quarta-feira, junho 25, 2008

CANTANDO NA CHUVA (Singin' in the Rain/1952)


Este texto foi aqui publicado em março de 2005. Resolvi republicá-lo como uma homenagem à atriz e dançarina Cyd Charisse, falecida na semana passada, que tem uma participação pequena, mas importante, no musical dos musicais Cantando na Chuva.
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Cantando na Chuva, de Stanley Donen & Gene Kelly, é o maior musical da história do cinema. Críticos e cinéfilos, creio, não têm dúvida quanto a essa afirmativa. Uma sucessão de belas músicas (principalmente a que dá título ao filme) e uma primorosa coreografia formam uma união
perfeita. Se não tivesse outros momentos inspirados de dança e música, Cantando na Chuva ainda assim se manteria no topo dos filmusicais, graças a duas sequências antológicas. A primeira, mais lembrada, é aquela em que Don Lockwood (Gene Kelly) canta e dança sob a chuva, que é uma das maiores seqüências já realizadas pelo cinema. A segunda, menos famosa, mas de grande brilho, é a dança de Kelly com a bela e sensual Cyd Charisse. É uma dança, inclusive, a que não falta um ingrediente de erotismo, não só por alguns movimentos, como pelo corpo da dançarina.
É preciso ressaltar, no entanto, que a grandeza de Cantando na Chuva deve-se também à sua adesão à comédia, até mesmo à comédia pastelão, na cena em que Katty Selden (Debbie Reynolds) atira uma torta no rosto de Lina Lamont (Jean Hagen), mas que era destinada a Lockwood. E entre os momentos mais engraçados está na pré-estréia do primeiro filme sonoro pelo estúdio onde trabalham Lockwood e Lamont. Aliás, na exibição do filme infiltra-se outro elemento que transcende o gênero musical, ou seja, as dificuldades e problemas enfrentados nos primeiros momentos em que o cinema começou a falar. Entre esses se destaca a voz de Lina Lamont, tão inadequada ao cinema sonoro que ela precisa ser dublada por Katty Selden. (A título de curiosidade: alguns atores do cinema mudo, por causa da voz, não se adaptaram ao cinema falado, sendo o caso mais célebre o de John Gilbert, que teve que abandonar a carreira, falecendo pouco depois.)
O elemento crítico estende-se ao cinema na sua função de magia, de ilusionismo, de escamoteação da realidade (observem-se a seqüência em que Don Lockwood leva Katty Selden para conhecer um "set" de filmagem, e a outra em que Lockwood e Lamont ensaiam uma cena de amor, em meio a um clima de hostilidade entre os dois.
Nessa junção de musical, comédia e crítica satírica ao cinema, Cantando na Chuva ultrapassa os limites do gênero e inscreve-se entre os maiores filmes de todos os tempos, realizado numa época em que o cinema americano, mesmo sem perder de vista o objetivo comercial, vivia uma grande fase criativa, tão distante do que acontece hoje em dia.

quarta-feira, junho 18, 2008

OS FILMES E SEUS MOMENTOS INESQUECÍVEIS

Woody Allen e Diane Keaton em Noivo Neurótico, Noiva
Nervosa (Annie Hall/1977)

Nos filmes a que assistimos guardamos deles momentos inesquecíveis. Pode acontecer que até um filme ruim contenha uma cena, um momento, um gesto de um ator, uma frase de humor, ou qualquer outra coisa, que nos fiquem para sempre na lembrança. Muitas vezes, a lembrança é reforçada por algo semelhante que vemos ou praticamos na vida real. Uma situação, um objeto, uma gargalhada, um rosto de uma pessoa que se pareça com o de um ator pouco conhecido, tudo isso e muito mais contribui para que um determinado filme (mesmo, repito, que não possua qualidades) se perpetue em nossa memória.

Todos os dias quando me levanto da cama, antes de fazer os asseios matinais, vou para a janela do quarto e fico um pouco olhando pessoas praticando o seu Cooper. Vêm algumas em grupos de três ou quatro, outras sozinhas, algumas trotando, até as que formam um casal. E é impossível não me lembrar de Noivo Neurótico, Noiva Nervosa, de Woody Allen. Numa cena, Woody e Diane Keaton estão num local, me parece que num parque, enquanto algumas pessoas fazem a sua caminhada diária. E Woody se dirige à noiva, comentando, em tom de ironia, sobre algumas delas, no modo de praticarem aquele exercício, não poupando nem os idosos, pelo empenho em preservarem a saúde e, com isso, fazerem retardar a chegada da morte.

Em O Selvagem da Motocicleta (Rumble Fish /1983), de Coppola, há uma cena em que o personagem de Mickey Rourke observa um aquário numa loja. Ao jovem irmão, que o ocompanha, ele se manifesta contra a situação dos peixinhos, aprisionados naquele espaço limitado, apartados do seu habitat. E à noite ele penetra na loja fechada para libertar os animaizinhos e devolvê-los à imensidão do mar, mas é flagrado pela polícia e acaba morrendo.

Pois bem. Durante um certo tempo freqüentei uma pizzaria, onde existe um aquário. Sempre ficava perto do aquário e cheguei uma vez ou outra a me sentar à mesa encostada a ele. E observando os peixinhos, me lembrava da cena e do personagem daquele filme.

Acontece, não raro, você encontrar no dia-a-dia uma pessoa que o faça lembrar um personagem de um filme. E nem é preciso que haja entre ambos uma semelhança física. Na década de 1960 passou em Natal Servidão Humana, de Ken Hughes/1964, baseado no romance de Somerset Maugham. Estrelado por Kim Novak e Lawrence Harvey, era a terceira versão realizada daquela obra. Havia aqui um homem de seus trinta e tantos anos (deve ter morrido, ou mudou de cidade, pois nunca mais o vi), que sofria de um problema numa perna, que o levava a andar mancando. O personagem de Lawrence Harvey carregava o mesmo aleijão. Fora isso, não havia a mínima semelhanca entre o ator e o homem comum. Mas o defeito físico de ambos fazia com que um amigo meu se lembrasse de Harvey (e, claro, do filme) e comentasse o fato comigo toda vez que encontrávamos o coitado, o que ocorria com freqüência.




quarta-feira, junho 11, 2008

TUDO PASSA - E DEPRESSA

Este espaço é hoje ocupado pelo jornalista e crítico de cinema potiguar Valério Andrade. Valério é um nome conhecido nacionalmente pelos cinéfilos da minha geração por ter trabalhado durante muitos anos no Correio da Manhã e na Manchete. Na década de 1980 voltou para Natal, onde escreve na imprensa local. É o criador e o organizador do Festival de Cinema de Natal, que já passou da vigésima edição. O artigo, com o título acima citado, foi publicado no Jornal de Hoje e, a pedidos, na Tribuna do Norte, e sai aqui com a sua autorização. Ei-lo.
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Ao ser perguntado por que estava tão feliz no dia do seu aniversário, o velho chinês respondeu: "Porque estou um ano mais perto da minha morte". Em um de nossos últimos encontros, Roberto Campos resumiu numa frase curta o drama da idade: "A velhice é um naufrágio". E poderia ter acrescentado: inadiável, inevitável, sem sobreviventes.
Alguém já observou que a "juventude é um dom precioso demais para ser desperdiçado pelos jovens". Ao ver o marido afundado numa poltrona e incapaz de evitar a incontinência urinária, Simone de Beauvoir teve a certeza de que para Jean-Paul Sartre a cerimônia do adeus havia começado.
A fugacidade do tempo é uma realidade que apesar de estar ao alcance de nossos olhos, somente costumamos perceber quando já adentrou por nossas vidas. Aí, então, vemos a verdade das frases tipo "a vida passa depressa". Ou da advertência: "aproveite enquanto é tempo". Mas, aí, também já e tarde demais.
A velhice é o pior dos castigos a que o homem é submetido antes da visita da Dama de Negro. É doloroso ver na tela da televisão ou do cinema a destruição física da beleza. Estátuas de carne e osso cobiçadas por homens e mulheres, despojadas da antiga sedução carnal e ostentando na face e no corpo as cicatrizes do tempo. O recurso da cirurgia plástica é um refúgio mais ilusório do que real, que, às vezes, em vez de ocultar, acentua os estragos da idade. Veja as nossas atrizes das telenovelas - com seus rostos de boneca plastificados.
No mundo fantasioso das idealizações românticas, Vicente Serejo[jornalista norte-rio-grandense] elegeu duas musas: Greta Garbo e Sônia Braga. A esfinge sueca, numa atitude tão drástica quanto inusitada, retirou-se de cena na plenitude física dos 40 anos, sem passar pelos tormentos da decadência física e do declínio artístico. Sônia Braga, cuja imagem eternizou-se através da Gabriela, erotização juvenil da beleza brasileira, fez uma reaparição deprimente no programa de Daniel Filho. Chocante, não por estar envelhecida, mas, ao contrário, por causa da artificialidade rejuvenescedora de cirurgias e da utilização de botox.
Recomendo a Serejo que não vá ver a Sônia que vi na televisão. É melhor para a mente e o coração, imaginá-la como ela já foi. Afinal, já que não podemos dar adeus às ilusões da vida real, evitemos a despedida dos mitos físicos de nossa juventude. O castigo dos deuses não se limita à sentença da velhice. É extensivo às cabeças pensantes e às celebridades políticas. Como esquecer a imagem de Jânio Quadros, esquelético, entrevado, aparentemente senil, sendo carregado nos braços por um enfermeiro? Ou saber que Franklin Roosevelt, vítima de apagões da memória, às vezes falava com um membro do governo sem identificá-lo. Ou Roberto Campos, ainda na plenitude intelectual, emudecido e impossibilitado de escrever.
Esse vendaval de lembranças veio à tona por ocasião do meu aniversário. Entretanto, como não tenho como deter a descida do tempo ladeira abaixo, a comemoração serviu de pretexto para reencontrar os amigos, o que para nós, fordianos, que cultivamos e priorizamos a amizade, é o que melhor sobrou dos tempos idos e vividos.

quarta-feira, junho 04, 2008

AS TARDES DE DOMINGO FORAM FEITAS PARA LEMBRANÇAS?

Foto tirada de olhares.aeiou.pt


O domingo se arrasta monótono e quente. Estirado na rede, conservo o hálito do vinho e do peixe saboreados no almoço. A televisão está ligada no Santo Sílvio. O rádio do vizinho transmite um jogo de futebol. Não sinto ânimo para fazer coisa alguma. Apenas ficar deitado, ouvindo os ruídos de uma tarde de domingo. No jornal da manhã li a notícia da morte de um colega de escola. E não sei explicar por que a morte de Pirrita não me saiu da cabeça.Talvez pela forma trágica de que morreu: num tiroteio com a polícia. Seu nome e retrato freqüentavam quase diariamente as páginas policiais. Até que lhe chegou o fim violento. Deve ter sido por isso que lamentei tanto a sua morte, já que, no colégio, nem chegamos a ser amigos. Tornara-se traficante de drogas e era caçado há muito tempo pela lei.
Porque, por exemplo, quando morreu o Doca Cunha eu senti - menino e senti. Mas Doca Cunha foi um dos heróis da minha infância, por seu destemor. Um bravo que se acabou por uma bala traiçoeira do Zé Feitosa, ao meio-dia de um domingo. Estava numa mercearia do mercado público, onde, uma vez, agredira um cunhado. Contam que a irmã lhe rogara uma praga, de que ele teria o seu fim naquele mesmo local.
Uma morte que por muito tempo vivificou em minha memória e em meu coração. O mesmo, acho, aconteceu aos meus amigos. Ela era um assunto predominante em nossos papos.E afirmava-se - alguns quase chegando a jurar - que o seu filho Amauri lhe vingaria a morte quando se tornasse adulto. Que maus profetas! Amauri, rapaz, tornou-se assassino, não do matador do pai, mas do próprio irmão.
Já era adulto quando Seu Edmundo morreu. Conheci-o já corroído pela bebida, mas ainda um bonito homem. Acompanhei, penalizado, a progressiva decadência física e moral de um homem respeitado e querido. De uma viagem que fiz em sua companhia nunca me esqueci. Foi há tanto tempo, eu era garoto, mas me lembro bem dele, bêbado, importunando o motorista e ironizando a história de um livrinho que trazia comigo. Era bem chato quando bebia. Numa manhã, na fazenda de um amigo, contava uma história quando o coração parou.
Toinho Jacinto o vi um dia desses. Mal vestido, fedendo a álcool, cantando uma putinha. Uma caricatura do Toinho saudável, elegante nas proporções de sua condição financeira e da nossa cidadezinha. Toinho, o craque de futebol que jogava de uma maneira que dava gosto ver. Não compreendíamos por que nunca foi atraído para um time da capital. Hoje me parece mais fácil entender a razão: naquela época abundavam os grandes jogadores, ao contrário do que ocorre atualmente. Talvez ele até hoje ignore que nos tenha propiciado momentos de felicidade, no dia em que participou de uma pelada com a minha turma.
O momento não estimula a ação. Sem vontade de deixar a rede, sequer para ir ao banheiro, só me resta relembrar as figuras que me enriqueceram a infância. Ah! o velhinho Vitorino. Um homem sempre bem humorado, apesar de a vida o ter tratado com desprezo. Parece-me que o estou vendo de rosto escancarado para alardear a amabilidade e a simpatia de Juscelino e compondo uma carranca com que arremedava a sisudez de Juarez. E reproduzindo os sons dos instrumentos da bandinha de música. Ao morrer, terá sido velado com a mesma abnegação com que velava os corpos dos indigentes? Penso que não. Pior para os que nunca puderam apreender a sua beleza espiritual. Mas meu avô, também da linhagem dos simples, descobriu-lhe a riqueza humana logo no primeiro contato entre os dois. Tendo acontecido ser apresentado pela mamãe, na mesma ocasião, a um figurão da cidade, confessou à filha que gostara bem mais do humilde Vitorino.
Era sargento. Hoje não sei a sua patente. Por isso continuarei a chamá-lo de Sargento Adauto. Revi-o um outro dia. Velho, quase surdo, mas ainda conservando o vozeirão aprimorado nas instruções aos recrutas. Um soldado em quem a vivência na caserna não embotou os princípios de urbanidade, nem o enquadrou na disciplina que rege o relacionamento entre superiores e subalternos. Dele não posso esquecer (viva mil anos) arrancando-me a tempo de ser pisado pelas rodas de um carro. Correra do papo com os amigos - uma reunião na calçada do hotel - para me salvar da morte buzinante.
O rádio do vizinho solta um grito de gol. Não ouço euforia no homem. Talvez o gol seja do time adversário; talvez o vizinho não seja dado a rompantes de alegria. Até a mim chega a risada televisiva do Sílvio. Não recobrei o ânimo. O vinho e o peixe ainda pesam. Não só eles: a rede também. Como se todos os meus heróis tivessem se deitado comigo.
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Conto do meu livro "Um Dia... os Mesmos Dias" (1983) , publicado aqui com pequenas alterações na linguagem original.