sábado, outubro 27, 2007

TANTOS ANOS (Postagem feita nesta Quarta, 31.10.07)

Foto A Máscara, de Marco Ricca, in 1000imagens
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Fazia uns dois a três minutos que estavam calados. Aquele silêncio que num dado momento, assim de repente, baixa numa conversa entre duas pessoas. Como se os assuntos comecem a faltar, depois de um período longo e ininterrupto de conversa. O olhar do homem não se fixava em nenhum ponto, parecia não encontrar nada que o interessasse, enquanto a mulher curvara um pouco a cabeça. Até que um casal de jovens, num banco próximo, despertou a atenção dele. O rapaz, pernas estiradas, fazendo de cavalgadura para a namorada, os rostos e bocas colados. Olhou para a mulher, que também observava a cena. Ela disse, virando o rosto para ele: "Era tão diferente na nossa juventude". "Pois é"... E retornaram à mudez.
Estavam ali, vindos de uma loja próxima. Ela já ia saindo, com uma sacola, enquanto ele ia entrando, para ir à seção de dvd e cd. Passaram um pelo outro, como dois desconhecidos, até que ele a ouviu perguntar: "É o Carlinhos"? Ele se virou imediatamente, respondeu sim e aproximou-se da mulher de óculos escuros, um pouco gorda, o rosto moreno bem conservado. "Não está me reconhecendo"? Ele examinou o rosto atentamente, não disse palavra, nem precisava dizê-la. Ela levantou os óculos até o início dos cabelos e ali os pousou. Ele continuou o exame e, de repente, como se iluminado por uma luz vinda de um passado distante, a reconheceu. "Letícia, irmã de Leila, não"? Ela sorriu e repôs os óculos. "Tantos anos que não nos vemos". "Tantos". Ele estendeu a mão para ela, que foi recebida com um aperto e uma duração que lhe pareceram além do normal. Com as mãos livres, cada um perguntou como ia o outro e foi aí que ele se lembrou de que ouvira falar em Letícia não fazia muito tempo, ao encontrar um amigo à saída de um banco. "Soube que perdeu o marido, aceite os meus pêsames". E logo se arrependeu do que dissera, pois, detrás dos óculos, vieram lágrimas de Letícia e o tom de voz se alterou. Embaraçado, percebendo que as suas palavras foram inoportunas, pousou-lhe uma mão no braço e se sentiu na obrigação de se desculpar. "Tudo bem", ela disse ainda com a voz chorosa, e, depressa, ele buscou um assunto.
Era um entra-e-sai de pessoas, sempre apressadas, algumas esbarrando neles, uma ou outra sem pedir desculpa. "Está com pressa, Letícia"? "Não, já fiz as compras". "Que tal ficarmos um pouco naquela pracinha"?
E ali estavam há bem uma hora. Letícia ficara sabendo que ele se separara da primeira mulher e vivia com outra. "Naturalmente uma mais nova do que a primeira". Ele deu um sorriso e achou por bem dizer um gracejo: "Cavalo velho, capim novo". "Vocês homens"... "Vocês também não estão ficando atrás. Não vê aquela atriz da televisão que está casada com um homem que tem idade pra ser filho dela"? "Direitos iguais, meu filho". "Ah, o velho feminismo". Surpreendeu-se com a risada de Letícia. Achava que ela iria replicar e iniciar a defesa da igualdade dos direitos do homem e da mulher, mas ela se limitara a rir. Pensou que talvez tenha sido a maneira como falara.
Houve esses momentos de descontração. Mas houve outro momento mais embaraçoso do que quando ele tocara na morte do marido. Carlinhos tinha terminado de falar outra vez sobre Leila, quando Letícia falou um tanto ríspida. "Leila, Leila, Leila. Até parece que não foi você que terminou o noivado. Aliás, ainda hoje é um mistério por que você a largou às vésperas do casamento". Ele não soube o que dizer e, por um momento, ficaram mais uma vez calados. Foi ela que retomou a conversa. "Você nunca notou, não, Carlinhos"? Ele a olhou e de novo o olhar fixo por trás dos óculos. E percebeu o sentido da pergunta, sem a necessidade de uma única palavra.
"Eu era apaixonada por você. Sabe que quando você terminou com a Leila, eu fiquei feliz? Cheguei a pensar que você também estava apaixonado por mim e por isso tinha tomado aquela decisão. Meu Deus, como fui ingênua e burra. E fui a única pessoa da minha família a não recriminar você. Todos lá de casa ficarram possessos com a sua atitude. E, convenhamos, com razão. Um dos meus irmãos disse que se o encontrasse, lhe dava uma surra de você nunca esquecer".
Carlinhos ouvia calado e já sem olhar para Letícia. Às vezes olhava para o casal de jovens, que continuava na mesma posição, incansáveis no seu desejo. Alguns transeuntes sorriam, outros olhavam a cena com indiferença - um fato rotineiro, banal. Depois da confissão de Letícia, não tinha coragem de olhar para ela. Não sabia se ela estava virada para ele, ou se curvara um pouco a cabeça, como há pouco tempo. Uma olhadela rápida no relógio. "Já está ficando tarde. Acho que tenho que ir, Letícia". Desviou o rosto para ela. E foi ela que se levantou primeiro. Ele se levantou e então os seus olhos se encontraram. Aqueles óculos muito escuros o fitavam de uma maneira que o deixou perturbado. (Já na loja, eles tinham lhe provocado a mesma reação.) "Até logo, Letícia". Estendeu-lhe a mão (impossível lhe passar pela cabeça a idéia de dar-lhe um beijinho formal) e acrescentou prazer em rever você. "Igualmente", ela disse e não prendeu a sua mão, como ele chegou a pensar. E os dois se afastaram em direções opostas.

sexta-feira, outubro 26, 2007

A POESIA DE ARINE DE MELLO JR.

Apresento, hoje, a vocês a poesia de Arine de Mello Jr, paulista, nascido em 1947, e formado em Direito. São 3 poemas do seu livro "Reflexões dos Momentos" (Scortecci Editora/2007). Arine publicou ainda pela mesma editora os livros "Estes Momentos" (2004) e "Outros Momentos" (2005).

OLHAR COM AS MÃOS

sempre quis olhar com as mãos,

olhar sem o tato é ver.

olhar sentindo apenas com as mãos.

com as mãos delicadas para identificar,

com as mãos grosseiras para sobreviver,

assim gosto de olhar,

tocando as linhas da vida,

do amor nas saudades solitárias,

que, às vezes,

mesmo na dolorida ferroada,

no toque onde sou tocado,

nestes dedos entre letras,

nas piratarias como ladrão de desejos,

meu toque nessa contenda,

minhas mãos que vivem te olhando,

sentindo o que sente suas mãos.

olhar sem tocar é apenas ver,

principalmente quando olhamos o que

gostamos sem poder tocar,

sofro olhando para você...

você, que gostaria de me tocar.

MULHER E PECADO

mulher,

uma bela e doce mulher,

o supra-sumo da criação humana,

a vida que dá à vida mais vida,

que dá a vida o que a vida quer,

mais uma doce e bela mulher.

no olho demoníaco do mal,

doce e bela mulher,

assecla do mesmo mal,

tentação pecaminosa da alma que

leva o homem para onde quer.

antagonismo irracional,

mulher que é mulher para ser

uma bela e doce mulher,

não peca sabendo que o pecado

é seu mal,

peca, quando... seu pecado vem do

amor, da obra celestial,

assim é uma bela e doce mulher,

assim peca uma doce mulher,

assim se santifica uma bela mulher,

o resto é exagero do gosto, do jeito,

do jeito que o diabo quer.

BRINCADEIRA DE DEUS

tudo não é o início e nem o fim,

nada, só nada, é o espaço entre esses dois pontos.

iniciando ou finalizando,

considerando os aspectos materiais das

substâncias,

daqui ao mais estremado confim,

de bactérias a dinossauros,

de dinossauros aos antropóides,

das cordilheiras aos grandes mares,

desde o mais alto ao mais profundo,

dos anos aos dois primeiros segundos,

Deus soprando suas bolinhas de sabão, brincava

com a ciência, com as paixões e nossos amores.

só isso,

uma brincadeira de Deus que virou matéria,

que virou uma coisa preocupante, uma coisa séria,

uma coisa que poderá afetar até mesmo outros

mundos,

outros mundos que já se preocupam com o nosso

nada.


quarta-feira, outubro 17, 2007

O JOELHO DE CLAIRE (Le Genou de Claire/1970)













Ora, por outras partes do corpo da jovem Claire (Laurence de Monaghan) , mais atrativas, o barbudo diplomata Jerôme (Jean-Claude Brialy, morto há pouco tempo) foi, imprevisivelmente, sentir desejo pelo joelho. É, mas isso acontece. Os joelhos de Nara Leão eram muito apreciados pelos seus admiradoress naqueles anos de 1960. Em um conto, ou romance, de Machado de Assis, o narrador faz uma apologia dos pés de uma mulher. No caso do personagem desse filme de Eric Rohmer, porém, esse desejo parece mais impulsionado por um sentimento estético. Noivo de uma bela moça (que só aparece numa foto) , ele está de férias no campo, na casa em que passa os últimos dias de posse dela, pois já a vendeu a outra pessoa. Pois como ele confessa a Aurora (Aurora Cornu) , velha amiga que ele reencontra depois de alguns anos, e está passando uma temporada numa casa vizinha, as mulheres não mais o atraem pelo físico, mas pelo caráter. O reencontro dos dois enseja uma espécie de jogo de que, embora a contragosto, Jerôme participa. Aurora é escritora. Como alguns dos seus pares, a sua criação não provém da imaginação, mas da realidade da vida, das pessoas. Ela, então, quer escrever a próxima obra tomando o amigo como uma cobaia (é o termo que ela usa e ele o adota também) . Ou seja, ela induz Jerôme a ter um caso com a jovem Laura (Béatrice Romard) , que é meia-irmã de Claire. E nem seria difícil pra Jerôme levar o jogo adiante, pois Laura se sente atraída por ele, num exemplo de inúmeros casos em que uma jovem se apaixona por um homem maduro. Só que ele, apesar de tudo, não deseja que o caso avance e não só por já estar comprometida com outra mulher bem mais velha do que Laura. É o aparecimento de Claire com o seu joelho sedutor.


Porque na cena em que ela e Jerôme ficam sozinhos, abrigados de um temporal, a ambiguidade entre o desejo sexual e o sentimento estético marca presença. Em dado momento, ele pousa a mão no joelho de Claire e começa a alisá-lo por uns dois minutos. No ato, na expressão do rosto de Jerôme e até no respirar de Claire, existe a sugestão de uma relação sexual. Inclusive, em meio à situação, há um corte para mostrar as condições do tempo, e nesse corte, de duração não muito rápida, tem-se a imediata impressão de que os dois irão consumar o ato sexual, mas a cena seguinte mostra que não aconteceu mais nada e Jerôme já retirara a mão do joelho da moça.


"O Joelho de Claire" é o quinto dos seis "Contos Morais" realizados por Rohmer. E qual é a moral desta história? Pode ser mais de uma, de acordo com a visão de cada espectador. Terá Rohmer, numa fina ironia, querido dizer que é conversa fiada essa de que um homem, ainda relativamente jovem, não se interessa mais pelos atributos físicos da mulher, e sim dos seus dotes intelectuais, morais, etc.? Ou, então, que um escritor não deve confiar no caráter e na personalidade de seus semelhantes, acreditando que conhece bem o que vai no íntimo deles, mesmo quando se trata de um velho amigo? Pois é certo que na mente humana existem escaninhos onde se guardam segredos e mistérios impossíveis de ser devassados.


Pelo pouco que conheço da obra extensa desse diretor(apenas 4 filmes) ainda ativo já beirando os 90 , há no seu trabalho um elemento que não me agrada muito, que é o excesso de diálogos. Não há quase aqueles silêncios que, muitas vezes, são mais eloquentes do que as palavras. Nesse particular há uma semelhança com Godard, mas com a diferença de que nos diálogos dos seus filmes não existe a impressão de um exibicionismo de erudição que os filmes do seu colega passam. Essa dialogação intensa confere aos seus filmes um certo ar literário. Mas, ao mesmo tempo, para compensar (ou contrabalançar) esse defeito, Rohmer possui um apuro na forma, na maneira de enquadrar as cenas, na elegância das imagens, na beleza destas. Principalmente quando ele encontra um diretor de fotografia da categoria do cubano (já falecido) Nestor Almendros, que já emprestou o seu grande talento a outros diretores importantes.

sábado, outubro 13, 2007

A MÃE E O FILHO

I Imagem do filme Mãe e Filho, de Alexander Sokurov (1997)

Este texto foi publicado em 17.5.06. Sai outra vez, não apenas por falta de um assunto novo, mas para uma avaliação dos que não o leram na ocasião, ou uma reavaliação dos que o leram.
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Lygia Fagundes Telles tem um conto em que a mãe vai ao cinema com o filho pequeno. Pouco depois de iniciado o filme, um homem senta ao lado da mulher. Ele não é um estranho, que ocupou por acaso aquela poltrona. Aos cochichos, começam uma conversa, com brevíssimas pausas. Parece, não tenho certeza, há tantos anos li esse conto já meio antigo, que os dois chegam a entrelaçar as mãos. Ou o homem pousa a mão no ombro da mulher. O filho está muito atento ao que se passa na tela, mas, em dado momento, começa a estranhar a atitude da mãe. O interesse pelo filme é diminuído, e o garoto o vai alternando entre o filme e o que ocorre ao seu lado. Na sua pouca idade, sente que há algo errado na atenção que a mãe dispensa ao homem. Este despede-se dela poucos minutos antes do término da sessão. Na volta para casa, a mãe diz ao filho para não contar ao pai o que ocorreu no cinema. Não me lembro se lhe promete algum presente (é possível que sim) em troca do seu silêncio. O garoto promete, mas, ao entrar em casa, vai ao encontro do pai e lhe dá um abraço apertado, comovido abraço, exclamando, creio, "papai, papai". Não lhe diz nada. Nem a autora também. É suficiente a reação do garoto. E assim termina esse belo conto de LFT.
Há poucos dias me lembrei desse conto, ao testemunhar um caso semelhante na praça de alimentação de um supermercado. Estava bebendo chope, enquanto esperava minha mulher, ocupada em fazer umas compras. A uma mesa defronte à minha, uma mesa separando as nossas, uma jovem mulher e o filho pequeno almoçavam. Era uma mulher pouco atraente, um pouco gorda, usava óculos, mas possuía a graça da juventude e exibia um decote que, anos atrás, se chamava de generoso. Percebi que comia apenas legumes com arroz, devia estar fazendo regime para perder alguns quilinhos. O garoto, de costas para mim, comia com vontade. Devia ter uns 8 a 10 anos, vestia uma calça comprida e era espigadinho.
Logo observei um rapaz almoçando, sozinho, a uma mesa na mesma fileira da mesa da mulher, separados por uma pequena distância. Ele comia com o mesmo gosto do garoto, mas, embora concentrado no prato, aqui, acolá, dava uma olhadela para a mulher, que parecia não perceber. E aí ocorreu o inesperado: ele interrompeu a refeição, levantou-se e dirigiu-se para a mesa da mulher. O local estava quase lotado, havia um burburinho de vozes, então não pude ouvir o que o rapaz, de pé, dizia à jovem mãe, mas me pareceu que ele a achara muito parecida com outra mulher e lhe perguntava se eram parentes. O rapaz era alto, um pouco corpulento, mas, se não era especialmente bonito, possuía um certo charme. Era atraente. (Gostaria de dizer que a mulher era mais bonita do que ele, mas que fazer? É um relato que aconteceu, não há espaço para a ficção.) Ele deve ter perguntado se podia ocupar a mesa e ela concordou, pois, de repente, voltou à sua mesa, pegou o prato e o suco e foi sentar ao lado do garoto.
E o rapaz e a mulher começaram a conversar animadamente e sem darem descanso às línguas. E foi então que notei. Notei que o garoto espigadinho, com frequência, começou a desviar os olhos do prato para dirigi-los ora à mãe, ora ao homem. Como se, de repente, achasse que alguma coisa não batia bem naquela conversa. (Preciso dizer que a mãe conversava com os olhos fixos no interlocutor, que, certamente, fazia o mesmo.) E a conversa continuou até quando terminaram de comer. Não sei quanto tempo os três ficaram ali, pois logo depois a minha mulher apareceu, terminei o chope e fomos embora.
Mas desde então fiquei pensando no garoto. Será que lhe aconteceu o mesmo que o garoto do conto? A mãe lhe terá pedido que não dissesse ao pai nada sobre a presença do rapaz na mesa? Terá ele também abraçado o pai, quando chegou em casa? É que, como se sabe, a vida, muitas vezes, imita a arte. Mas são apenas hipóteses. Talvez a mãe seja uma mulher separada. Ou viúva, apesar de nova. Não se sabe. Mas, confesso, senti pena do menino.






sexta-feira, outubro 05, 2007

UM FILME, UMA MÚSICA, UMA QUADRINHA


Foto retirada do saite http://expresso.clix.pt/

1) A morte recente do mímico francês Marcel Marceau me remeteu à lembrança do filme de Mel Brooks "Silent Movie" (1976), que, no Brasil, recebeu o título "A Última Loucura de Mel Brooks". É um filme com uma proposta curiosa, que, se não fosse pela irreverência do diretor, poderia ser vista como uma homenagem ao cinema mudo, já expressa no título. E talvez até o seja. É que o filme é sonoro, mas não é falado. Não há falas dos personagens na trama, mas a inserção de intertítulos, como ocorria nos filmes mudos. E por que "Silent Movie" me fez lembrar de Marcel Marceau? Porque ele tem uma participação especial no filme, ao lado de Burt Reynolds, James Caan, Liza Minnelli, Paul Newman e Anne Bancroft, então esposa de Brooks. E a presença de Marceau enseja a maior sacada de "Silent Movie". Ele aparece ao telefone, substituindo a fala pela mímica. Até que em um determinado momento ele grita um "NÃO". É a única fala do filme, dita ironicamente por um artista que se expressava pela mímica. Sem dúvida, um lance inteligente de Brooks, que também escreveu o roteiro. É o seu melhor trabalho como diretor e a curta participação de Marcel Marceau é um dos elementos responsáveis pela qualidade de "Silent Movie".
2) No gigantesco cancioneiro da MPB, não me lembro de uma música de uma fortuna humana, que chega a comover, como "Amigo É Pra Essas Coisas", de Sílvio Silva Júnior e Aldir Blanc. E a estrutura da letra é bem original, ao criar um diálogo entre dois amigos que há muito tempo não se viam, à mesa de um bar. Um deles passa por um momento muito delicado, está despencando para o fundo do poço, envelhecido, desempregado e tendo perdido o amor de Rosa. O outro, melhor de vida, lhe paga bebida, chega a lhe oferecer dinheiro e procura confortá-lo, levantar-lhe o ânimo. Há um momento da conversa em que não vendo uma perspectiva de recuperar o amor de Rosa, o coitado confessa que gostaria de morrer, na esperança de que a sua morte a fizesse sofrer, ao que prontamente o outro reage contra a idéia: "vá atrás"... (A expressão indica que não é para ele ir procurar a mulher, mas que o ato dele não irá surtir o efeito esperado.) O título provém de uma frase do amigo em melhor situação, após o outro lhe agradecer por ter sido ouvido. Que nada, "amigo é pra essas coisas". Um grande exemplo de amizade, de solidariedade a quem está na pior.
Agora me lembro de "Antonico", um samba de Ismael Silva, em que um homem pede a esse Antonico "uma viração pro Nestor, que está vivendo em grande dificuldade". Menciona as qualidades do amigo, integrante de uma escola de samba. É também uma música de forte conteúdo humano, de grande solidariedade, mas sem possuir o vigor de "Amigo È Pra Essas Coisas". E enquanto a música de Ismael, um dos nossos melhores compositores, é um monólogo, já que o interlocutor permanece mudo, a outra é um comovente diálogo entre dois amigos, valorizada pela interpretação do MPB 4.
3) Não sei se os amigos/amigas deste blogue conhecem a quadrinha. Eu a ouvi uma única vez, dita por uma das minhas irmãs, na minha infância, e nunca a esqueci. Não sei se é de um poeta popular, ou se de um anônimo. Há tantas delas de cujos autores não se tem conhecimento. Uma quadrinha simplezinha, como ocorre com todos elas, mas de uma agudeza de conteúdo, que a torna cativante. Ela diz assim:
"Um surdo ouviu
Um mudo dizer
Que um cego viu
Um coxo correr".