terça-feira, julho 28, 2009

DIA DE CHUVA


Foto em ultrafolet.blogspot.com/

Há uma meia hora parara de chover, mas ele sabia que era apenas uma pequena trégua dada pela chuva, não demoraria muito tempo para ela voltar. Assim vinha sendo desde o início do dia. Levantou-se da cama, foi ao banheiro, urinou pouco, depois abriu a torneira. O contato da água com o rosto e as mãos o fez sentir mais frio. Ao voltar ao quarto observou, por um instante, as gotas da chuva congeladas no vidro da janela. Foi até lá. Pôs-se a olhar para a rua quase deserta naquela tarde que começava a escurecer. Um ou outro transeunte passava apressado, protegido por um casaco, o guarda-chuva preso no braço. Um ou outro carro, às vezes um ônibus, trafegava lentamente por entre as poças dágua. Dia horrível, pensou. Deixou a janela, sentou na cadeira de balanço e ligou a televisão. No canal passava um filme que já vira. Demorou-se uns cinco minutos, até a atriz , de que gostava (e, praticamente, o único atrativo que o fizera ver aquele filme anos atrás) desaparecer de cena. Outro canal apresentava um desses programas bobos e vulgares de variedades, mudou outra vez, havia um jogo de futebol. Os times não eram bons, ficou ainda menos tempo do que no canal do filme. Desligou a televisão. Pensou em ouvir música, mas logo desistiu da ideia. Permaneceu ali sentado, olhando sem interesse para a janela. Como previsto, a chuva voltava. O telefone tocou. Não havia mais ninguém em casa, mas não foi atender. O telefone parou, logo em seguida voltou a tocar. Ali preso à cadeira, vendo a chuva, que voltara intensa, molhar a janela, deixou-o dar as sete chamadas. Tinha certeza de que a pessoa iria tentar uma terceira vez e não deu outra. Ela liga e eu não atendo, disse com um arremedo de sorriso - quase uma careta. A pessoa desistiu. Levantou-se, dirigiu-se à cozinha, tomou meio copo dágua gelada que irritou levemente a garganta. A garrafa de café sobre a mesa. Tomou uns dois dedos de café, acendeu um cigarro e deu uma longa tragada. Sentiu algum prazer com a tragada. A chuva parecia ter aumentado de intensidade e, de repente, um raio clareou a cozinha. Afastou-se em direção ao combogó da área de serviço. As luzes dos postes da rua em frente já estavam acesas e através delas observou a chuva derramar-se sobre o calçamento. Terminou de fumar, jogou o cigarro no chão e o apagou com a sola da chinela. Retornava para o quarto quando o telefone tocou mais uma vez. Passou como um raio pelo telefone, como se este fosse um bicho repelente. Dessa vez deitou na cama. E ficou ouvindo o barulho do telefone, até a última chamada. Se for a mesma pessoa, não vai mais ligar, disse para si mesmo. Devia ser, pois o aparelho emudeceu. E ali na cama, o barulho que ouvia era o da chuva. Persistente, enervante. O apartamento mergulhou na escuridão. Como se a água da chuva tivesse invadido a janela e caído sobre os seus olhos, começou a chorar.


terça-feira, julho 21, 2009

UM POEMA PARA A ASPIRINA

O poeta João Cabral de Melo Neto (1920-1999) padeceu a maior parte de sua vida (desde os 16 anos, segundo Joel Silveira no livro "A Milésima Segunda Noite da Avenida Paulista", Companhia das Letras/2003) de uma dor de cabeça diária. Um mal de causa jamais diagnosticada nos inúmeros e minuciosos exames feitos por Cabral, conforme ele revelou a Joel em uma entrevista de 1971. "Minha cabeça e partes vizinhas, incluindo a garganta, já foram fotografadas de todos os ângulos e esmiuçadas nos mínimos detalhes. Mas a dorzinha continua a resistir bravamente e a esconder dos médicos os motivos por que dói. E por que dói? Minha opinião é que se trata de uma dorzinha de fundo neurótico". O jornalista, no entanto, se apressa a desmentir que o poeta seja um neurótico, pois "quem conversa com João Cabral não distingue nada que lembre um neurótico. A fala é mansa, os gestos parcos, a atenção total ao que lhe dizem".
Para combater a "dorzinha", Cabral converteu-se em um consumidor persistente da aspirina. Por anos a fio ingeriu diariamente um comprimido de hora em hora do medicamento. Já em 1971 a ingestão do analgésico diminuira para um comprimido de 4 em 4 horas. É de admirar que o poeta tenha vivido até quase os 80 anos, levando em conta os efeitos colaterais e as reações adversas no seu organismo que o remédio devia causar. E essa convivência diária e por longos anos com a aspirina, como se fosse ela uma mulher que lhe minorasse a dor da alma, fez com que Cabral escrevesse um poema sobre a aspirina - uma espécie de homenagem ao medicamento. O poema chama-se "Num Monumento à Aspirina" e integra o livro "A Educação pela Pedra", publicado pela Editora do Autor em 1966, que transcrevo a seguir.
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Num Monumento à Aspirina.
Claramente: o mais prático dos sóis,
o sol de um comprimido de aspirina:
de emprego fácil, portátil e barato,
compacto de sol na lápide sucinta.
Principalmente porque, sol artificial,
que nada limita a funcionar de dia,
que a noite não expulsa, cada noite,
sol imune às leis de meteorologia,
a toda hora em que se necessita dele
levanta e vem (sempre num claro dia):
acende, para secar a aniagem da alma,
quará-la, em linhos de um meio-dia.
*
Convergem: a aparência e os efeitos
da lente do comprimido de aspirina:
o acabamento esmerado desse cristal,
polido a esmeril e repolido a lima,
prefigura o clima onde ele faz viver
e o cartesiano de tudo nesse clima.
De outro lado, porque lente interna,
de uso interno, por detrás da retina,
não serve exclusivamente para o olho
a lente, ou o comprimido de aspirina:
ela reenfoca, para o corpo inteiro,
o borroso de ao redor, e o reafina.


terça-feira, julho 14, 2009

TIPOS POPULARES

Velho Guitarrista Cego
Óleo sobre madeira
Picasso (1903)
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Em toda cidade existem aquelas figuras que fazem o divertimento das crianças mais velhas e dos adultos movidos pela maldade. São, em geral, vindas das classes baixas, e o motivo que as as fazem vítimas dos outros é quase sempre um apelido que carregam desde a infância e com o qual nunca se conformaram. Mas entre esses pobres coitados há aqueles em que o móvel da brincadeira não é o apelido. É que em tais indivíduos há algo anormal, que se percebe num instante que eles não giram bem, e esse componente dá azo às brincadeiras que sofrem.
Nos meus primeiros anos em Natal conheci um desses tipos. A natureza não o favorecera. Pequenino, um tanto gordo, zarolho, e, para completar, carregava uma corcunda, quase como a do Quasímodo do Victor Hugo. O seu problema era com relação ao dia da semana. Assim: digamos que fosse uma segunda-feira. Quando ele passava, alguém às suas costas dizia, hoje é terça. Ele parava, se virava e dizia, na voz fanhosa, ora terça, hoje é segunda. Se o malvado insistisse que era terça, ele também insistia que era segunda, que terça seria no dia seguinte. Se a pessoa dissesse que era domingo, o coitado replicava na bucha, ora domingo, domingo foi ontem, hoje é segunda. Ele continuava a caminhada e mais adiante lá vinha outro para alterar o dia da semana e o coitado a dizer o dia correto.
Voltando ao apelido. Em Natal havia o Garapa, que não cheguei a conhecer, mas ouvi falar dele. Esse era agressivo, se o brincalhão não fugisse ou se escondesse, era certo levar uma bordoada de um pedaço de pau que ele portava. Houve uma vez em que vinham dois rapazes e, de repente, deram de cara com o Garapa. Eram dos que mexiam com o pobre homem, mas às suas costas, escondidos. Mas daquela vez ficaram os três frente a frente. Então, ao passarem pelo Garapa, um disse "água" e o outro acrescentou "açúcar". Apressaram o passo, mas Garapa os alcançou e então disse, brandindo o pedaço de pau: "Misturem, felas da puta. Misturem que eu quero ver".
Já cego Raimundo não tinha apelido, nem era alvo de brincadeiras, além de ser estimado pelas pessoas. Aparecia toda tarde no banco onde eu trabalhava e lá demorava um bocado de tempo. Vivia de vender bilhetes de loteria, mas dos funcionários poucos os compravam, preferiam lhe dar um dinheirinho. Media em torno de 1,50m, usava um chapeuzinho e não tinha guia. Poucas pessoas conheci tão alegres, tão bem humoradas, tão brincalhonas. Sua risada cheia, ruidosa, era a de alguém que vivia a melhor das vidas. Brincava com a própria deficiência visual. Quando lhe perguntavam se conhecia alguém, ele respondia "de vista". No passado fizera parte de um conjunto musical composto só de cegos. Tocava gaita. Uma gaita bonita que um colega meu lhe trouxera de uma viagem ao exterior. Por sinal, que uma das maiores emoções que senti na vida foi um dia em que indo a uma seção resolver um assunto, encontrei-o executando "Barril de Chope". Ao final, todos os presentes o aplaudiram.
Morreu aí pelo início dos anos 1980. Já deixara de aparecer no banco, pois a nova direção da agência proibira a presença de pessoas que nao fossem lá a não ser para negócios. Mas antes de morrer, cheguei a vê-lo algumas vezes andando ligeirinho, com o toquetoque da bengala. Falava com ele, que há muito tempo me reconhecia pela voz. E sempre eu saía satisfeito do nosso encontro.
Ah, sim, gostava de uma caninha e chegava ao banco já com algumas na cabeça.

terça-feira, julho 07, 2009

O CÉU DE SUELY (2006)



Se o vermelho é a cor predominante em "Gritos e Sussurros", de Bergman, neste filme de Karim Ainouz ("Madame Satã") é o azul em diversos matizes. Além do céu de Iguatu, cidade do interior do Ceará, a cor está presente nas paredes da casa da avó de Hermila/Suely (Hermila Guedes), em sua sacola, em uma peça de vestuário, na cabine de telefone público, em um brinquedo da criança. De um azul que parece pintado, expondo, às vezes, uma limpidez manchada por umas poucas nuvens (aplausos para a expressivamente bela fotografia de Walter Carvalho), uma forte claridade, o céu é uma presença constante no filme, primeiro como consequência de um fator climático, depois como se fosse um elemento de aproximação com o "céu" a que Suely aspira alcançar.

E que "céu" é esse? É a mudança para outro lugar, dessa vez em definitivo, no qual ela acredita em uma vida melhor. Deixara Iguatu com o namorado Mateus para morarem temporariamente em São Paulo e retornarem com uma situação financeira decente. Ela regressa com o filho pequeno, ficando à espera do namorado, que viria um mês depois para estabelecer um comércio de gravação de cd e dvd. Mas Mateus nunca irá voltar e aí começa a batalha de Hermila para conseguir o dinheiro necessário para atingir o seu objetivo.

Com o pulso forte do diretor, servido por um bem elaborado roteiro (do qual ele participa com mais dois roteiristas), o filme descreve essa batalha de Hermila, começando com a venda de bilhetes para uma fictícia rifa de um uísque, até ela própria ser o objeto da rifa, quando conhece Georgina (Georgina Castro), uma garota de programa. Tornam-se amigas e Hermila, que, antes, mantinha uma relação com o mototaxista João (João Miguel), segue os passos de Georgina, adotando o nome de Suely. Um dos muitos momentos bons de "O Céu de Suely" é o diálogo entre elas, quando Hermila indaga Georgina a respeito dos seus rendimentos. E aí observa-se a naturalidade das falas entre duas prostitutas (uma já iniciada, a outra por iniciar-se naquele tipo de profissão), que só podem chocar às pessoas de ouvidos puritanos. (Há, contudo, uma diferença entre as duas. Georgina é alegre, expansiva, chegada a um copo, e, que, se não chega a gostar da vida que leva, parece resignada a ela; enquanto Hermila, já como Suely, tem uma expansividade e uma alegria que não são naturais, mas impostas pela profissão.)

À menção desse diálogo, vale destacar que a maneira de falar dos atores de "O Céu de Suely" não contém a falsificação, resultante de um certo exagero e até alguma afetação, que se observa nas telenovelas que mostram personagens do Nordeste. Aqui o "nordestinês" é legítimo e isso se deve ao fato de o diretor e os intérpretes serem originários da região.

"O Céu de Suely" é um filme de muitas qualidades e, aparentemente, sem defeitos. As qualidades avultam até no fato de os personagens terem o mesmo prenome dos intérpretes, um recurso que o diretor utilizou pouco antes de começarem as filmagens, modificando o nome dos personagens já com o roteiro concluído, conforme se fica sabendo através dos depoimentos nos "Extras" do disco. À primeira vista, parece ser um mero detalhe, sem importância. Mas examinando-o melhor, tem, sim, a sua importância. Como diz um dos intérpretes (acho que João Miguel), essa irmanação dos nomes do ator e do personagem dá ao primeiro uma condição de intimidade com o segundo, de conhecê-lo melhor, e, assim, tornar mais produtiva a atuação.

O final apresenta um achado que faz manter a qualidade do filme - se não a elevar. Já no ônibus que a está levando de Iguatu, Hermila, com a expressão pensativa, relembra momentos de sua permanência na cidade. O ônibus é seguido por João, que, em dado momento, se emparelha ao veículo - ele e ela cruzam os olhares - depois volta a acompanhá-lo. Quando o ônibus e João desaparecem de vista, a câmera se fixa um minuto, um pouco mais, no letreiro exposto no semi-arco que se ergue na entrada e saída da cidade: "AQUI COMEÇA A SAUDADE DE IGUATU". A frase de apelo turistico pode também refletir um dilema no íntimo de Hermila, que está abandonando o torrão natal, o filho, a avó, a tia solteirona, a amiga. E, em consequência desse dilema, o espectador é tomado pela expectativa de se Hermila continua a viagem, ou se retorna à cidade com o mototaxista. Decorrido esse tempo, a expectativa é satisfeita.

E aqui eu paro. A fim de não entregar o desfecho desse belo "O Céu de Suely" àqueles que ainda não o viram.