domingo, março 28, 2010

O PUXÃO NO NARIZ

Foto: fockhead com



Eu estava num banco de praça quando o vi levantar-se e caminhar na minha direção. Estacou em frente a mim e fez a pergunta:
"Você é o Andrezinho, filho do Seu Moacir"?
"Ele mesmo".
Deu um risinho, depois falou:
"Eu tinha certeza que era você. Estava sentado naquele banco quando lhe vi chegar e disse pra mim mesmo aquele ali é o Andrezinho. Então, não está me reconhecendo"?
Olhei bem para o estranho de pele de um moreno acentuado, rosto rugoso, cabelos grisalhos, sem descobrir nenhum sinal que me levasse a identificá-lo. O timbre de voz não me soava familiar, e, enquanto o examinava, procurei nele um gesto característico, algo como um cacoete, em vão. Envergonhado, tive que lhe confessar que não o estava reconhecendo.
"Puta merda, eu estou velho mesmo".
"Não é nada disso. Eu que sou um péssimo fisionomista".
Outro risinho.
"Posso sentar"?
"À vontade".
Deu o terceiro risinho (me ocorreu, então, que o riso fácil fosse um cacoete, que a falta de convívio entre nós me tivesse feito esquecer completamente) e disse:
"Eu sou o Viliam".
Voltei a olhar atentamente para ele, buscando descobrir algum traço da pessoa que conhecera no passado. Nenhum traço. Em todo caso, a menção do seu nome me fez lembrar dele. Em meninos, fomos vizinhos, separados por quatro ou cinco casas e pela rua, e se não chegamos a ser amigos, fomos, pelo menos, companheiros de brincadeiras. Ele mais velho uns dois ou três anos.
"Está aposentado, Andrezinho?"
"Estou. Você também?"
"Quem dera."
"Faz o quê?"
"Trabalho em rádio. Setor esportivo. Sou o encarregado do plantão, o cara que dá informações sobre os resultados dos jogos. Será que não me ouviu algumas vezes?"
"Não sou ligado em esportes."
"Não me diga. Me lembro que você jogava bola até bem."
A conversa ia rolando, muito mais por iniciativa de Viliam. Eu me limitava praticamente a responder às suas perguntas. E enquanto ele soltava a língua, eu puxava pela memória, buscando desentranhar lembranças ligadas a ele. E fui me lembrando de Dona Marieta, sua mãe. Feia, de tudo fazendo para parecer bonita, pele amarelada, cabelo frisado, de um louro visivelmente artificial, falava mais do que o homem da cobra. Temperamento forte, com vocação para a prepotência, exercida principalmente sobre o marido - um barriga branca assumido. (Um detalhe, na aparência, insignificante, revela bem quem mandava na casa de Viliam. Era comum quando alguém nomeava algum menino acrescentar o nome do pai. Mas se era Viliam, a pessoa dizia filho de Dona Marieta e nunca filho de Seu George.) E aproveitando uma pausa na taramelice de Viliam, me ouvi a perguntar pela mãe dele.
"E Dona Marieta? Ainda está viva?"
"Viva até demais. E mais sadia do que eu. Come de tudo. Só está um pouco esquecida. Mora comigo desde que o papai faleceu."
"Seu George morreu?"
"Tem mais de dez anos. Mas eu ia dizendo..."
Pobre do Seu George. Deve ter chegado um momento em que não pôde mais suportar a convivência com a "caríssima" metade. E imaginava o que não estaria passando o filho ao lado daquela mãe autoritária, de convívio ainda mais difícil com a chegada da velhice. Mas ao mesmo tempo ponderava se Viliam já não não se amoldara ao temperamento da mãe, virado um submisso, feito o pai.
Mesmo porque, lembrava-me bem, Viliam não era um menino de cabelo na venta, que pudesse incutir nos outros meninos o medo de lhe pregarem uma peça para não receberem o troco. Fazíamos brincadeiras pesadas com ele, algumas de deixá-lo ferido e choramingando, e, no outro dia, lá estava o abestalhado de novo com a gente, como se nada tivesse acontecido.
"Sabe do que me lembrei agora (disse Viliam de repente e mais uma vez com aquele sorrisozinho)? Daquela vez que a velha deu um puxão no teu nariz. Tá lembrado?"
"Como não?"
"É, a Dona Marieta não era fácil. Ainda hoje não é, apesar da idade. Você sabe o que ela aprontou num dia desses?"
Começou a contar a mais recente truculência cometida pela mãe, mas as suas palavras entravam-me num ouvido e saíam no outro. O meu pensamento estava concentrado no episódia que ele acabara de lembrar. Aquele puxão de Dona Marieta no meu nariz, na presença da minha mãe e da minha irmã mais velha. E na minha própria casa.
"Isso é pra você nunca mais fazer arte com o meu filho."
As palavras da megera chegavam bem sonoras aos meus ouvidos, como se ditas naquele momento. E o estranho é que não me lembrasse da causa que a levara a fazer aquilo. Me lembrava vagamente que brincávamos, eu, Viliam e outros garotos, de cinturão queimado. Em dado momento da brincadeira, Viliam foi se queixar de mim a Dona Marieta e ela levantou-se da cadeira e me deu aquele puxão no nariz.
E de súbito, enquanto Viliam continuava falando para o vento, me fiz aquela pergunta: será que ele sabia que eu me vingara da agressão (sim, porque eu tinha dado o troco a Dona Marieta, fazendo-a passar por uma situação de extremo ridículo)?
Que ele presenciou o vexame da mãe, disso tenho certeza. Foi na festa de casamento da filha de uma amiga comum de mamãe e de Dona Marieta e Viliam lá estava junto com alguns dos nossos companheiros habituais de brincadeiras. Qualquer um daqueles meninos poderia ser o autor da peça de que Dona Marieta foi vítima, testemunhada por todos ali presentes, embora somente eu tivesse um motivo para armá-la. Mesmo assim não acho possível que Viliam me convertesse no principal suspeito, ele que, me lembro bem, não resistiu ao riso, tanto quanto a maioria dos convidados, ao ver a mãe debatendo-se para se levantar da cadeira, gritando por socorro, e as pessoas tentando erguer Dona Marieta, uma puxando-lhe um braço, outra o outro braço, mais alguém o pescoço, mais gente para prender a cadeira no chão, e, finalmente, depois de muito suor e muito esforço físico, Dona Marieta sai do suplício , mas sem se livrar do toque final, o requinte do derradeiro ato da suprema humilhação a que foi submetida: o ruído, semelhante ao de um grande peido, do vestido se rasgando. E a bruxa, aos berros, ai se eu pegar o moleque que fez isso, sendo escoltada até a um quarto da casa, enquanto o marido corria em busca de outro vestido.
"Tá vendo como a Dona Marieta ainda está em forma?"
Apenas retribuí o sorriso de Viliam, não ouvira uma palavra do seu relato. Ele se calara, para certamente descansar um pouco a garganta, tão ativa naquele nosso reencontro. Enquanto isso, me debatia na dúvida entre lhe lembrar ou não o incidente ocorrido com Dona Marieta. Tinha vontade de tocar no assunto, e ao mesmo tempo não tinha, e o curioso na minha dúvida era o temor de que Viliam revelasse que sempre soubera que fora eu o autor da brincadeira e me encostasse contra a parede, deixando-me sem argumentos para contestar. E era meu desejo manter silêncio sobre a autoria da peça. Um ponto de honra? Sei lá. Só sei que nunca abri a boca para me vangloriar do feito. E relutava em fazê-lo, justamente ao filho da bruxa.
"Bem, Andrezinho, tá na hora de tirar o time de campo."
De repente, Viliam punha um fim na minha dúvida. Estirou a mão, deu um último sorriso e foi embora.

domingo, março 21, 2010

15 FILMES COM UM GRANDE INÍCIO (1) *

A cunhada de Ethan Edwards (John Wayne) observa o
regresso dele, após anos de ausência: uma das primeiras
imagens de Rastros de Ódio.




- A Marca da Maldade (Orson Welles)
- Cidadão Kane (Welles)
- Hiroshima, Meu Amor (Alain Resnais)
- Vertigo/Um Corpo que Cai (Alfred Hitchcock)
- Oito e Meio (Federico Fellini)
- Rastros de Ódio (John Ford)
- O Baile (Ettore Scola)
- O Bebê de Rosemary (Roman Polanski)
- A Noviça Rebelde (Robert Wise)
- A Morte num Beijo (Robert Aldrich)
- Amor, Sublime Amor (Wise e Jerome Robbins)
- M... O Vampiro de Dusseldorf (Fritz Lang)
- A Bela da Tarde (Luís Buñuel)
- Era uma Vez... no Oeste (Sergio Leone)
- Ama-me Esta Noite (Rouben Mamoulian)

* Sem ordem preferencial.


domingo, março 14, 2010

UM MENINO ESCREVE UM LIVRO.


Foto via Google



Ele ainda brincava de criança e já escrevia relatos (crônicas? contos? as duas coisas?) que o pai mandou publicar em livro. Nunca me esqueci do título: "Sonhos e Conquistas". Li-o ao descobrir um exemplar no meio de antigos livros que mofavam na minha casa, mas, adolescente , ainda levaria muito tempo para adquirir a capacidade de avaliar um livro. Não tinha, evidentemente, valor literário, mas quem sabe um leitor arguto, sensível, não tivesse vislumbrado em alguns trechos a promessa de um futuro escritor? Promessa que jamais se cumpriria: o menino veio a tornar-se funcionário do Banco do Brasil, onde fez uma brilhante carreira. Dele mesmo, numa roda de pessoas em que eu estava presente, ouvi certa vez referir-se, de passagem, e de forma depreciativa, ao livro, deixando-me a impressão de que se arrependera de tê-lo escrito. Como se houvesse praticado uma má ação, cuja lembrança, talvez, o tivesse perseguido pelo resto da vida.
O pai é que sempre se orgulharia daquele feito do filho. E ainda hoje lhe dou razão. Um feito, sim, não importa a qualidade literária de "Sonhos e Conquistas", se levarmos em conta que o autor tinha apenas onze anos à época da publicação do livro, a qual coincidiu com o ano do meu nascimento. Com essa idade, nenhum dos grandes mestres da literatura mundial escreveu uma obra-prima. Com o dobro dela, ou mais, houve os que não foram tão bem sucedidos na estreia e um ou outro chegou até a renegar o seu primeiro livro. É verdade que há o exemplo da genialidade precoce de Rimbaud, mas mesmo ele despontou já perto dos vinte anos.
Maurício se chamava esse menino e era meu irmão. Já não está entre nós há quase nove anos.



domingo, março 07, 2010

SÃO FRANCISCO DOS POMBOS PALACIANOS


Crônica de Manoel Onofre Jr. *



Magro, com um riso alvo a destacar-se no pretume da pele, Azulão é funcionário da Casa Civil do Governo do Estado. Função principal: prestar toda assistência aos seus "irmãos menores", os pombos, que, desde que foram expulsos das sacadas da Prefeitura, escolheram o Palácio Potengi como residência.
Em Veneza, na praça São Marcos, é o turista quem alimenta os pombos, característicos daquele lugar. Mas, aqui em Natal, à falta de turistas, o Governo do Estado resolveu cuidar das pequenas aves, dando-lhes casa e comida, ou melhor, pombal e ração de milho diária. Esta mesma teve de ser reduzida, como diz Azulão com bom humor, em face da situação dramática das finanças estaduais.
Antigamente, os pombos moravam nas sacadas do Palácio Felipe Camarão, sede do executivo municipal. Sempre foram assim, dados ao convívio de coisas e gentes oficiais. Dali saíam para passeios na praça Sete de Setembro, em frente ao Palácio Potengi, onde faziam ponto num dos canteiros. Diariamente recebiam a ração de milho das mãos de um funcionário da Prefeitura, ornitólogo frustrado. Mas, certo dia, o Prefeito resolver cortar o milho dos pombos. Estes protestaram, e a prova é que - fato ainda lembrado - "sujaram", meticulosamente, por várias vezes, os brancos ternos de linho do Prefeito e dos assessores. Certo é que o protesto nada adiantou. O alcaide manteve-se firme em sua decisão de não mais dar milho às aves. Cansadas de protestar, elas optaram pela alternativa mais sensata: se mudaram para o Palácio Potengi. Um velho pombo filosofou: "Não há males que não venham para o Bem". E em seguida comandou: "Quem for pombo, que me siga. Todos ao Palácio"!
Foi uma revoada bonita, aquela; as aves em formação aérea, deixando a Prefeitura rumo ao Palácio do Governo. Pena que ninguém tenha notado nada.
Naquele tempo governava o Estado um homem bom que se interessou pelos pombos, dando-lhes pombais nos galhos dos ficus que ficavam em frente ao Palácio. Aqui encerra-se o que se poderia denominar de "período heróico" na história daqueles pombos. Os bichinhos puderam viver, a partir de então, no que sua imagem simboliza: paz.
Paz e água fresca. Para isso muito contribui o Sr. Jorge Berto, mais conhecido por Azulão, que é encarregado de não deixar faltar milho para os "donos" da praça Sete de Setembro.

- Azulão, qu'é que você conversa com eles?
- Eles quem?
- Os pombos, naturalmente.
- Conversa de mesmo não converso não. Mas a gente se entende tão bem que conversa não faz falta. Todo dia de manhã e de tarde, eu boto milho para eles, e eles vêm e até sentam nos meus ombros, sobem na minha cabeça. Gosto dos bichinhos.

* Manoel Onofre Jr nasceu em Santana do Matos (RN), em 1943. Seguindo a carreira jurídica, aposentou-se como Desembargador. É autor de cerca de 20 livros, englobando os mais variados gêneros, inclusive a ficção. Membro da Academia Norterriograndense de Letras. Esta crônica faz parte do livro "O Caçador de Jandaíra" (Edições Sebo Vermelho/2006).