sábado, janeiro 29, 2005

DOIS POETAS DO NORDESTE

LÁZARO

Horácio Paiva - Norte-rio-grandense

Herdara a sombra da figueira
as raízes a doce
umidade da terra

Herdara o paraíso
escuro da noite
a paz e o acalanto das águas

Mas a tua voz chamava-me
ordenando-me a volta à ilusão
das viagens à luz
ofuscante do meio-dia
à poeira das estradas

E eu que julgara haver
cumprido o meu dever
a missão que o Senhor me confiara
e isento já da faina diária
dos renascimentos.

Retorno ao calor
à peleja com estranhos
à repetição dos dias iguais
ao suor de meu rosto

E como Jacó a servir mais tempo
para merecer Raquel
servo fiel retorno
e já diviso à distância
o tumulto
o choro das irmãs
a casa
repleta de olhares curiosos.


SONETO PRINCIPALMENTE DO CARNAVAL

Carlos Pena Filho - Pernambucano (1929-1960)

Do fogo à cinza fui por três escadas
e chegando aos limites dos desertos,
entre furnas e leões marquei incertos
encontros com mulheres mascaradas

De pirata da Espanha disfarçado
adormeci panteras e medusas.
Mas, quando me lembrei das andaluzas,
pulei do azul, sentei-me no encarnado.

Respirei as ciganas inconstantes
e as profundas ausências do passado,
porém, retido fui pelos infantes

que me trouxeram vidros do estrangeiro
e me deixaram só, dependurado
nos cabelos azuis de fevereiro.
(Do livro "Os Melhores Poemas - Carlos Pena Filho - Global Editora, 1983)



OBITUÁRIO - VIRGINIA MAYO
No dia 17 deste mês faleceu a atriz Virginia Mayo. O nome só é familiar para os espectadores da minha geração e anteriores. Em fins da década de 1940 e por quase toda a década da de 50, ela foi uma das atrizes mais populares do cinema americano, embora nunca tenha conquistado o status de grande estrela. Loura, magra, sofria de um pequeno estrabismo, que, no entanto, parecia torná-la mais bonita e sensual. Quando, adolescente, comecei a descobrir as atrizes, Virginia logo se tornou uma das minhas preferidas. A perda da popularidade começou na década de 60 e se acentuou na década seguinte. Fez poucos filmes, a partir dos anos 70, até encerrar a carreira, já velha, em 1997.
Fez muitos filmes, mas só uns quatro ou cinco merecem ser lembrados. Os Melhores Anos das Nossas Vidas, (William Wyler/1946), ainda como coadjuvante; Fúria Sanguinária (1949), contracenando com um furioso e enlouquecido James Cagney; Embrutecidos pela Violência (1951), ambos de Raoul Walsh; O Gavião e a Flecha (Jacques Tourneur/1950), um atraente e divertido capa-e-espada. E ainda, talvez, o western Pelo Sangue dos Nossos Irmãos, também de Torneur. Seu nome verdadeiro era Virginia Clara Jones e estava com 84 anos. Que a terra lhe seja leve, Virginia.

quarta-feira, janeiro 26, 2005

O ESQUECIDO JOSEF VON STERNBERG

Zapeando numa noite dessas pelos canais de tevê a cabo, detive-me na TV Assembléia, que estava exibindo O Anjo Azul. Fiquei uns vinte minutos vendo o velho Professor já começando a cair na teia da sedutora Lola/Marlene Dietrich, pois já conhecia o filme. E a uma certa altura veio-me à mente o esquecimento a que está relegado o diretor Josef Von Sternberg. Esquecimento, é preciso destacar, que não é de hoje. Em 1994 ocorreu o seu centenário de nascimento e não me lembro de ter visto, em nenhum jornal da grande imprensa no Brasil, nenhuma matéria alusiva ao fato. Ainda em vida, Sternberg deve ter amargado o silêncio que se abatera sobre ele e sua obra, que vem perdurando até hoje. Estranha e injusta essa atitude em torno de um cineasta que, já no cinema mudo, despertara a atenção da crítica com o elogiado Docas de Nova York, e durante os anos de 1930 ascendera ao patamar dos maiores diretores do cinema americano.
O Anjo Azul ele o fez na Alemanha. Com as rugas expostas, já perdeu parte da importância que teve ao ser lançado. É, sem dúvida, o seu filme mais popular, e pelo fato de ter aberto o caminho de Marlene Dietrich para o estrelato. E é imensa a dívida dela a Sternberg, que tirou-a de uma carreira até então obscura e nos seis outros filmes em que a teve como protagonista, lançando mão dos meios que a técnica cinematográfica proporcionava, e que dominava como poucos, transformou-a numa das divas do cinema, que o mundo reverenciou durante décadas, elevando-a à categoria de uma verdadeira "entidade", conforme assinalou um crítico.
Existe, entre os exegetas da obra de Sternberg, um consenso a respeito da natureza do seu estilo, por todos considerado pessoal e original. Um estilo que utilizava, com criatividade, os elementos plásticos (o crítico paulista, já falecido, Francisco Luiz de Almeida Salles, em seu livro Cinema e Verdade, afirma: "Com ele, o cinema fez-se gravura, fez-se desenho, a tela era uma prancha, onde o crayon dele aprofundou luzes e sombras".) e de iluminação, promovendo a criação de uma atmosfera de exotismo e de um certo mistério, que passava ainda uma sensação de irrealidade. O que o fez criar um mundo próprio, na opinião do mesmo crítico.
É de se imaginar os problemas enfrentados por um artista do porte de Sternberg, para ter preservadas as suas idéias sobre a realização de um filme, diante dos chefões de Hollywood, de interesse voltado apenas para o aspecto financeiro. Com relação, por exemplo, a O Anjo Azul, ele queria que o roteiro fosse filmado em ordem cronológica. Sorte sua que o filme tenha sido produzido na Alemanha, onde o produtor era mais flexível e satisfez-lhe a vontade. Seria impossível dobrar os executivos de Hollywood.
Mas, apesar dos percalços, ele conseguiu durante alguns anos uma certa autonomia sobre o seu trabalho, que foi, gradativamente, perdendo, à medida em que os seus filmes fracassavam nas bilheterias e ele já não contava com Marlene para atrair os espectadores e amansar um pouco os executivos. Começou a encontrar dificuldades para levar adiante os seus projetos, chegando ao ponto de, no período entre 1940 e 1953 (ano em que encerrou a carreira), fazer apenas 5 filmes, quando, só na década de 30, realizou 12.
Além de O Anjo Azul, dele só conheço O Expresso de Shangai, que possuo numa gravação em VHS. Revi há poucos dias esse filme, dois anos apenas mais novo do que aquele, e ele ainda me pareceu conservar certa juventude e a grandeza mostrada há mais de 70 anos, em que pese a previsibilidade do happy end. (Não é nenhuma incongruência presumir, contudo, que o final não tenha sido imposto ao diretor.) E as qualidades de O Expresso de Shangai, inúmeras, são destacadas pelo já citado Almeida Salles, em sua crítica de setembro de 1956, em O Estado de São Paulo, que a encerra qualificando a obra de "eterna".
Sternberg era austríaco de Viena, a mesma cidade onde nasceram também, entre outros cineastas, Fritz Lang e Billy Wilder. Ocupou várias funções no cinema, antes de estrear na direção, em 1925, com The Salvation Hunter. O prenome de batismo era Jonas, que, já adulto, alterou para Josef. Outra alteração em seu nome foi o acréscimo do aristocrático Von, sobre cuja origem existem duas versões. Segundo A. C. Gomes de Matos, em artigo para a revista Cinemin, foi imposto a Sternberg por um produtor. Já em seu livro Marlene, Charles Higmam afirma que foi adotado pelo próprio cineasta, cuja vaidade era tão grande quando o seu talento. Ele morreu em 1969, aos 76 anos. Em 1965 publicou o livro Fun in a Chinese Laundry, em que rememora a sua vida e a sua carreira.

sábado, janeiro 22, 2005

ISA

Ele a viu aparecer em uma das duas entradas que davam acesso ao bar, de repente estacar, movendo os olhos na direção dos poucos fregueses ali presentes naquele começo de noite Ele estava em uma mesa perto da entrada donde ela surgira, na parte do bar que não era coberta, e o rosto voltado para o mesmo local, de maneira a ser facilmente reconhecido. Ainda assim, achou necessário acenar-lhe com a mão, e o gesto, ele não deixou de perceber, apesar de estar tão atento à chegada dela, chamou a a atenção dos outros fregueses. Ela acenou também, talvez mais para demonstrar que o vira, e apressou o passo na direção dele, que se levantou para recebê-la. Trocaram beijinhos, ela sentou-se e ele perguntou se o acompanhava na cerveja. Ela preferiu um refrigerante diet. "Pensei que não viesse mais". "Quase que não vinha.Relutei muito, antes de me decidir a vir". "É, já pelo telefone você resistiu muito à minha proposta de nos encontramos. Por que, Isa"?
Ela, que estava com as mãos juntas, afastou-as com um gesto largo, como a sublinhar a resposta.
"Mas eu lhe disse por quê. Achava e continuo achando inútil este encontro". "Tudo bem. Mas o que quero ouvir de você é uma razão plausível para não continuarmos. Por que você diz que não dá certo continuarmos"?
Ela ia começar a responder, mas reteve a fala quando notou o garçom se aproximar da mesa, trazendo o refrigerante e um copo. Puxou a argola da latinha, despejou parte do conteúdo no copo, quase o enchendo, sorveu um longo gole, depois do que pôde responder a pergunta.
"Você disse que queria que lhe desse uma razão plausível, não foi? Pois muito bem. O caso é que não sou livre". "Não é livre? Como assim"?
Ele alteou a voz, outra vez atraindo a atenção das pessoas sentadas nas mesas próximas. Ela encostou o indicador nos lábios e moveu os olhos para os lados.
"Desculpe, Isa (ele baixou sensivelmente a voz). É que fui surpreendido pelo que você acabou de dizer. Explique-se melhor". "Eu não sou livre. Já lhe disse".
Ele bebeu um longo gole,depois tirou um cigarro da carteira sobre a mesa e o acendeu. Parecia buscar na bebida e no fumo o apoio necessário para não perder a calma.
"Mas, Isa, você não me garantiu que era sozinha? Não foi você qe quis que ficássemos na sua própria casa, com aquele papo de que não se sentiria à vontade num motel? Não foi"?
Ela não respondeu, ele repetiu não foi? ela disse foi. "E então? Que história é essa de que não é livre"? "Eu menti pra você. Mas agora vou dizer a verdade: eu vivo com um homem há muitos anos. E eu amo esse homem".
Ele soltou uma risada curta, sem ligar para a curiosidade dos fregueses, nem para a censura gestual que ela podia fazer, mas que não fez. Em seguida, ele disse: "Você tá querendo gozar com a minha cara". "Bom, se você não acredita, não posso fazer nada. Acho que não tenho mais nada a fazer aqui".
Ela fez menção de se levantar, mas ele a reteve com um gesto de mão.
"Queria que você me respondesse com toda a sinceridade de que for capaz. Eu não signifiquei nada pra você"?
A mirada de Isa teve a duração de um piscar de olho. Logo em seguida, ela baixou o rosto e não disse uma palavra.
"Não é mais preciso responder. Está muito claro pra mim. Só não está claro é você ter aberto a casa para alguém que não representou nada pra você, já que você ama o homem com quem habita nessa mesma casa. Seria pedir demais, Isa, que esclarecesse essa parte obscura do nosso relacionamento"? "Você quer mesmo saber"? (Ela tinha levantado o rosto e de novo o encarou.)
"É tudo o que quero saber". "Será que vai suportar ouvir a verdade"? "Vá em frente, Isa".
Ela esfregou uma mão na outra, como se as mãos estivessem úmidas e precisassem ser aquecidas.
"Não sei como dizer isso". "Vá em frente, Isa", ele repetiu já com uma certa impaciência. "Bom. Você foi um... uma... digamos... uma espécie de instrumento". "Instrumento"? "Como os outros"... "Outros? Houve outros homens"?
Ela estava de novo curvada, insistindo em atritar as mãos.
"É ele, sabe? O caso é que ele... Eu tenho... tá entendendo?... eu tenho que ter contato com outros homens"...
Calou-se de repente, como se aquelas palavras lhe tivessem exigido um esforço sobre-humano, deixando-a sem fôlego para prosseguir. Também calado, ele olhava para aquela mulher com a cabeça quase derreada sobre a mesa, indeciso entre a compaixão e o desprezo. Por fim, disse:
"Você já pode ir".
Ela se ergueu, sem olhar para ele, e sem um mínimo gesto de despedida afastou-se em passos rápidos. Já ele não tirou os olhos de Isa, até vê-la desaparecer.

quarta-feira, janeiro 19, 2005

LEMBRANÇA DE NARA

A voz era deste tamanhinho. Mas os seus fãs nem estávamos aí com isso. Nem reparávamos nela. O que importava era o bom gosto na escolha das músicas. A inteligência. A sensibilidade. A lucidez política. E, acima de tudo, a irradiante simpatia que quase a transformava em alguém com que convivêssemos no dia-a-dia. O jeito tranquilo não permitia que se pensasse nela como capaz de atitudes corajosas, e, no entanto, ela usou também a voz para protestar contra os horrores praticados no período negro da ditadura militar. E por sua coragem (que faltou a tantos ídolos populares da época), foi ameaçada de ser punida pela tal Lei de Segurança Nacional.
Nara esteve em Natal este ano, mas não pude vê-la. Não fui um fã ardoroso dela, nem dos mais fiéis (tenho, além dela, mais três cantoras preferidas: Isaurinha Garcia, Elizeth Cardoso e Doris Monteiro; gosto de algumas outras, mas essas quatro são as preferidas). Acho que foi em 1982 que a vi no Teatro Alberto Maranhão, como participante daquele Projeto Pixinguinha. Debaixo do braço eu levava, não um violão (como diziam os versos de um dos seus maiores sucessos), mas o seu último disco lançado, NARA: NASCI PARA BAILAR, em cuja capa Nara, linda, aparece envolta num véu vermelho. Estava disposto a lhe pedir que o autografasse. Foi o que fiz, vencendo uma crônica timidez. Ela nos atendeu, depois da apresentação, a todos que ali estávamos para lhe falar, com delicadeza e o sorriso constante, que, paradoxalmente, não a tornava bonita, pois lhe expunha os dentes ressaídos. Quando disse o meu nome, Nara sorriu e revelou que tinha um filho também chamado Francisco. Eu já sabia, mas fiquei calado, porque Cacá Diegues, seu ex-marido, dedicara o filme Chuvas de Verão a ele e à filha Isabel. Eu estava nas nuvens quando saí do teatro. Falara com Nara e obtivera o seu autógrafo, que guardo como uma relíquia. A mesma sensação tida anos antes com a atriz Glauce Rocha, outro dos meus ídolos.
Dias depois, num encontro com um amigo, soube que Nara apresentara problemas de saúde na estada em Natal. Quem sabe se já não seriam os primeiros sintomas da doença que agora a matou?
NOTA (1) Este artigo foi publicado num jornal de Natal, poucos dias depois da morte de Nara Leão, ocorrida em 7,6,1989, quando estava com 47 anos. É aqui republicado como uma homenagem à cantora no dia do seu aniversário de nascimento. Se ainda viva, ela estaria , hoje, completando 63 anos.
NOTA (2) No problema com os milicos, Nara teve o apoio dos maiores expoentes do teatro, da literatura, do jornalismo, da MPB, que protestaram contra o risco de ela ir parar na cadeia. O mais ilustre dentre eles foi o poeta Carlos Drummond de Andrade, que publicou um poema no Correio da Manhã, dirigido ao Marechal Castelo Branco, o ditador da época. Segundo escreve o jornalista Sérgio Cabral, na biografia sobre Nara. ela telefonou para Drummond, agradecendo-lhe o gesto. E em seguida comentou com muitos dos amigos: "Vale a pena comprar qualquer barulho para ganhar um poemas desses". Grande Drummond! Grande Nara!
E por falar em poeta, o meu querido amigo Horácio Paiva me enviou um poema para sair neste blog, o que faço com grande prazer. Não só pelo amigo, mas pelo seu talento poético. Horácio estreou tardiamente na literatura. Seu livro Navio entre Espadas saiu há uns 2/3 anos. Mas já soube que brevemente ele já estará lançando seu segundo livro. Vamos ao poema.
NA CALADA DA NOITE
"En una noche oscura/ con ansias en amores inflamada" (San Juan de la Cruz)
Na calada da noite
na harmonia das sombras
o meu amor me espera.
As flores estão orvalhadas
e se revela no céu
um buquê de estrelas
e de segredos.
Não há testemunhas no jardim
que se faz éden para os dois
e ninguém que possa censurar
este amor sonâmbulo,
esta paixão
na calada e no sereno da noite.

sábado, janeiro 15, 2005

CURIOSIDADES CINEMATOGRÁFICAS

  1. Nos idos de 1960 o cinema italiano implantou o filme de várias histórias (quase sempre quatro), cada uma delas dirigidas por um determinado cineasta. Inúmeros desses filmes foram feitos naquele período e deles chegaram a participar diretores do porte de Fellini, Visconti, Antonioni e até Rosselini. Quem é da minha geração deve se lembar, por exemplo, de Boccaccio 70, que reuniu Fellini, Visconti, De Sica e Monicelli, mas o episódio deste foi cortado pela censura da ditadura militar, no lançamento do filme no Brasil. (E agora, assim de repente, me vem à lembrança que, quando Boccaccio 70 passou em Natal, seus três episódios foram comentados, em jornal, por três integrantes do Cine Clube Tirol. A Moacy Cirne coube o de Fellini (As Tentações do Dr. Antonio), a Gilberto Stabili o de De Sica (A Rifa), e a este beradero de Canindé o de Visconti (O Trabalho). Algumas cinematografias, como a francesa e a brasileira, chegaram, esporadicamente a aderir a esse subgênero. Pois nessa onda um produtor italiano pretendeu produzir um filme constituído de 3 hístorias, que seriam dirigidas por Fellini, Bergman e Kurosawa. O projeto não foi adiante, porque, parece, somente Fellini topou a parada. É impossível prever o que poderia resultar de um filme que juntava cineastas tão diferentes entre si, pela temática, pelo estilo, pela cultura de seus respectivos países. Mas que seria uma experiência, no mínimo, curiosa, ah, isso seria.
  2. Por ser um fato muito pouco comum, é possível que raríssimos cinéfilos se lembrem de ter assistido a um filme de um senhor chamado Allen Smithee. E estou falando daqueles que vão ao cinema pelo nome do diretor; daqueles que não estão nem aí para quem dirige um filme, se leram o nome dele na tela, esqueceram-no cinco minutos depois. Esse senhor dirigiu pouquíssimos filmes e seu nome jamais será incluído num dicionário de cinema. Não porque não o mereça (afinal, centenas de maus e medíocres diretores estão ali relacionados), mas porque esse Allen Smithee não existe. Isso mesmo, Allen Smithee não existe. É uma invenção de Hollywood. O que ocorre é o seguinte: quando um cineasta vê o filme que dirigiu desfigurado por uma montagem feita à sua revelia, e exige que o seu nome não conste dos créditos,a produçãp, então, coloca esse Allen Smithee como o diretor, já que o filme (nenhum deles) pode ser lançado sem uma "assinatura". É isso aí.
  3. Peter Lorre, o inesquecível intérprete de M, O Vampiro de Dusseldorf, o clássico de Fritz Lang, teve uma única experiência na direção. Em 1951, esse ator nascido na Hungria foi à Alemanha rodar o filme Der Verlorene (O Perdido) , por ele roteirizado. E foi uma experiência bem sucedida, a julgar pelo que dizem os críticos Luiz Nazário e Jean Tulard. Eis a opinião de Nazário, emitida em seu livro De Caligari a Lili Marlene: " O primeiro filme alemão do pós-guerra, digno de nota, é "O Perdido", de Peter Lorre; em 1951, o expressionismo renasce recuperado, de forma crítica, numa forte alegoria anti-nazista". E Tulard, no "Dicionário de Cinema - Os Diretores": "Der Verlorene", de uma atmosfera estranha, demasiado avançado para o seu tempo, não obteve nenhum sucesso, mas precisa ser redescoberto".
  4. Outros atores também tiveram uma experiência isolada na direção. Exemplos: Marlon Brando (A Face Oculta/196l), Gerard Philippe (As Aventuras de Till/1956), Charles Laughton (O Mensageiro do Diabo/1955), Anthony Quinn (Lafite, o Corsário/1959), Karl Malden (Time Limit/1957). Este último, um ótimo coadjuvante (o padre de Sindicato de Ladrões e que atuou no filme de Brando), segundo algumas fontes, dirigiu ainda algumas cenas de A Árvore dos Enforcados, substituindo o diretor Delmer Daves, quando este adoeceu durante as filmagens. E a atriz Barbara Loden, que foi casada com Elia Kazan (atuou em dois filmes do marido, entre eles Clamor do Sexo), dirigiu, em 1970, Wanda. São os de que me lembro no momento, e só citei os que já se foram, pois os ainda vivos poderão dirigir outras vezes e até passar de ver para trás da câmera, como já ocorreu.

terça-feira, janeiro 11, 2005

E aqui estou eu contribuindo para aumentar a imensa população de blogueiros espalhados pela Internet. O nome do blog, é evidente, presta homenagem a uma das obras-primas de Charles Chaplin, e sendo o dono um cinemeiro de carteirinha assinada. deve levar as pessoas à suposição de que ele será dedicado ao cinema. Não é bem assim. O cinema terá uma participação destacada, mas outros temas serão tratados, tais como literatura (a minha e a de outros escritores), MPB, etc. Até de política poderei, eventualmente, falar, ainda que precise tapar as narinas. Para inaugurar, no entanto, esta página, achei interessante escrever sobre o filme que a ela emprestou o nome. Não é uma crítica recente. Foi escrita há uns doze/treze anos e publicada num semanário de Natal, já extinto, onde escrevi durante uns poucos meses. Sai aqui da forma que saiu lá. As únicas alterações feitas foram para corrigir erros de revisão, uma praga que ainda hoje sobrevive na imprensa local. Vamos, então, ao texto.
LUZES DA CIDADE
Se o lançamento em vídeo de Luzes da Cidade oferece a oportunidade de uma reavaliação crítica, essa reavaliação, em contrapartida, esbarra num obstáculo quase intransponível. Ou seja, o de falar de uma obra (prima) que de tão exaustivamente analisada e dissecada, não dá a ninguém a chance de descobrir-lhe algum elemento que tenha escapado à argúcia de tantos quantos se debruçaram sobre ela. E essa é uma dificuldade que não encontramos apenas em Luzes da Cidade, mas se estende a qualquer outro clássico de Chaplin, e a coisa se complica ainda mais se tivermos de falar do próprio cineasta. De todo modo, assumamos o risco de fazer chover no suficientemente molhado e digamos alguma coisa sobre o filme.
No livro Minha Vida , Chaplin confessa que ficou deprimido com a observação de um jovem crítico americano, em artigo escrito quando o filme foi lançado, segundo a qual Luzes da Cidade "pendia para o sentimentalismo". Embora Chaplin não tenha se queixado de que alguém mais tenha feito a mesma observação, é de se acreditar que isso tenha ocorrido. E não somente a Luzes da Cidade. Na apresentação de Minha Vida, o crítico Sérgio Augusto comenta essa restrição à obra de Chaplin, acrescentando que ela foi "duradoura e epidêmica".
De fato, em Luzes da Cidade não há como negar o apelo ao sentimentalismo localizado na cega vendedora de flores. Mas por ele é também alcançado o vagabundo, quando, comovido pela cegueira da jovem, vai à luta em busca de recursos para custear a cirurgia que a fará abrir os olhos. Já antes dele conhecer a cega, o seu bom-mocismo é revelado quando evita que o milionário cometa suicídio. Mas há em toda a sequência, pelo menos, infiltrado no sentimento da boa ação, o componete humorístico, o que atenua a presença daquele, fato que quase não ocorre nas cenas entre o vagabundo e a cega. E é preciso, no entanto, chamar a atenção para a solução encontrada por Chaplin, no final, não só por evitar um happy end inteiramente implausível, mas por saber captar, num close do rosto do vagabundo, a expressão de dor que ele tenta disfarçar num sorriso. Essa imagem do rosto de Carlitos resulta no que, talvez, seja o mais genial de todos os finais de filmes da História do cinema. Fico pensando se Woody Allen não se inspirou nele para o de A Rosa Púrpura do Cairo. Em Bergman é que não foi.
Mas mesmo sem esse final, Luzes da Cidade ainda manteria o status de grande obra em razão do humor. (Aliás, é graças ao elemento humorístico que a obra de Frank Capra ainda desperta interesse.) É uma quase ininterrupta sucessão de gags engraçadíssimas que deixam o espectador na árdua tarefa de escolher a mais bem elaborada. A sequência da festa, na casa do milionário, que culmina com um apito entalado no esôfago de Carlitos? A luta de boxe? O jantar no restaurante aonde o vagabundo é levado pelo milionário generoso quando bêbado? Difícil, muito difícil escolher.
Rever Chaplin (e, também, Keaton, Lloyd, o Gordo e o Magro,, mas principalmente Chaplin) é antes de mais nada obrigatório, diante da indigência criativa de que padecem as comédias atuais.
NOTA DE HOJE - Revi o filme faz pouco tempo, em DVD, e pude ver que a sua grandeza continua. E, curioso, achei o sentimentalismo mais diluído no elemento humorístico e na poesia simples que o filme irradia. Agora, uma curiosidade. Uma descoberta de Chaplin, a atriz Virginia Cherrill, que interpreta a jovem cega, fez apenas mais treze filmes depois da sua estréia. E nenhum deles memorável, inclusive uma comédia de John Ford, A Garota. Encerrou, prematuramente, a carreira em 1936. Morta em 1996, aos 88 anos, por coincidência a mesma idade com que faleceu o seu descobridor.