quarta-feira, fevereiro 27, 2008

O BEIJO DE UM JOVEM EM MACHADO DE ASSIS


Vale a pena relatar, no ano em que transcorre o centenário de falecimento de Machado, um episódio envolvendo o autor de "Dom Casmurro" e um jovem de quase dezoito anos. O rapaz, sabendo através do "Jornal do Commercio", que Machado estava à beira da morte e querendo conhecer o escritor que admirava, partiu às pressas para a casa dele. Lá chegando, encontrou alguns escritores que faziam vigília a Machado na sala de estar, entre os quais estava Euclides da Cunha. Apesar dos seus apelos, os presentes não lhe queriam satisfazer o desejo. Machado dormia no seu quarto, mas o barulho de vozes o despertou, e, tomando conhecimento do que ocorria, permitiu que o jovem fosse até a ele. O jovem chegou ao lado da cama em que Machado estava, e, sem dizer palavra, ajoelhou-se e lhe beijou a mão. Ainda em silêncio, levantou-se e foi embora. Sem se identificar também aos presentes, aos quais dissera, ao chegar, ser "um grande admirador do escritor".
Isso se deu em 28 de setembro de 1908. No dia seguinte Machado morreria. Em artigo no mesmo jornal, dois dias depois da morte do escritor, intitulado "A Última Visita", Euclides relatou o ocorrido e escreveu : "Naquele meio segundo em que ele estreitou o peito moribundo de Machado de Assis, aquele menino foi o maior homem de sua terra", acrescentando que "qualquer que seja o destino desta criança, ela nunca mais subirá tanto na vida". Quatorze anos depois, "o menino", "a criança", seria um dos fundadores do Partido Comunista Brasileiro. Seu nome: Astrojildo Pereira.
Nascido em Rio Bonito (RJ) em 1890, Astrojildo conservou a admiração por Machado até morrer em 1965, chegando, inclusive, a escrever um livro sobre este, que o jornalista Sérgio Augusto chamou de "um precioso estudo sociológico" em artigo publicado no "Estadão". Também conservou-se comunista, apesar de ter sido expulso do Partidão, pela acusação de ser "um intelectual pequeno-burguês". (Aliás, por manter-se partidário da doutrina comunista, Astrogildo, já um homem enfartado, foi preso pela ditadura militar, em 1964. Solto três meses depois, graças ao empenho de jornalistas, escritores e artistas, no ano seguinte sofreria outro enfarte, dessa vez fatal.)
Ainda segundo Sérgio Augusto, por sua formação literária, apesar de ter abandonado os estudos formais em plena adolescência, Astrojildo atraiu a admiração de "intelectuais tão díspares quanto Otto Maria Carpeaux (que discursou no sepultamento dele) , Gilberto Freyre, Oswald de Andrade e Antonio Candido. Até o ferrenho anti-comunista Nelson Rodrigues reverenciava a figura e a opinião de Astrojildo" E era um homem de fino trato. Antonio Carlos Vilaça, que o conheceu já velho, descreve-o em "Os Saltimbancos da Porciúncula" (Record 1996) , como um homem extremamente doce, gentil, suave e muito discreto.
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NOTA - O artigo de Sérgio Augusto ("O Comunista Que Beijou Machado", de 2001, salvo engano) , está no saite www.digestivocultural.com/, cedido gentilmente a este pelo autor.

quarta-feira, fevereiro 20, 2008

A PANTERA



Conto já publicado neste blogue em novembro de 2006.
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Bonita. Muito bonita. Os olhos bem abertos, agateados, que davam ao rosto um ar de pantera, a boca parecendo ter o tamanho certo - nem grande, nem pequena. Os braços - e aí um pequeno senão na sua beleza - eram um pouco musculosos, assim formados, certamente, por exercícios em uma academia. Quando a viu pela primeira vez, ela surgindo de repente, com o olhar provocador, foi tomado por uma sensação estranha. Um impacto. Ou, antes, um susto pelo inesperado da presença da moça, como algo ameaçador, embora revestido de beleza. Ela estava colada à vitrine da parte lateral de uma perfumaria, localizada num centro comercial. O que sentiu, de tão forte, quase como se percebesse uma ameaça de agressão (e a beleza dela tinha um quê de agressivo), o fez olhar rapidamente para a moça e continuar a caminhada de todo final de tarde, dando várias voltas pelos dois longos quarteirões, no primeiro dos quais se situava aquele centro comercial. Seguiu com a imagem da moça na cabeça. Atingiu o fim do segundo quarteirão, dobrou à direita, passou em frente a um antigo colégio, depois pegou outra vez a direita e foi percorrendo os dois quarteirões do lado oposto, até alcançar outra vez o centro comercial. Era assim todas as tardes, quando começava a escurecer. Ao se aproximar da perfumaria, já se sentia preparado para não sofrer o mesmo efeito de minutos antes e foi até à vitrine, para examinar a moça. E, embora tocado pela agressividade de sua beleza, permaneceu uns dois a três minutos observando detalhadamente o rosto e a mão que segurava um frasco de perfume de nome inglês.
Ao voltar para o apartamento vazio, desfez-se da bermuda, do tênis, da camiseta, enxugou o suor do corpo, escolheu um cd, deitou-se na cama para ouvi-lo. Como fazia todas as tardes, antes de tomar banho e depois o jantar frugal. Mas daquela vez ocorreu uma quebra na rotina. Ouvia as músicas, mas sem a mesma concentração. Em algumas músicas até que a concentração era inteira (talvez porque fossem as de que gostasse mais) , já em outras a imagem da moça se sobrepunha e ele não tinha força para rejeitá-la. Quando mais tarde foi ler, em muitos momentos parecia "ver" a moça presente no relato. Houve uma vez que ao ler a descrição dos olhos de um personagem feminino, imaginou que eles fossem iguais aos dela. Interrompeu a leitura e, com o livro seguro na mão, pôs-se a pensar na moça. E pelo resto da noite não conseguiu livrar-se da sua imagem e teve a certeza, ao deitar-se, de que ela apareceria num sonho. Mas isso não ocorreu.
No dia seguinte, ao despertar o primeiro pensamento foi para ela. Rápido, veio a resolução de tomar a providência de evitá-la, alterando o itinerário da caminhada. Ficou cada vez mais distante da perfumaria, na certeza de que, não vendo a moça, ela sairia da sua cabeça.
A providência deu resultado, mas não imediato, por alguns dias a imagem da moça, o ar de pantera, o rosto de uma beleza perfeita surgiam, de repente, por entre as páginas de um livro, no meio de uma música, na tela da televisão.
Até que um dia ela desapareceu, afinal. Experimentou uma grande satisfação, como se tivesse ganho um prêmio. Com o passar do tempo, livre dela, chegou a pensar em vê-la outra vez, pois acreditava que não iria lhe acontecer mais nada, a não ser a indiferença. Saiu uma tarde disposto a retomar o antigo itinerário, mas, ao chegar a poucos metros da perfumaria, algo estranho o dominou, impedindo-o de seguir. Voltou, então, pela caminho que o levara até ali, continuando a caminhada no sentido das outras tardes. Enquanto andava, percebeu, num misto de decepção e raiva, que não estava de todo livre da presença dela.
Um dia foi ao centro da cidade. Fazia anos que não ia lá, para não ser incomodado pelo barulho dos carros de propagando e do número excessivo de pedintes e de pessoas oferecendo cartões de crédito, empréstimos, entregando papeizinhos de serviços diversos. Mas um amigo lhe dissera que tinha visto numa grande loja o cd que ele procurara, sem sucesso, em outros locais da cidade. Encontrou o cd, após uma busca que levou uns dez minutos, uma única unidade, escondido por outros discos, como se estivesse à sua espera. Pagou-o e, em vez de sair pela entrada, preferiu a porta dos fundos.
Ao passar pela seção de perfumaria, sem uma razão que justificasse o ato, como impelido por alguma coisa da qual não pudesse escapar, desviou a vista para a parede ao lado. E viu. No alto da parede, ela, os olhos parecendo mais agateados, a expressão no rosto parecendo ainda mais agressiva, olhando desafiadora para ele, como se quisesse saltar do pôster para cima dele. Virou-se com tanta rapidez que o corpo perdeu um pouco o equilíbrio e precisou apoiar-se numa prateleira para não cair. Logo em seguida, retomou a caminhada, apressado, esbarrando nas pessoas, sem se desculpar, ansioso para encontrar a saída. E mesmo depois de sair da loja, continuar a andar veloz, quase correndo, como se achasse que a moça tinha saltado do pôster e, tão rápida quanto ele, quisesse alcançá-lo. Nem quando entrou no carro, sentiu-se livre. Em disparada voltou para o apartamento.
E, à noite, sonhou com ela.
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- A mulher da foto é a atriz Simone Simon, no filme "Sangue de Pantera" (Jacques Tourneur/1942)
- O selinho acima, o segundo concedido ao "Luzes da Cidade"por ele, é mais um produto da generosidade do amigo Marco Santos, do blogue Antigas Ternuras

quarta-feira, fevereiro 13, 2008

MEDOS PRIVADOS EM LUGARES PÚBLICOS (Coeurs/2006)


Aos 84 anos, quando parecia já acabado para o cinema, Alain Resnais consegue surpreender com um filme que perturba o espectador e ao mesmo tempo o estimula à reflexão. Adaptado de uma peça teatral que tem o mesmo título do filme em português, Resnais nos apresenta a seis pessoas (três homens e três mulheres) solitárias (mesmo quando envolvidas num relacionamento amoroso, como Dan/Lambert Wilson e Nicole/Laura Montale) , perdidas, em busca de algo que dê um valor significativo a suas vidas, sempre confinadas em ambientes fechados (não há em todo o filme uma única cena externa) , como isoladas do mundo lá fora. Mas não têm êxito na sua busca quase desesperada. Nem mesmo um apartamento que a satisfaça Nicole consegue. Ela vive com Dan, um ex-militar à cata de um emprego, num apartamento de hotel, em cujo bar ele se embebeda todas as noites.
E há a neve. Incessante, vista dos interiores, ela acentua o fardo que aquelas pessoas carregam. A neve funciona também como um elemento de ligação entre as cenas. E já perto do fim, na conversa entre Lionel (Pierre Arditi) e Charlotte (Sabine Azéma) , no apartamento de Lionel, a neve parece estar junto deles, como se ali tivesse penetrado, mercê de um notável efeito técnico, que ainda torna a cena visualmente bela.
É talvez o maior momento do filme, porque além da presença do elemento técnico-estético, naquela conversa Lionel revela um pouco do seu passado; aliás, o único personagem a fazê-lo, já que se se sabe que Dan deixara a carreira militar, o motivo não é explicitado. Além de sabermos que Lionel era dominado pela mãe, uma mulher de temperamento forte, que chegou a expulsar de casa o marido, ocorre algo mais sobre ele: ao falar de um amigo de juventude, com quem aparece numa foto emoldurada que a câmera focaliza rapidamente, deixa a impressão de ser um homossexual.
Esses "corações" , amargurados pela frustração dos desejos, se cruzam no desenrolar da história. Nicole tem mais de um contato com o corretor imobiliário Thierry (André Dussolier) , que trabalha com Charlotte, por quem se sente fortemente atraído. Debruçada sobre a Bíblia, quando não tem cliente para atender, mas alimentando desejos lascivos, Charlotte se chega a Lionel, que a leva para, à noite, tratar do pai enfermo, um velho rabugento e desbocado, do qual só se ouve a voz. E um pouco por causa do seu desejo, e um pouco para se vingar do velho, ela o faz ir parar no hospital. Dan, por sua vez, tem um rápido envolvimento com Gaelle (Isabelle Carré) , irmã de Thierry, mas com idade para ser sua filha. Ela sai à noite com a desculpa de que vai se reunir com amigas, mas, na verdade, vai se encontrar com algum homem, a quem atraiu por um anúncio de jornal.
Se não fica bem próximo dos maiores filmes de Resnais, "Medos Privados em Lugares Públicos" é muito bom, possivelmente o melhor do cineasta desde "Meu Tio da América" (1980) . Que bom seria que ele parasse agora, rematando de forma digna uma bela carreira. No entanto, já está preparando outro.

quarta-feira, fevereiro 06, 2008

CURIOSIDADES


Catedral de São Basílio, em Moscou, in Google.



- A Catedral de São Basílio foi construída entre 1555 e 1561. Depois de pronta, o Czar que governava a Rússia, na época, mandou furar os olhos do arquiteto que a projetou para que este não pudesse criar outra obra da mesma beleza. O nome do Czar era Ivan, cognominado O Terrível. Um építeto muito apropriado para quem cometeu monstruosidades como essa.


- Leio em "Antes do Fim", memórias do argentino Ernesto Sabato (Companhia das Letras/2000) , que o escritor espanhol Miguel de Unamuno preferia usar a palavra Mátria, ao invés de Pátria, "uma vez que é a mãe o verdadeiro fundamento da existência".


- Já o cineasta francês Robert Bresson ("Um Condenado à Morte Escapou") só chamava o cinema de "cinematógrafo". "Cinema", para ele, é o local onde os filmes são exibidos.


- Foi Millor Fernandes que chamou a atenção para esta particularidade no nome do compositor, ator e escritor Mario Lago: Mar, Rio, Lago. Um nome muito aquoso. Ou aquático?


- O cineasta russo Eisenstein, que fez um filme sobre Ivan, o Terrível, revela em seu livro "Reflexões de um Cineasta" (Zahar Editores/1969) , que Chaplin lhe confessou uma vez que detestava criança. Essa confissão ocorreu quando Eisenstein passou uma temporada em Hollywood e os dois se tornaram amigos. Não duvido da revelação do russo, mas da confidência de Chaplin, que o deixou chocado. Tenho pra mim que o criador de Carlitos queria justamente isso: chocar o genial amigo. Fazer uma brincadeira (de mau gosto) . Afinal, se Chaplin detestava criança, não teria tido tantos filhos.


- "JOSUEU". Era assim que Rachel de Queiroz chamava Josué Montello, em alusão ao ego do seu colega, o qual superava a quantidade (mais de 100) de livros que escreveu.


- O carnaval de 1941 foi marcado por um fato inusitado. Em meio a marchinhas, sambas e frevos (em Pernambuco) , foi composta uma valsa. Sim, uma valsa. E fez sucesso. Intitulava-se "Nós Queremos Uma Valsa", da autoria de Nássara e Frazão, na voz de Carlos Galhardo.
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OBSERVAÇÃO - O amigo "Eremita", do blogue http://eremiterioblogspot.blogspot.com/, me deu o presente acima, escolhendo o "Luzes da Cidade" entre os seus 7 blogues preferidos, pelo que me sinto honrado e muito grato a ele.