sábado, julho 21, 2007

O CÃO CHUPANDO MANGA

Esta é uma expressão usada aqui em Natal. Aliás, quase não mais usada. Há muito tempo que não ouço alguém dizê-la "O cão chupando manga" é a pessoa que faz coisas de que até Deus duvida, algumas que não são exatamente admiráveis. Um sujeito esperto, inteligente , entre outros talentos. Também uma expressão que já não ouço é "de rosca". Rosca, aquela parte de um parafuso. Diz-se de uma coisa que está demorando a ser executada. Me lembro que a ouvia, ainda nos anos 1960, quando estava numa lanchonete. O freguês pedia o seu sanduíche, o bicho demorava a chegar, aí o sujeito, com uma fome daquelas, reclamava do garçom. "Puxa, como tá demorando. É de rosca"?
Sou um apaixonado por essas expressões populares. E sempre que, lendo um livro, encontro alguma que não conheço, não só a sublinho, como a anoto. Porque os escritores gostam de usar palavras ou expressões que estão na rua, nos bares, nas conversas de pessoas, das menos letradas às cultas. E grandes escritores. Machado, o nosso maior deles, às vezes fazia um intervalo na sua linguagem elegante e colocava uma frase popular. Em mais de uma ocasião, parecia ser a sua preferida, ele citou esta: "vender azeite às canadas". Essa expressão diz-se de alguém furioso com algo que lhe aconteceu. Curioso é que ela é de origem pernambuca. Soube disso uma vez no balaiovermelho, (hoje chamado de Balaio Porreta 1986) de Moacy Cirne. Estranhei a menção a ela do carioca Machado, que, pelo que me consta, nunca esteve em Pernambuco. Acho que, a exemplo de Nelson Rodrigues, nunca saiu do Rio. Sou forçado a acreditar que ele a tenha ouvido do amigo Joaquim Nabuco, que era daquelas bandas. Outro grande escritor, o velho Graça, que não tinha a elegância de Machado, era mais afeito a palavras e expressões populares. Uma que ele usou com alguma frequência foi "ossos de minhoca". José J. Veiga, o fabuloso goiano que escreveu, entre outros, o belíssimo livro de contos "Os Cavalinhos de Platiplanto", também gostava de fazer isso.
Outro dia, lendo o último livro de Luiz Vilela, "Boris e Doris" (uma novela toda escrita em diálogos), deparei-me com esta pergunta que Boris faz a Doris: "Você está com a avó atrás do toco"? Sem nunca ter lido ou ouvido essa expressão, corri para o Aurélio e, por sorte, ela estava lá. "Amanhecer com a avó atrás do toco" refere-se a alguém que acordou de mau humor, irritado. É originária de Minas, terra de Vilela. E me lembrei de Claudinha, de transmimentosdepensações, que é também daquele Estado. Será que ela conhece esse dito popular? Como é uma expressão que parece ter caído em desuso (Doris ri com a pergunta , afirmando que há muitos anos não a ouvia), pode ser que não. Mas creio que os seus pais a conhecem.
Voltando a Natal, havia outra expressão popular que ouvia com certa frequência, mas, a exemplo das outras duas citadas, deixou de ser dita. "Casar Bebé com Memé", ou seja, quando há uma forte afinidade entre duas pessoas, ou, o mais apropriado, quando duas coisas combinam à perfeição.
É uma pena que essa fala do povo, principalmente do nordestino, esteja desaparecendo. Hoje a pessoa que mora na cidade mais atrasada fala a gíria, as expressões do Rio e de São Paulo (as deste em menor escala), que ela ouve nas novelas que a Globo anestesia cada vez mais o telespectador analfabeto ou semi-analfabeto. E o governo (não é só o atual) "nem tem ligo".
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Amigos e Amigas visitantes deste blogue. Na próxima segunda estarei fazendo uma cirurgia de catarata num dos olhos. Na segunda seguinte, será a vez do outro olho. Assim, o "Luzes da Cidade" ficará sem ser atualizado até a minha completa recuperação. Até a volta.

sábado, julho 14, 2007

UMA MULHER CHORANDO


Este conto foi aqui publicado em 7.11.05. Sai outra vez, não apenas por não ter um assunto novo, mas para uma avaliação ou reavaliação dele. Vamos lá.
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Três vezes perguntara por que ela estava tão calada. E ela sempre a responder que não era nada. Na terceira vez, quando perguntou se estava ressentida com algo que lhe fizera, Helena denotou, no tom ríspido de voz, um começo de irritação com a inquirição dele. Sentindo a reação dela, Ramiro achou prudente parar com aquelas perguntas. O certo seria buscar algum assunto, por mais trivial que fosse, para tirá-la daquele mutismo que o desconfortava. Como tinha sido o dia dela no trabalho? Bem, ela respondeu, lacônica. Afinal convencido de que não podia arrancar mais nenhuma palavra de Helena, ele resolveu também se calar. Assim mudos passaram o restante do jantar, um só abrindo a boca para pedir um prato que estivesse mais ao alcance do outro.
Ao deixarem a mesa, Helena foi escovar os dentes, enquanto ele foi ligar a televisão. Depois ela iria para junto dele. Era assim todas as noites, até mesmo quando iam sair. Mas naquela noite, quando voltou do banheiro, ela disse que tinha um "horror" de provas para corrigir e não podia perder tempo. "Mas não dá pra você ficar nem um pouco"? "Não dá. Eu tenho que devolver as provas amanhã". A atitude dela deixou-o ainda mais preocupado. Ela nunca procedera daquela maneira. Algum problema a estava perturbando, mas ela não queria revelá-lo. E enquanto as imagens do telejornal iam passando a sua frente, ele não se dava conta do que elas mostravam, nem ouvia direito as falas, pois o pensamento se concentrara na busca de um ato seu, um gesto, uma palavra áspera, que a tivessem magoado. Vasculhou a mente, tentando rememorar fatos do dia, da noite anterior, até mesmo quando estavam na cama nos momentos de amor. Em vão. Nada. O melhor é esperar até amanhã, talvez ela me diga o que está acontecendo. E continuou vendo, sem ver, o que se passava na televisão.
Ao entrar no quarto, Helena trancou a porta, mas não foi para o birô. Dirigiu-se para a janela. Mas, como o marido diante da tevê, ela não "via" a profusão de luzes iluminando aquela pequena parte da cidade. Meditava sobre a sua vida. A bem dizer, continuava uma meditação que começara já há algum tempo. E a cada dia que passava, mais tomava consciência da falta de sentido em que a sua vida se transformou com a irrealização de sonhos por tantos anos acalentados, a morte das ilusões, a perda da esperança. E o pior: sem vislumbrar um aceno sequer de mudança. E o casamento? Todos os conhecidos, amigas, os familiares colocavam Ramiro num altar, ela tirara a sorte grande ao encontrar um homem de muitas qualidades, trabalhador, bem-educado, excelente profissional e, por cima, sempre apaixonado pela esposa. Sim, Ramiro podia ser tudo isso, mas havia algo nele que Helena não sabia discernir (e nem eram os pequenos defeitos que toda pessoa, mesmo as melhores, tem), que a fazia não se sentir a mulher tão invejada. Quem sabe se a culpa não era dela? E das outras coisas era também culpada? Da profissão que já não a satisfazia, da falta de estúmulo para continuar lecionando? Do convívio com a maioria dos colegas e das amigas? Teria ela toda a culpa por não encontrar mais naquelas pessoas o que buscava para uma existência mais fácil de ser levada?
Tudo isso tinha se incrustado à vida de Helena, como uma dor persistente, e nesses últimos dias ela vinha se sentindo cada vez mais infeliz, embora procurasse disfarçar, sobretudo de Ramiro, todo o sofrimento. Mas naquela noite nem a ele conseguira enganar. Que assim seja, disse para si mesma.
E, de repente, enquanto olhava a parte da cidade inundada de luz, voltou-lhe à lembrança um fato que presencisara em sua adolescência. Um fato ocorrido há muitos anos na vida de uma pessoa, que nunca saíra de sua mente. Vez por outra se via a recordá-lo e não foram poucas as pessoas, através dos anos, às quais contou o sucedido. Até a Ramiro ela contou. Era uma mulher da sua cidade. Uma fina doceira. Seus doces, das mais variadas espécies, eram motivo de comentários não só naquela cidade, mas nas cidades vizinhas. Até à capital do estado a sua fama havia chegado. Solteira, devia ter, na época, quarenta e poucos anos. A família de Helena era, como as demais famílias da mesma classe social, freguesa de Amália. E uma tarde a mãe de Helena mandou-a à casa de Amália, para comprar o doce de leite de que o marido tanto gostava. Lá chegando, Helena bateu palmas três vezes, ninguém apareceu. Nem Amália, nem uma sobrinha que morava com ela, tampouco a empregada. A porta da frente estava só encostada. Helena, acostumada a frequentar a casa para visitar a sobrinha de Amália, foi entrando enquanto dizia sou eu Amália. Tão logo pôs os pés dentro da casa, deparou-se com uma cena que a deixou entre chocada e penalizada. À mesa das refeições estava Amália. A cabeça curvada, as mãos tapando quase todo o rosto (só os olhos descobertos), a doceira chorava. E o choro não era silencioso - a mulher chorava como uma criança quando apanha. De tão intenso o choro, os braços tremiam. "Amália, o que foi que houve"? Helena chegou para perto dela e repetiu a pergunta, mas Amália parecia não dar pela presença dela e continuava a chorar. "Aconteceu alguma coisa com Eliane"? E Amália sem responder. Helena pôs a mão sobre a cabeça dela e fez um afago. Durante um minuto ou mais manteve a mão sobre a cabeça de Amália, como se a leve pressão da mão pudesse aliviar a dor da mulher. Depois foi saindo devagarinho, olhando para a pobre mulher, a quem sempre vira alegre e tão disposta.
E ao recordar mais uma vez a cena lastimável, Helena pôde compreender, depois de tantos anos, o sofrimento daquela mulher numa tarde longínqua. E sentiu-se na pela de Amália, a fina doceira, a mulher tão elogiada e respeitada pela sua arte na culinária. Então, de repente, veio-lhe, incontrolável, a vontade de repetir o ato de Amália. E lágrimas lhe vieram ao rosto. Helena chorava. Mas, ao contrário do choro de Amália, o seu era silencioso. E assim ficou por muito tempo, deixando as lágrimas banharem-lhe o rosto.

sábado, julho 07, 2007

UM FILME-ROMANCE

Em seu livro "O Cinema" (Brasiliense/1991), escreveu André Bazin que "Paisá [Rosselini] é provavelmente o primeiro filme que equivale rigorosamente a uma antologia de contos". E acrescenta: "A duração de cada história, a estrutura, sua matéria, sua direção nos dão pela primeira vez a impressão exata de um conto". Já "Hannah e Suas Irmãs" ("Hannah and Her Sisters"/1986), de Woody Allen, passa a impressão de que foi concebido como um romance. A narrativa é constituída de partes bem delimitadas, cada uma delas contendo um título. E o fato de um "capítulo" ter por título um verso de um poema de e.e. Cummings e outro uma frase de Tolstoi reforça essa impressão. Acrescente-se que é possível que o roteiro tenha se inspirado na peça "As Três Irmãs", de Tchecov, que foi também um escritor de contos, alguns dos quais contendo as dimensões de uma novela (ou um romance curto).

Reafirmando o destaque no próprio título, Hannah (Mia Farrow) é o personagem central do filme. É a líder daquela família, ora apartando uma briga entre os velhos pais, ora servindo de confidente ou conselheira para as irmãs Lee (Barbara Hershey) e Holly (Dianne Wiest), mas uma pessoa doce, amável, que, apesar de amar o segundo marido Elliot (Michael Caine), mantém uma boa relação com Mickey, o primeiro marido (Allen). O seu personagem é importante até por uma tensão (involuntária de sua parte) no seu casamento com Michael, quando este tem uma paixão avassaladora pela cunhada Lee, que vive com o insociável pintor Frederick (Max Van Sidow). (Uma cena marcante, pelo toque de lirismo e ternura, mostra os dois dançando em um apartamento de um hotel no "capítulo" Tardes.)

Estamos diante de uma comédia romântica, como aquelas que o cinema americano fazia tão bem nas décadas de 1930 e 1940, inclusive com o final feliz. Mas há também aquele humor inerente aos filmes de Allen, principalmente naquela época em que os seus filmes tinham um vigor criativo que foi arrefecendo ali pela metade dos anos 1990. O personagem de Allen , então, é de nos levar às risadas, com a sua insuperável hipocondria. E não faltam as piadas inteligentes, sempre mirando no modo de viver e de se comportar do americano.

Allen ainda presta algumas homenagens. A Bergman, de quem é, sabidamente, uma tiete, na escolha do ator Max Von Sidow, que trabalhou em vários filmes do mestre sueco. Aos Irmãos Marx, exibindo uma parte de um dos seus filmes, ao qual Michey vai assistir depois de uma tentativa de suicídio (por achar que está sofrendo de uma doença incurável) e sai do cinema com a alma leve e achando que a vida merece ser vivida. (Aí também poder-se-ia aventar a hipótese de que a homenagem se estenderia ao próprio cinema.) E sobre o título? Seria uma homenagem ao Visconti de "Rocco e Seus Irmãos"? Embora me parece que seja Fellini o diretor italiano preferido de Allen, pode ser que ele tenha querido reverenciar o esteta Visconti, inclusive porque há, no filme, a apresentação de uma ópera de Puccini. E, como sabemos, Visconti, que empregou o seu gênio no teatro dramático, também o fez no operístico.


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CURIOSIDADES/INFORMAÇÕES SOBRE O FILME


1. Maureen O'Sullivan que interpreta a mãe de Hannah era mãe de Mia Farrow. Mia, cujo nome é Maria de Lourdes, é fruto do casamento de Maureen com o diretor John Farrow. Nos primeiros anos de sua carreira, Maureen trabalhou em filmes de Tarzan, fazendo o papel da Jane.

2. Este foi o derradeiro filme de Lloyd Nolan, que atua como pai de Hannah. Nolan foi um bom coadjuvante, que apareceu, com frequência, em filmes das décadas de 1940/50.

3. "Hannah e Suas Irmãs" ganhou os Oscars de Melhor Ator Coadjuvante (Michael Caine), Melhor Atriz Coadjuvante (Dianne Wiest) e Melhor Roteiro Original, escrito pelo próprio Woody Allen.