quarta-feira, janeiro 19, 2005

LEMBRANÇA DE NARA

A voz era deste tamanhinho. Mas os seus fãs nem estávamos aí com isso. Nem reparávamos nela. O que importava era o bom gosto na escolha das músicas. A inteligência. A sensibilidade. A lucidez política. E, acima de tudo, a irradiante simpatia que quase a transformava em alguém com que convivêssemos no dia-a-dia. O jeito tranquilo não permitia que se pensasse nela como capaz de atitudes corajosas, e, no entanto, ela usou também a voz para protestar contra os horrores praticados no período negro da ditadura militar. E por sua coragem (que faltou a tantos ídolos populares da época), foi ameaçada de ser punida pela tal Lei de Segurança Nacional.
Nara esteve em Natal este ano, mas não pude vê-la. Não fui um fã ardoroso dela, nem dos mais fiéis (tenho, além dela, mais três cantoras preferidas: Isaurinha Garcia, Elizeth Cardoso e Doris Monteiro; gosto de algumas outras, mas essas quatro são as preferidas). Acho que foi em 1982 que a vi no Teatro Alberto Maranhão, como participante daquele Projeto Pixinguinha. Debaixo do braço eu levava, não um violão (como diziam os versos de um dos seus maiores sucessos), mas o seu último disco lançado, NARA: NASCI PARA BAILAR, em cuja capa Nara, linda, aparece envolta num véu vermelho. Estava disposto a lhe pedir que o autografasse. Foi o que fiz, vencendo uma crônica timidez. Ela nos atendeu, depois da apresentação, a todos que ali estávamos para lhe falar, com delicadeza e o sorriso constante, que, paradoxalmente, não a tornava bonita, pois lhe expunha os dentes ressaídos. Quando disse o meu nome, Nara sorriu e revelou que tinha um filho também chamado Francisco. Eu já sabia, mas fiquei calado, porque Cacá Diegues, seu ex-marido, dedicara o filme Chuvas de Verão a ele e à filha Isabel. Eu estava nas nuvens quando saí do teatro. Falara com Nara e obtivera o seu autógrafo, que guardo como uma relíquia. A mesma sensação tida anos antes com a atriz Glauce Rocha, outro dos meus ídolos.
Dias depois, num encontro com um amigo, soube que Nara apresentara problemas de saúde na estada em Natal. Quem sabe se já não seriam os primeiros sintomas da doença que agora a matou?
NOTA (1) Este artigo foi publicado num jornal de Natal, poucos dias depois da morte de Nara Leão, ocorrida em 7,6,1989, quando estava com 47 anos. É aqui republicado como uma homenagem à cantora no dia do seu aniversário de nascimento. Se ainda viva, ela estaria , hoje, completando 63 anos.
NOTA (2) No problema com os milicos, Nara teve o apoio dos maiores expoentes do teatro, da literatura, do jornalismo, da MPB, que protestaram contra o risco de ela ir parar na cadeia. O mais ilustre dentre eles foi o poeta Carlos Drummond de Andrade, que publicou um poema no Correio da Manhã, dirigido ao Marechal Castelo Branco, o ditador da época. Segundo escreve o jornalista Sérgio Cabral, na biografia sobre Nara. ela telefonou para Drummond, agradecendo-lhe o gesto. E em seguida comentou com muitos dos amigos: "Vale a pena comprar qualquer barulho para ganhar um poemas desses". Grande Drummond! Grande Nara!
E por falar em poeta, o meu querido amigo Horácio Paiva me enviou um poema para sair neste blog, o que faço com grande prazer. Não só pelo amigo, mas pelo seu talento poético. Horácio estreou tardiamente na literatura. Seu livro Navio entre Espadas saiu há uns 2/3 anos. Mas já soube que brevemente ele já estará lançando seu segundo livro. Vamos ao poema.
NA CALADA DA NOITE
"En una noche oscura/ con ansias en amores inflamada" (San Juan de la Cruz)
Na calada da noite
na harmonia das sombras
o meu amor me espera.
As flores estão orvalhadas
e se revela no céu
um buquê de estrelas
e de segredos.
Não há testemunhas no jardim
que se faz éden para os dois
e ninguém que possa censurar
este amor sonâmbulo,
esta paixão
na calada e no sereno da noite.

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