quarta-feira, março 26, 2008

A CARRUAGEM DE OURO (Le Carrosse d'Or/1952)



Com a eclosão da Segunda Guerra, Jean Renoir mudou-se para os Estados Unidos. Ao contrário de seus compatriotas René Clair e Julien Duvivier, sua experiência americana não foi bem-sucedida. Talvez por ser o mais francês dos diretores, na afirmação de Georges Sadoul, ele não tenha conseguido se adaptar à cultura daquele país, nem ao processo de produção de filmes em Hollywood. Ele só voltaria ao cinema europeu, não na França, mas na Itália, com "A Carruagem de Ouro", e entre este e seu último filme americano, realizou, na Índia, "The River", que Andrè Bazin alçou à altura de obra-prima.
Pelo que se depreende do depoimento de Renoir nos Extras do DVD, a peça "Le Carrose de Saint Sacrement", de Prosper Mérimée, serviu, digamos, apenas como um ponto de partida para a concepção de "A Carruagem de Ouro". Na verdade, um amante do teatro, Renoir foi movido pelo propósito de prestar uma homenagem à "Commedia dell' Arte", um popularíssimo gênero teatral originário da Itália. Ele pretendeu fazer um filme que absorvesse o espírito do gênero, isto é, que a trama tivesse que se despojar de qualquer resquício de realismo, ou naturalismo. E além disso, eliminasse a fronteira entre o que se passa no palco e na realidade - realidade aqui no sentido da trama do filme. Quer dizer: que as apresentações realizadas pela trupe italiana que vai parar numa colônia espanhola (não identificada) na América do Sul se confundissem com a história (realidade) do filme. É o que ocorre com Colombina (Anna Magnani) no palco e, fora deste, Camila, cortejada por três homens: o Vice-Rei (Duncan Lamont), que lhe presenteia a carruagem de ouro que mandara buscar na Itália e transportada no mesmo navio em que Camila viera; o oficial espanhol Felipe (Paul Campbell), que a acompanhara na excursão, e o toureiro Ramon (Riccardo Rioli). No envolvimento com este, aliás, há um momento em que Camila passa de atriz para espectadora. Uma cena de belo efeito cinematográfico, iniciada com um "close" do rosto dela, seguida por um "traveling" que vai até à arena.
Por falar em Anna Magnani, não se pode deixar de relevar o desafio de Renoir ao escolhê-la para viver um personagem tão diverso, até mesmo antagônico, dos que ela interpretara até então. E devido à natureza do seu personagem, La Magnani contém certos excessos que marcaram os seus desempenhos, a despeito do seu inquestionável talento interpretativo. Ela, inclusive, teve que aprender inglês (o filme tem uma versão nesse idioma, que é a deste disco, com vistas a atingir o mercado anglo-americano), porque Renoir pretendia que o inglês falado pela atriz, impurificado pelo forte acento italiano, tivesse um efeito expressivo, confrontado com o dos intérpretes nativos da Inglaterra, que compõem a maioria do elenco.
Com uma carreira iniciada ainda no cinema mudo, apenas pela segunda vez Renoir fazia uso da cor, sendo a primeira no já mencionado "The River". E ela constitui-se em um elemento fundamental no resultado do filme. Contando com a colaboração valiosa do fotógrafo e seu sobrinho Claude (com quem trabalhou em tantos filmes), o diretor empenhou-se em que a cor casasse perfeitamente com o cenário, os figurinos e a iluminação. Há outro importante colaborador, e, como diz Renoir em tom de "blague", é do tipo que não dá problema, que concorda com o realizador em tudo, pois já não está neste mundo. Trata-se de Vivaldi, que com seu peculiar estilo musical contribui para que o filme tenha a leveza de outros tantos do diretor.
Pelas qualidades artísticas e pela atração do enredo, "A Carruagem de Ouro" talvez seja o filme em que Renoir tenha conseguido promover a união dessas duas categorias geralmente inconciliáveis, ou seja, a crítica e o público.

terça-feira, março 18, 2008

A SEMANA SANTA DA MINHA INFÂNCIA

Quadro Cristo Morto, de Andrea Mantegna (1431-1506).

Todos os anos, quando chega a Semana Santa, eu me lembro da minha infância naquele período. As lembranças se acumulam, principalmente as da Sexta-Feira Santa: as imagens de santos cobertas por um pano preto ou roxo (não me recordo com precisão), o sacristão percorrendo o pátio da Basílica, em intervalos de quinze a vinte minutos, se muito, carregando a matraca e fazendo-a soar um ruído alto e enervante; a imagem de Cristo deitado, exposta no centro da igreja para receber o ósculo dos fiéis, ordenados em fila indiana; a procissão à tarde, com a Verônica, representada por uma moça, exibindo em um pano a face ensanguentada de Jesus.

Me lembro, ah, se me lembro, de que em uma certa hora (a memória não me deixa dizê-la), anunciada pelo relógio da Basílica, minha mãe, a voz alterada pela emoção, afirmava que naquele momento começava a agonia de Jesus.

Muitas pessoas, especialmente as mais humildes, não tomavam banho naquele dia, um hábito talvez ainda preservado nas cidades mais atrasadas deste imenso país. E as rádios só tocavam músicas fúnebres.

Já o Sábado de Aleluia era outro dia, e não apenas no sentido cronológico. À tarde uma multidão se reunia na praça do mercado público para ouvir de alguém a leitura do testamento de Judas. A cada objeto legado por Judas a um habitante da cidade, as risadas explodiam. (Um dos meus irmãos, que não perdia por nada esse espetáculo, ao voltar para casa, relembrava alguns desses legados e os respectivos herdeiros.)

No outro dia era o Domingo da Páscoa, da ressurreição de Cristo. Terminava a Semana Santa e na segunda-feira os cristãos voltavam a "pecar".


quarta-feira, março 12, 2008

AS MANGAS



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Sábado, fim de tarde, bebia em um bar que descobrira da primeira vez em que estivera naquela cidade. Encantara-se com o ambiente, ao ar livre, duas frondosas mangueiras na entrada, a área suficientemente espaçosa para quem desejasse isolar-se dos outros clientes. Não frequentara outro bar, durante os dias em que permanecera na cidade, e, ao voltar, após muito tempo, procurou-o e ficou feliz por ele ainda estar funcionando.
O ambiente (mas sobretudo a hora, quando diminuía bastante o número de frequentadores) estimulava a meditação a quem estivesse ali sozinho - e ele estava absorvido em pensamentos que se sucediam em uma intensa celeridade, como se o próprio cérebro se recusasse a reter cada um deles por mais de uns dois minutos. De repente, foi desviado dos pensamentos por um barulho de vozes. E o que lhe despertou a atenção é que o barulho não era igual ao de pessoas envolvidas em uma altercação, tão comum em mesa de bar. O tom das vozes era alegre, de animação, mais identificado com a bulha de crianças quando estão brincando. Percebeu que as vozes procediam do lugar onde se erguiam as mangueiras, e, impresssionado, além de curioso, deixou a mesa e caminhou para lá. Ao se aproximar, teve uma enorme surpresa: três marmanjos atiravam pedras nos frutos pendentes de uma das mangueiras, tentando derrubá-los. Três homens de meia-idade brincando feito crianças, em um lugar para adultos. Imaginou que eles, ainda há pouco, estivessem a ponto de se digladiar em uma estéril e desgastante discussão sobre os políticos, e, de repente, tinham-na abandonado, ao descobrirem aquelas mangas maduras oferecendo-se para serem colhidas.
A cena, insólita, era capaz de atiçar a zombaria, mas, ao mesmo tempo, havia nela um elemento de nostalgia da infância, que lhe calou fundo. Observando aqueles homens de idades batendo mais ou menos com a sua, que buscavam, talvez inconscientemente, recuperar um momento do tempo de meninos, ele se viu também menino, galgando muros proibidos para roubar mangas, subindo em árvores, atirando pedras nos frutos. E, então, veio-lhe intensa a vontade de reunir-se aos coroas, e, de posse de uma pedra, atirá-la contra as mangas. Depois de derrubá-las, as juntaria em um saco plástico, levando-as para chupá-las no quarto do hotel.
Mas, inesperada, alguma coisa o tolheu. Talvez o receio de não ser bem acolhido pelos homens; ou, quem sabe, parecer a si mesmo ridículo, ainda que não tivesse dos estranhos a mesma impressão. Certo é que, resignado, voltou para a mesa e os pensamentos.

quarta-feira, março 05, 2008

UM DEBATE SOBRE BOCCACCIO 70



Em 1966 Gilberto Stabili e eu, membros do Cineclube Tirol, de Natal (ele presidira a entidade no ano anterior) , escrevíamos uma coluna no jornal Correio do Povo. Eu escrevia num dia, ele no outro. Uma feita, Gilberto me propôs fazermos um debate sobre "Boccaccio 70", filme constituído de 3 episódios, dirigidos por Fellini ("As Tentações do Dr. Antônio), Visconti ("O Trabalho") e De Sica ("A Rifa"). Aceitei o desafio e uma noite fui à casa da irmã de Gilberto, onde ele residia. Ficamos no quarto dele. Ele passava para um papel tanto as suas opiniões sobre os 3 episódios, quanto as minhas. Depois datilografou. Foi um debate curto, devido às limitações do espaço de que díspunhamos no jornal. Achei que podia ser de interesse divulgar esse "confronto" entre dois jovens na casa dos vinte anos (ele mais velho um pouco do que eu, mas com uma vivência de cinema de já um veterano, comparada com a minha). Eis o que escrevemos naquela noite já distante, que saiu no jornal uns dois a três dias depois.
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Sobreira - "Boccaccio 70" é um filme de finalidade comercial, apesar de assinado por três grandes nomes do cinema italiano. Em busca de lucro para os seus empreendimentos, os produtores parecem ter verificado que já não bastam um bom elenco e um bom enredo, mas também que o filme seja dirigido por um cineasta famoso.
- Stabili - Que a finalidade é comercial basta ver que o inspirador - Giovanni Boccaccio - foi um satírico popularesco, justamente famoso também pelo conteúdo erótico das suas narrativas. Mas não importa a intenção comercial se a idéia é boa e os diretores têm a liberdade de dizer.
Sobreira - E porque por trás de tudo está o dedo do homem que financiou, tais filmes em geral nunca são bem realizados, existindo sempre desarmonia entre as histórias tratadas por diferentes realizadores, alguns deles saindo-se bem da empreitada, outros decepcionando. Pessoalmente, prefiro a parte de Visconti. A meu ver, ele foi, dos três diretores, o único que resistiu à finalidade comercial do filme. Por isso conservou-se fiel a si mesmo, fazendo uma história séria, sem fugir à sua temática ou ao seu estilo.
Stabili - As diferenças são mais resultantes das peculiaridades de estilo, cabendo as dissonâncias em relação ao tom geral à responsabilidade de cada diretor. Salvo quanto ao nível de qualidade de cada episódio, que depende, naturalmente, da competência de cada autor. Na minha opinião, é Visconti o destoante do espírito de "Boccaccio 70", precisamente por adotar uma linguagem séria para tratar de um tema de ironia cruel, um "entreato cínico e depravado", na expressão de certo crítico. Não precisava Visconti fugir à sua temática e sim adaptar o seu estilo ao espírito do episódio.
Sobreira - "O Trabalho", na minha opinião, é um episódio inteiramente viscontiano, de maneira que o espectador familiarizado com o estilo do autor de "Rocco e Seus Irmãos" não tem dificuldades em identificá-lo. Nele estão presentes o plano bem elaborado, a preocupação pelo detalhe, o extremo bom gosto, o estilo fino e requintado, a elegância formal. Acresce a isso a classe ao tratar cenas mais ousadas (o strip-tease de Romy Schneider) e a expressividade dos grandes planos de rostos.
Stabili - Por ser "viscontiano", não impede também de ser destoante e meio-frustrado. Todos os valores e características que você mencionou estão em "O Trabalho" servindo insatisfatoriamente ao espírito e ao clima dramático do episódio. O tratamento teria de ser mais leve e isso só seria possível mediante uma forma menos elaborada, pesada e um tanto teatral como é.
Sobreira - Com relação a algum teatralismo, isso se vê em todos os filmes de Visconti (até em "Rocco") , e se explica pelo fato de ele pertencer tanto ao teatro quanto ao cinema, sentindo, por isso, a influência de um sobre o outro.
Stabili - Em "Rocco" o clima pesado era exigência da história. Em "O Trabalho", não.
Sobreira - A parte de Fellini é muito boa tecnicamente e está servida brilhantemente pelo desempenho de Peppino de Filippo, no papel do Dr. Antônio. O que a prejudica é o tom de certo exagero como Fellini assesta as suas baterias contra as pessoas que o criticaram pelo seu filme "A Doce Vida". A vingança da sua resposta atinge, algumas vezes, o delírio, o que diminui, em consequência, o efeito da sátira.
Stabili - Em "As Tentações do Dr. Antônio", Fellini usou seu talento prodigioso e a técnica cinematográfica, que domina como poucos, para expor ao ridículo os falsos moralistas que condenaram "A Doce Vida" e continuam a fazer a censura moral. Mas não somente para isso. O desabafo de Fellini atinge toda a hipocrisia - nos costumes, moral, instituições, até na arte - e é a favor da liberdade. Sua sátira caricaturesca é terrível, de uma crueldade muitas vezes injusta, e isso de fato diminui a validade da crítica, mas ela é, sem dúvida, a coisa mais inteligente (e mais cinematográfica) de "Boccaccio 70".
Sobreira - O último episódio, dirigido por De Sica, é muito inferior aos demais. Além de apresentar uma narrativa ultrapassada, "A Rifa" peca, sobretudo, pela grosseria e pelo extremo mau gosto, presentes tanto nas situações humorísticas de baixa categoria, como nos diálogos.
Stabili - Concordo inteiramente com você. Chamo a atenção para aquela comparação dos homens de Lugo com animais, quando a câmera passa sucessivamente de um grupo de porcos a um grupo de homens, no começo do episódio.
Sobreira - E como se isso não bastasse, houve a intenção de explorar Sophia Loren não como atriz, mas como mulher possuidora de inegáveis atributos físicos. É uma pena que De Sica e Zavattini tenham caído tanto. Salva-se a apresentação do problema social, que leva uma mulher a submeter-se à humilhante situação de oferecer-se como prêmio de uma rifa.
Stabili - A exploração dos atributos físicos de Sophia se faz dentro da anedota picaresca, e isso não contraria a empresa (inspirada em Boccaccio). A grosseria não é a erótica, e sim a ideológica, e pior do que isso, a da expressão.
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NOTA - "Boccaccio 70" é constituído de 4 episódios. O quarto, de Mario Monicelli ("Renzo e Luciana") foi interditado pela censura da ditadura militar, quando o filme foi lançado neste pobre país. Mas está presente no DVD do filme, lançado já há algum tempo.