango Tragedy. Os fãs de cinema teriam que aguardar treze anos anos para vê-lo ao lado de Stan Laurel, "O Magro" , em 45 Minutes from Hollywood, iniciando uma carreira que durou 23/ 24 anos. (Em 1921 eles atuaram em A Lucky Day. mas sem formarem uma dupla.) Ambos integravam a famosa equipe de Hal Roach, que os teve sob contrato até 1940. Nesse ano fundaram a sua própria companhia, "Laurel and Hardy Feature Produtions". Curioso: não produziram um só filme, preferindo excursionar pelos EUA com um show intitulado The Laurel and Hardy Revue, que era, invariavelmente, encerrado com um esquete da dupla.
Mais do que parceiros, Hardy e Laurel foram grandes amigos. Há quem assegure que a morte do Gordo foi causada, sobretudo, pelo desgosto de ver o amigo preso a uma cadeira de rodas, em consequência de um enfarte. Quando ele morreu, Paulo Mendes Campos (se não estou enganado) escreveu uma crônica em que dizia que não queria estar no lugar da pessoa que foi levar ao Magro a notícia da morte de Hardy. Até morrer em 1965, Laurel sempre cuidou para que nunca faltassem flores no túmulo do amigo.

domingo, abril 23, 2006

UM POUCO DA POESIA DE MOACY CIRNE



Em Caicó,
mel e rapadura,
apaixonei-me por Ava Gardner,
por Brigitte Bardot,
por Gilda, a que nunca houve.
Em Caicó,
mel e puxa-puxa,
o mundo e o Fluminense nasceram
para mim.
E eu ainda não conhecia Nevers.



O Cineclube Tirol,
aos sábados,
sabia
dos nossos sonhos solitários.
O Rio Grande,
aos domingos,
era mais do que um cinema.
Depois,
nos outros dias,
havia tempo para tudo:
para Sartre Camus ou Pessoa na Ponta do
Morcego,
jazz ou samba na casa dos amigos.
Havia tempo
para às 5 da tarde
passar na Universitária
beber um conhaque na Palhoça
ou em Nemésio
jogar conversa fora no Grande Ponto.
Havia tempo para ler
Zila, ouvir Tita vibrar com o ABC.
Havia tempo.


Do Iara Bar,
em Areia Preta,
sedentários
embalávamos o nascer do sol.
Os pescadores,
pastores do imprevisível,
conversavam com os peixes
azuis
da manhã.


Os poemas, sem título, como os demais, foram extraídos do livro Rio Vermelho, edição Fundação José Augusto/Departamento Estadual de Imprensa, 1998.

quarta-feira, abril 19, 2006

MARCAS DA VIOLÊNCIA (A History of Violence/2005)


Há neste filme de David Cronenberg (A Mosca, Gêmeos - Mórbida Semelhança) uma imagem que assinala o aprisionamento do personagem Tom Stall (Viggo Mortensen), em um passado, do qual não consegue escapar. É a cena em que Edie (a bela Maria Bello) observa da janela da sua casa o marido lutar contra os 3 homens que o vêm perseguindo. O enquadramento da cena faz uma parte da janela se assemelhar à forma de uma cruz - uma cruz que Tom terá de carregar talvez pelo resto da vida. Bem que ele tentou construir uma vida nova ao lado da mulher e do casal de filhos. Uma vida tranquila, relativamente feliz, gozando de uma boa situação financeira, até que uma tentativa de assalto em seu restaurante desperta os fantasmas do passado. Ao matar os dois assaltantes, Tom converte-se em um herói, cuja fama ultrapassa as fronteiras da pequena cidade. A sua exposição na mídia (uma crítica que o filme não perde a oportunidade de fazer), no entanto, irá abalar o relacionamento com a mulher e o filho adolescente, quando chega à cidade Carl Fogarty (Ed Harris, ótimo, como sempre), que tem contas a ajustar com Tom. (De um grande impacto o momento em que Carl tira os óculos escuros, pondo à mostra a horrenda cicatriz, causada por ferimentos que Tom lhe infligiu.) Há, pois, uma drástica mudança na relação do casal, depois da luta, quando, instado pela mulher, Tom revela , sucinto, o seu passado, inclusive o verdadeiro nome, Joey Cusack; e essa mudança fica bem evidenciada no ato sexual que eles praticam na escada da casa, em que o prazer é substituído pela violência, em oposição ao praticado no motel, antes de tudo aquilo acontecer.
Um filme excelente, repleto de grandes momentos, teria que terminar com um final de antologia. São três minutos sem uma única palavra, quando Tom/Joey volta para casa e dá com a família reunida à mesa de refeições. Ele tinha saído para reencontrar o irmão Richie (William Hurt),. Mais do que um reencontro, um ajuste de contas entre os dois, marcado pela violência e morte. Em vez de palavras, o silêncio, os rostos contraídos da esposa (vestida de preto, como se já se considerasse uma víuva) do filho, o gesto da garotinha, meio sorrindo para o pai e indo buscar um prato para ele. Há uma troca de olhares entre o casal, e a expressão ambígua da mulher, confrontando-se com a de um homem abatido pela vergonha e o sofrimento, transfere para o espectador a decisão do futuro daquela família.

domingo, abril 16, 2006

INFÂNCIA


Cine Infância

Charles Starrett se vestia de preto e colocava a máscara.
Tornava-se o Durango Kid para enfrentar o vilão.
Nos intervalos das brigas e dos tiroteiros,
Roy Rogers cantava e tocava violão.
Weismuller já não usava a diminuta veste de Tarzan,
mas o silaque de Jim das Selvas.
"Volte na próxima semana":
era uma ordem ao final de cada seriado,
e por sete dias roíamos as unhas,
para saber como o mocinho ia se livrar do perigo.
Tantos outros heróis, outras tantas aventuras
na tela da minha infância.
Tudo isso desapareceu.
Restou a saudade.


O Dentista da Minha Infância

Um homem bom o dentista da minha infância.
A voz carinhosa, os ditos brincalhões
eram formas de me atenuar o medo daquela cadeira.
Às vezes, ainda me presenteava com um bombom.
O meu dentista, hoje, é um homem frio e formal
e os seus honorários adoçariam a boca de milhares de crianças.

quarta-feira, abril 12, 2006

PERSONAGENS


Quando trabalhei em Fortaleza, de maio/72 a junho/74, tive como colega José Moura, tratado por Mourinha. Era o contínuo da Seção. De uma fealdade que chamava a atenção: corpo mal-ajambrado, olhos esbugalhados e o nariz torto despencando para a boca. Mas uma figura humana muito interessante, pronta para fazer parte de um texto de ficção. Uma de suas facetas era o de mudar o nome de alguns colegas. Não o fazia com todos, especialmente com os comissionados. Poucos dias depois que comecei a trabalhar na Seção, ele me achou com cara de Romualdo e assim me chamou durante os dois anos em que ali fiquei. Um colega, Esdras, foi por ele "batizado" de Luís. Mas nem sempre era bem-humorado. Tinha, às vezes, atritos com algum colega, sempre por questão de serviço. Eu fui um deles. Passamos uns dias sem nos falar, mas depois voltamos às boas. Duas ou três vezes deixou o birô dele e veio tirar dois dedos de prosa comigo. Numa delas, não me lembro a propósito de quê, começou a falar sobre a ex-esposa. Revelou que mantinham um bom relacionamento, se visitando regularmente. Pelo que depreendi das suas palavras, ainda conservavam, se não amor, um carinho especial um pelo outro. E se era assim, não entendi por que haviam se separado. E perguntei, não podendo conter a curiosidade: "Mourinha, e por que vocês se separaram"? E Mourinha, com um meio-sorriso, respondeu com a maior naturalidade. "Porque não gostava das comidas dela". Pode uma coisa dessa?
Tive outro colega de personalidade muito interessante, esse em Natal. Nestor guardava, parece que na carteira de cédulas, uma carta antiga, para afugentar algum colega que lhe viesse pedir um empréstimo. Mal o coitado terminava de falar, Nestor tirava a carta e o mandava ler. Naquele papel eram arroladas as justificativas para a sua recusa em não emprestar dinheiro. Não sei quais eram, nunca tive acesso à carta. Calvo, de volta de umas férias, apareceu de peruca. Foi uma diversão para todos. E ele contava por que, afinal, resolvera esconder a careca. Mas não usou a peruca por mais de uma semana, talvez nem isso. Um dia chega Nestor sem ela, e, do mesmo modo como procedera ao aparecer com a peruca, deu várias justificativas para deixar de usá-la. Era um fã dos faroestes italianos, na época em que estes estavam em voga. E quase sempre que assistia a um deles, vinha no dia seguinte me contar parte do filme, divertindo-se, às risadas, com as cenas inverossímeis. Adotou um outro nome, de origem espanhola, que não sei de onde foi desencavar: Don Martinez Y Algar. Usava-o quando era apresentado a uma pessoa e quando enviava um documento de serviço para algum colega. E certa vez, ao emitir um cheque, assinou Don Martinez Y Algar, em vez do nome de batismo. Segundo ele, por distração, mas creio que o fez por brincadeira.
Na minha cidade havia um barbeiro chamado Isaías. Como todo barbeiro que se preza, Isaías conversava mais do que o homem da cobra. Além de barbeiro, exercia, por vezes, as funções de leiloeiro nas festas religiosas. E se gabava de ser bom nessa modalidade. Uma vez eu e uns amigos estávamos num banco da praça principal, onde se realizava um leilão. Isaías não tinha sido convidado. Ele chegou perto da gente e começou a fazer críticas ao rival. Ao mesmo tempo, ensinava as regras para ser um bom leiloeiro. Em tudo aquilo havia a ponta de um despeito por ter sido preterido em lugar de outro.
Mas o que eu queria mesmo era falar de um fato , que o papai não se cansava de contar. Uma feita uma romeira entrou com o filho pequeno na barbearia de Isaías. O menino devia estar com o cabelo muito crescido e a mãe, certamente, não queria que ele fosse assim visitar São Francisco de Canindé, como os romeiros chamam o Santo de Assis. Isaías mandou a mulher se sentar e colocou o garoto na cadeira. Mal começou o trabalho, perguntou à mãe: "Que mal pergunte, vosmecê é de onde"? "De Teresina", respondeu a mulher. "De Teresina"? Como se a mulher tivesse dito que morava na lua, Isaías parou, virou-se para ela, com a tesoura na mão. e falou: "É verdade que lá tem uma devassidão danada"? E a mulher: "Meu senhor, eu não sei dessas coisas, não. Sou uma mulher casada, que vivo na minha casa". Isaías retomou o corte de cabelo e entrou noutro assunto.
Três personagens à procura de um ficcionista.

domingo, abril 09, 2006

"QUAL O FILME QUE VOCÊ GOSTARIA DE TER DIRIGIDO"?


Em 1953 uma revista da Itália fez essa pergunta a dez cineastas daquele país. Eis os diretores e, resumidamente, o filme escolhido por cada um, feito por outro de seus pares. Na verdade, apenas sete dos consultados responderam a pergunta exatamente como foi formulada. Pois Pietro Germi e Giuseppe de Santis disseram que queriam fazer de novo um de seus próprios filmes: Germi , "Caminho de Esperança", justificando que nunca desejou tanto fazer um filme como este, que ele achava que não poderia ser superado por qualquer outro que viesse a fazer: e De Santis, "Arroz Amargo" (aqui comentado há uma semana), por acreditar que, com a experiência que tinha adquirido (ATENÇÃO) , "... penso que agora não repetiria os erros que encontrei no meu original". E Visconti respondeu seco e lacônico: "Não acho que a pergunta seja interessante.
Agora os sete restantes. Alberto Lattuada, com a ressalva de ser difícil responder a pergunta, "porque equivale a perguntar a uma pessoa se desejaria ser outra", disse ser agradável para um diretor ter feito as obras-primas de Chaplin, Von Stroheim e Pabst, acabou optando por "A Marcha Nupcial" , de Stroheim. Rosselini escolheu uma obra de Chaplin, mas, curiosamente, nenhuma das maiores do criador de Carlitos. A sua escolha recaiu sobre "Luzes da Ribalta" (Limelight). Por que, ele mesmo se fez a pergunta e respondeu, "porque é a obra-prima de Chaplin". (Vá entender esses diretores, principalmente os maiores.) Vittorio De Sica escolheu "Dom Quixote", de Pabst, "porque está mais próximo daquele humorismo que tenho tentado, pelo seu bom gosto, pela sua vivacidade: tudo , naquele filme, é harmonioso e brilhante". Alessandro Blasetti, o mais velho de todos, que iniciou a carreira em 1930 (e trabalhou como ator em "Belíssima", de Visconti", interpretando a si mesmo), gostaria de ter feito "Due Soldi di Speranza", de Renato Castellani, um dos consultados. Castellani, que fez ainda uma versão de "Romeu e Julieta" , revelou que sua grande aspiração era dirigir um filme de Chaplin, acrescentando, no entanto, "que é uma felicidade não ter dirigido nenhum, porque, do contrário, não seria um filme de Chaplin". (E não seria mesmo.) Outro que escolheu "Due Soldi di Speranza" foi Luigi Zampa. Mario Soldati, ootro veterano, preferiu "O Anjo Azul", de Von Sternberg.
Não sei o motivo, a revista não informa, Fellini e Antonioni não deram a sua opinião.

quarta-feira, abril 05, 2006

ACHADO POÉTICO = Conto de Bartolomeu Correia de Melo (RN)

Afinal, se a vida se resolve/a poesia acaba (Hildeberto Barbosa Filho)

DIA desses, nos fundos da venda de Simão Curioso - mistura de bodega, oficina elétrica, botica de ervas e sebo malsortido - seu Leonel do Cartório, escrevente e poeta bissexto, cascavilhava prateleiras, atrás dalguma leitura. Mexia noutros livros quando, sem-que-nem-mas, aquele despencou. E ali restou, escambichado no assoalho, num abandono de fêmea entregue, mostrando a lombada encardida: TIGIPIÓ. Sabia daquela palavra, mas não assim escrita, somente cantada. Cantada numa gostosa marchinha, evocação dos blocos de longes carnavais, já quase aquietada nos confins da memória. Saudade dos idos tempos de estudos fora- de- casa,
haja quarent'anos... Queria que fosse tejipió - fala de índio gosta de jota - soando quase teje pior. Nome mesmo de troça suburbana, com sotaque recifense, bem chiado nos plurais: Pirilamposh de Tejipió. Dizer vaga-lumes pegava melhor, mas eram aqueles carnavais parnasianos... Navegando nos quantos lembrares, soletrava aquele pedaço de cantiga: "... os Corações Futuristas/Bobos em Folia/Pirilampos de Tejipió..."
E disso lhe chegava a lembrança - como tangida por vagos clarins, detrás duma cortina de confetes - uma cena sem data. Figura de muluta lazarina frevando no frege do corsol. Maneira e ligeira, trejeteitos de serpentina; requebros picando lantejoulas, como vestida de vaga-lumes. Bonita que nem flor de magnólia. Quiçá, algum dia, assim mesmo avistada na Rua da Aurora ou da Saudade...
Apanhou tal livro. Desemcapado, empardecido, coisa assim de quarta ou quinta mão. Edição antiga em papel barato; ainda de quando prefácio era proêmio. Herman Lima, autor cearense - gente mais rezadeira que foliona. Contos regionais premiados pela Academia... (roído de traça... de Letras. Na folha-de-rosto, em tinta-de-pena, com desjeitoso capricho, estava escrito: Terezinha X. da Silva / Recife, 19333. Adiante uma epígrafe ensinava: "Tigipió: frutinha agreste, pardusca e roliça, adocicada, mas ofensiva.podendo causar intensa embriaguez."
Voltou-lhe a passista, talvez nunca deveras avistada, numa incerta e movediça relembrança. Nos negaceios da dança, reviu-lhe a doçura trigueira, no jeitinho gracioso - quase venenoso - de sorrir e requebrar. Embora papa-jerimum, acudiu-lhe um nem-sei-que de pernambucanidade, feito arrupio escorrendo no tutano do espinhaço. Aquele bem-sentir de terr e povo - havido por nascença ou farnezim de simpatia. Coisa d' alma que chega, assim esquisita, arrupiando qual sopro de pifre, beliscando malencolias, qual acorde de pau-e-corda, a espritar os sentires, batendo fundo que nem toque de maracatu.
E a modinha reteimando no juízo: "...Pedro Dourado, Camelo de Ouro e Bebé/os queridos Batutas da Boa Vista/e os Turunas de São José..."
No aqui-acolá do livro, tinham rabiscado a lápis: Têca. Apelido bem cabido em cabrocha serelepe, raceada com cabinda e caeté. Noutras paisagens, nordeste arriba, tal nome perde esse dom. Fica mais pra cabocla fornida, quartos de jia e peitos de cabaça; olhar de espreita e sorriso de espera na cara de lua cheia. Com destreza para bilros e tino para temperos, mas sem ginga no passo nem frevura no sangue. Daí logo se engraçou na redondez da letrinha destraquejada. A cada três ou quatro folhas - decerto marcando paradas de na leitura - assentada na margem, lá estava: Têca. Pelo visto, coisa lida no enquanto doutras tarefas. Caixeira, copeira ou modista? Teria também sido ali deixado por sinal de marcação, aquele fiozinho de cabelo cacheado? Folheava, mais vendo que lendo. E se rindo de algumas notinhas curtas, na mesma caligrafia. Comentos singelos, pouco letradas, mas bem deleitosos. Belesa assim escrita, paxão assim também. Rabiscos de ligeiras contas, contando modestas despesas. Retalho de papel-de-carta com trecho de soneto copiado.
"E aceite, assim sem juras, esse amor/que apenas dura, intenso qual poema/enquanto passa, frágil como flor."
Num porém de ciumeira descabida, achou o terceto bisonho; praqueles tempos, até que meio indecente.
Pensares tornaram a revoar esquisitices. Tanto que, de novo e mais de pertinho, como que avistou a dita moça. Agora, sem fantasia, nem ruge ou batom, apartada e esquecida da folia. Imaginada na tardinha duma praça antiga, talvez esperando bonde. Corpo arrimado no tronco dum goitizeiro, pezinho despido em riba doutro calçado, sem dança nem lantejoulas, ainda por demais vistosa. Toda entretida, mexia sem dengo os beicinhos carnudos, na leitura do mesmo livro - Tigipió. Encantado nessa estranha presença, como em brando desvario, até sentia a brisa cheirosa a goiti ternurando nos cabelos dela. Reatinou-se e seguiu folheando. Com agrado, curiosava outras coisinhas. Achou pétala seca de rosa, mordiscada por dentes miúdos; notou manchinha de choro pingada em página mais penosa, além doutras pequenas deixas. Na folha final, um coraçãozinho desenhado; sem enfeites nem floreios, vazio de letra ou flecha. Como assim, livre e leve, falto de dores e ardores, também fosse o coração de Teca.
Nisso, bateu-lhe uma danada vontade de poesia. Um verso ainda bambo inchava o peito, já outro comichava no juízo. Aí, mais pelo ficado encanto dela, que mesmo por qualquer outra valia, enfim comprou tal livro. Num avexame ressabiado, mouco pras perguntas de Simão, nem esperou embrulho ou troco. Assim, meio que zonzo e maneiro, logo se botou pra casa. Andava anzolado, driblando os passante, abraçando o livro no peito, como escondesse segredo ou vergonha. Ladeira abaixo, encandeado nas cores da manhã, assobiava a musiquinha dos velhos blocos recifenses.
"...Príncipe dos Príncipes brilhou/Lira da Noite também vibrou/E o Bloco da Saudade/assim recordo aquilo que passou."
Rimas esquivas rodopiano na cabeça, adivinhava sonhares jamais acarinhados. Romoía um mesmo par de versos melindrosos, alma angustiada nas rebuscas da poesia. E contam que, derna disso, somente risca e rabisca. Pois nunca mais lhe acudiu qualquer versejo que assim baste pra dizer desse sofrido anseio. Diz-que se queixa que tais penares somente beiram insosso gozo, sem nunca acharem desafogo nem contento.
Vai daí que, no caso de algum dia, num sebo qualquer da vida, alguem como você, chegado à poesia, folheando um velho livro, lembrar coisas de antigos carnavais... Esconjure a tentação; não compre!
Pois periga serem amavios de musa parda, deusinha brega chamada Têca; dona do condão da desinquieta e fugidia inspiração... Tome tento nos malencantos de olhares que brilham como lantejoulas, sorrisos manhosos qual volteios de serpentina; promessa de afagos que arrupiam que nem clarins de frevo, suspiros cheirosos a lança-perfume...
E se recuide dos adocicados beijos, que trazem gosto - talvez efeito - de tejipió.
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Conto extraído livro Estórias Quase Cruas, Edições Bagaço, Recife/2002.

sábado, abril 01, 2006

ARROZ AMARGO (Riso Amaro/1949)



"Panela em que muitos mexem, ou sai insossa, ou sai salgada". Me lembrei desse antigo ditado, depois de rever, nesta semana, Arroz Amargo. Muitos mexeram no seu roteiro, seis ao todo, entre eles o diretor Giuseppe De Santis. Disso resultou um filme que chega a decepcionar. Feito no apogeu do Neo-Realismo, Arroz Amargo pretendia abordar a temporada de 40 dias das "mondinas", mulheres que, todos os anos, realizam o pesado serviço do cultivo de arroz numa determinada região da Itália. São mulheres de diversas profissões, mas que, sem conseguirem trabalho para exercer as próprias profissões, vão se submeter ao da monda de arroz, contratadas sem vínculo empregatício. Se digo "pretendia" é porque a meia dúzia de roteiristas preferiu deixar em segundo a denúncia do problema social da Itália do pós-guerra, uma das balizas da Escola Neo-Realista , para priorizar o enfoque no quadrilátero amoroso envolvendo Walter (Vittorio Gassman), Francesca (Doris Dowling), Silvana (Silvana Mangano) e Marco (Raf Vallone).
Quando o filme começa, Walter e Francesca formam o casal, ele fugindo da polícia pelo roubo de um colar, com a cumplicidade da amante. Depois que Walter e Silvana se conhecem, há uma atração mútua. Deixada de lado e decepcionada com Walter, Francesca se interessa por Marco, que, sem o perceber (ou fingir), cai de amores pela bela e sensual Silvana. Daí para frente, Arroz Amargo assume o drama amoroso que vai culminar com o final trágico de Silvana, que, traída na expectativa de um promissor futuro com Walter, comete suicídio. Se no ato de Silvana já paira a sombra do melodrama, este se instala de vez no final do filme, mostrando as mulheres, que não tinham bom relacionamento com Silvana, jogando punhados de areia sobre o cadáver dela e o estabelecimento da união entre Francesca e Marco, os dois caminhando um ao lado do outro.
Arroz Amargo marcou a estréia de Silvana Mangano no cinema. No frescor dos seus l8/19 anos, Silvana esbanja beleza e sensualidade. Com um short curto e bem colado ao corpo, delineando suas formas esculturais, além da beleza do rosto, ela é o principal atrativo do filme, assim como o foi Rita Hayworth em Gilda. O filme explora, como pode, os atributos físicos daquela que foi uma das 10 mulheres mais fascinantes do cinema, o que se torna mais um ponto negativo desse arroz mal cozinhado, embora, para o espectador, seja uma festa para os olhos.