terça-feira, julho 29, 2008

25 ANOS SEM BUÑUEL

Luis Buñuel como ator numa célebre cena de "Um Cão Andaluz" (1928).

Nascido com o século vinte, o espanhol Luis Buñuel foi um cineasta dos mais importantes. E o mais singular, segundo a opinião do crítico Moniz Vianna, formulada na década de 1960, para quem Buñuel não iria deixar herdeiros (eu incluiria Fellini). Adesista de primeira hora do Surrealismo, Buñuel, na verdade, se manteve fiel ao movimento até o fim da vida. Claro que o Surrealismo, e não podia ser de outra forma, aparece bem mais diluído em meio aos temas que ele aborda a partir de uma certa parte de sua carreira, mas não deixa de ser visível, por exemplo, num filme como O Fantasma da Liberdade, o penúltimo de sua obra. Numa entrevista aos críticos franceses André Bazin e Jacques-Donioel Valcroze, concedida nos anos 50 do século passado, Buñuel, ao responder à observação do primeiro de que ainda conservava vínculos com o Surrealismo, diz que é verdade e aproveita a oportunidade para reconhecer a sua dívida com ele. E por falar em Bazin, este inclui Buñuel na lista dos diretores que fazem "o cinema da crueldade", ao lado de Dreyer, Kurosawa, Hitchcock, Stroheim e Preston Sturges.

Examinando-se os filmes de Buñuel sob o prisma da narrativa e da linguagem, observa-se, se não um desprezo, pelo menos um desinteresse pelo cuidado, o apuro da forma. Ou seja, interessa-lhe é a comunicação da mensagem ao espectador, a intensidade, o impacto que ela possa ter sobre este. Mas, às vezes, ele sonega a comunicação ao espectador. Como se quisesse bulir com o espectador, levando-o a dar tratos à bola sobre o significado de um plano, até de uma cena. Outras vezes, ele nem revela o detalhe de uma cena, como acontece, por exemplo, em A Bela da Tarde, quando se fica sem conhecer o conteúdo de uma caixinha que o cliente oriental mostra às moças da casa de encontros amorosos frequentada por Catherine Deneuve.

É o antípoda de Visconti, que, mesmo quando mostra uma cena "forte", também de impacto, jamais abdica do seu estilo requintado, do apuro visual-plástico, da elegância formal. Não há parentesco com o despojamento de Bresson, nem com o de Rosselinni; não, é o toque de Buñuel, como existe o toque de Welles, o de Fellini, o de Hitchcock, o de Ford, enfim, dos grandes cineastas. Ele disse, certa vez, destestar o que chamou de "angulos complicados". E também não gostava do uso da música no cinema, conforme afirmou na citada entrevista.

Voltando ao tema da crueldade na obra de Buñuel. Esse enfoque dado ao seu cinema o desagradava muito e, aparentemente, ele desconhecia a opinião de Bazin. Pelo menos, não faz referência ao crítico e ensaísta francês na autobiografia "Meu Último Suspiro" (Nova Fronteira/1982) . Nesse livro, indispensável para se conhecer o cineasta e, principalmente, o homem, Buñuel comenta a tristeza que sentiu ao ler este slogan escrito sobre o cartaz de um de seus filmes, exposto num cinema de Paris: " O metteur-en-scène mais cruel do mundo".

E o pior é que essa "crueldade" era associada a sua pessoa. Um pouco mais adiante de quando menciona esse fato, ele conta a impressão causada em Vittorio De Sica por Viridiana. De Sica assistiu ao filme na Cidade do México, ao lado de Jeanne, esposa de Buñuel. Saiu do cinema "horrorizado", "sufocado" e depressa tomou um táxi, junto com Jeanne, para ir a um bar. No trajeto, perguntou a ela se o marido era um monstro dentro de casa e se chegava a bater nela. Resposta de Jeanne: "Quando é preciso matar uma barata, ele me chama".

O homem era tão digno de interesse quanto o cineasta. Tinha as melhores idéias quando estava solitário num bar, degustando um bom vinho. Adorava usar disfarces que o deixavam irreconhecível. Ele conta a peça que pregou so set de filmagens de Viva Maria, de Louis Malle. Entrou ali usando uma peruca, passou um tempão pra lá e pra cá, olhando a câmera, fitando os atores, e todo mundo se perguntava quem era aquele estranho velhinho, que parecia ser alguém enviado pelo produtor. Nem Jeanne Moreau, que trabalhara com ele há pouco tempo, o reconheceu. Muito menos o próprio filho, Jean Louis, que trabalhava como assistente de Malle.

Esse era Don Luis, assim tratado, que faleceu em 29 de julho de 1983, há exatos 25 anos.


quarta-feira, julho 23, 2008

KAFKA






Este texto foi publicado em junho de 1993 em um jornal de Natal, onde eu escrevia semanalmente. Resolvi divulgá-lo aqui, por ter visto o filme recentemente na tevê e conservado a mesma impressão sobre ele quando o vi há 15 anos. Ei-lo.


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Há de se sentir logrado o leitor de Frank Kafka que alugar a fita, acreditando que irá ver a cinebiografia do autor de A Metamorfose. É verdade que este é personagem da história, sim, mas desvinculado do seu universo de escritor, bem como da sua condição de homem envolvido em problemas íntimos e familiares, com os quais, basicamente, alimentou a sua obra. É certo também que, ao longo da narrativa, esse leitor irá encontrar uma ou outra informação sobre Kafka. Como na cena em que alguém pergunta se ele está desenvolvendo algum projeto literário e Kafka responde, lacônico, que está escrevendo sobre um homem que um dia acorda transformado num inseto. Mas não fosse por essas esparsas referências a Kafka, ele nem precisava ser personagem da história, bastando que o roteirista criasse um outro de sua própria imaginação. É é de supor que dotasse esse personagem fictício da credibilidade improvável em um homem que, pelo temperamento tímido, e ainda mais tendo os pulmões arruinados pela tuberculose, jamais poderia meter-se numa aventura arriscada que exigiria a compleição quase de um atleta.

O artifício de se valer de um escritor real como personagem não é novidade no cinema. Só na década de 80 podem-se citar dois exemplos: Hammett, de Wim Wenders, onde Dashiel Hammett se mete numa trama policial em muitos pontos semelhante às que ele punha no papel; e A Ùltima Dança de Salomé, de Ken Russell, com Oscar Wilde aparecendo como espectador de sua peça Salomé, encenada num bordel. E se em ambos o resultado foi, no mínimo, satisfatório, o foi sobretudo por Hammett e Wilde se apresentarem de maneira verossímil.

Por sua vez, o espectador que viu Sexo, Mentiras e Videotape ficará desapontado com este segundo filme de Steven Soderbergh. Ele nem se sai bem no propósito de realizar algo diferente do que seria uma simples biografia (e é de lamentar a chance que jogou fora, com um material rico como a vida de Kafka) , nem cria nada em termos de narrativa. Ao invés de acender as próprias luzes, Soderbergh prefere tomá-las emprestadas do Expressionismo alemão, lançando mão de seus recursos estilísticos (câmera inclinada, sombras humanas, close de rostos exóticos ou grotescos). Ainda que possa se tratar de uma homenagem, como quer um crítico, o diretor deveria ter dado um pouco de si mesmo, como faz Brian Di Palma, que não se limita a copiar Hitchcock. E no fato de ele mesclar o preto-e-branco e o colorido, Soderbergh não só não foi original, como fez uma coisa para a qual não vejo explicação.

Mas, afinal, depois de tudo o que foi dito, sobra algo de positivo em Kafka ? Sim. Um ou outro momento inspirado, a fotografia, apesar do seu débito com o Expressionismo, e sobretudo o elenco, repleto de sotaques de várias nacionalidades. Jeremy Irons faz o que pode para parecer com o Kafka que conhecemos de informações, Alec Guiness exibe a classe habitual num pequeno papel, Ian Holm idem, como o sinistro Dr. Murnau (uma homenagem ao cineasta?). Mas a melhor atuação é de Joel Grey (o inesquecível mestre de cerimônias de Cabaret) , vivendo uma espécie de fiscal de funcionários de uma empresa de seguros, onde trabalha Kafka.

terça-feira, julho 15, 2008

PODEM ALGUNS NOMES TER UMA CARGA NEGATIVA?

Minha caçula está grávida do segundo filho. Depois de descobrir o sexo do feto, ela e o marido iniciaram o difícil processo de escolher um nome. Todo casal passa por esse problema. Até surgir um nome que agrade aos dois passam-se muitos dias, até meses. No passado, quando o sexo do filho só era conhecido quando este nascia, a coisa era mais complicada, já que tinha de se escolher um nome masculino e outro feminino. Um dos nomes discutidos foi o de Diego, mas a minha filha logo o descartou ao se dar conta de ser o prenome de Maradona, um usuário de drogas, que, por mais de uma vez, esteve perto da morte. Talvez se ela gostasse de futebol e admirasse o gênio do argentino no trato com a bola, pudesse ter relevado o vício dele.
E aí me voltou a pergunta que me faço já faz muito tempo: alguns nomes podem conter uma carga negativa, que seja nociva à pessoa que com ele foi batizada? Não tenho muitos exemplos (na verdade, só tenho um) para seguir me fazendo essa pergunta. Trata-se do nome Edmundo.
Na minha Canindé conheci três Edmundos (não me lembro se havia outros mais) que me parece atingidos por uma marca do nome que receberam. Há pouco tempo publiquei um conto neste blogue, integrante de um antigo livro meu, em que falava do Seu Edmundo, um dentista. Um homem respeitado, estimado, boa aparência, que, a partir de um determinado momento, começou a beber sem moderação, terminando por se tornar um alcoólatra. Abandonou a profissão e foi abandonado pela esposa, que não pôde agüentar a vida que ele levava. Transformou-se em um desmazelado, motivo de chacota, até morrer, de repente, com pouco mais de 50 anos.
E havia o Edmundo, que devia ter uns vinte anos, um pouco mais, quando eu era um pré-adolescente. Era um prato feito para as brincadeiras (algumas pesadas) dos outros, por ter uma boca muito grande. Além disso, esse Edmundo, que, aparentemente, não ligava para as chacotas de que era vítima, tinha a mania de querer falar "difícil", fornecendo, assim, mais munição para os gozadores. Mas o pior é que, a exemplo do seu homônimo, acabou por tornar-se um alcoólatra. Já morava em outra cidade, onde arranjara um emprego. Um homem bom, afável, incapaz de matar uma barata, mas que, quando bêbado, ficava furioso. Se não batia na esposa, quebrava objetos da casa. Também morreu relativamente novo, de ataque cardíaco, tal como o dentista.
Já o terceiro Edmundo não tinha quase a ver com os outros dois. Ou, talvez, tivesse alguma "afinidade" com o segundo, pois era um tanto tolo, que falava muita besteira, e, ainda por cima, não tinha a afabilidade do Edmundo do defeito bucal.
Tenho pra mim que passei a pensar na influência negativa do nome Edmundo por causa do jogador que surgiu no Vasco e onde joga atualmente, após atuar em outros times. Foi um grande jogador (escrevo no tempo passado porque ele está em final de carreira, não rendendo, talvez, metade do que apresentou até há poucos anos), que alternou o seu desempenho nos gramados com graves problemas motivados por seu temperamento. Chegou a sair na página policial dos jornais por conta de um acidente automobilístico ocorrido depois de uma farra, o qual causou a morte de uma pessoa, ou mais de uma. Nunca foi punido por esse delito, a não ser ter ficado preso por alguns dias. É possível que o processo contra ele já tenha prescrito.
É claro que houve e há outros Edmundos que levaram e levam uma vida sem grandes percalços - se saíram bem na vida. E os que citei aqui teriam passado pelas mesmas atribulações, a sua vida teria sido conduzida da mesma forma se tivessem outro nome. O peso não seria do nome. E os adeptos do Espiritismo poderão argumentar com o tal do carma. Mas que continuarei pensando da mesma maneira, 0u, dizendo melhor, me fazendo aquela pergunta, isso continuarei. Pelos quatro exemplos que tenho.

quarta-feira, julho 09, 2008

AMOR À FLOR DA PELE (2000)







Um filme triste este do chinês Kar-Wai Wong. Triste e amargurado, porque os personagens centrais, Chow (Tony Leung) e Su Linzhen (Maggie Cheung), que é sempre chamada por Mrs. Chan, sobrenome do marido, não conseguem transformar em amor a atração que sentem um pelo outro. A não-consumação desse amor ocorre por causa da mulher, mas a razão não é explicada, apenas ela chega a dizer uma vez "não devemos fazer como eles", que são o marido dela e a esposa dele, que têm um caso. Assim, não vão uma única vez para a cama no seu curto relacionamento, não se fazem carinhos, ainda que estejam quase sempre juntos, até em um quarto de hotel. É como se fossem dois amigos (embora, segundo Borges, a amizade é uma das formas que o amor assume), solitários pela constante ausência dos outros dois parceiros, dois carentes em busca de um amor, já que fracassou o legitimado pelo casamento. Em resumo, não é um filme de amor, mas da impossibilidade de um amor, e, nessa particularidade, "Amor à Flor da Pele" faz lembrar o universo temático de Antonioni, dentro, contudo, de um outro contexto.

O diretor enfatiza bem essa impossibilidade ao reunir os dois algumas vezes à frente de uma grade, cujas barras se assemelham à de uma prisão. E como se fosse um contraponto à falta de entrega total, avassaladora a esse amor, a trama é pontuada em algumas ocasiões pela voz de Nat King Cole interpretando boleros.

Um detalhe a ser destacado é que os dois adúlteros não são vistos pelo espectador. Ouve-se em raras ocasiões a voz deles, ou com Chow, ou com Chan, mas a câmera os "esconde", só mostrando o rosto ou o corpo destes. (Na verdade, há um plano em que a mulher de Chow é vista chorando, depois que o amante lhe diz que vai encerrar o caso, mas de uma forma em que não se distingue com nitidez o rosto dela.) Não interessa ao diretor apresentá-los ao espectador, pois, ainda que os dois sejam os desencandeadores da aproximação e, conseqüentemente, do sofrimento de Chow e Chan, estes, sim, são os personagens que lhe importam, os seus sentimentos, a sua dor.

Wong prova com este filme porque é um dos cineastas prestigiados pela crítica. Sabe produzir imagens de grande beleza, sabe revelar o drama daquele casal unido (e ao mesmo tempo desunido) pelo amor em planos que dispensam as palavras (uma das cenas mais belas e expressivas é a da lágrima caindo do olho de Chan quando ela está sozinha em um quarto, enquanto Chow está em outro quarto) e tem o pulso forte, mas sensível, na condução dessa história triste, como também no desempenho dos atores centrais.
E que linda mulher essa Maggie Cheung!



quarta-feira, julho 02, 2008

BICICLETA



Foto tirada de www.fotosearch.com.br

Via os amigos pedalando as bicicletas, nos rostos a expressão de felicidade. E ainda sem poder discerni-la, a inveja instilava-se em seu coraçãozinho. A raiva, sim. A raiva de se ver privado daquele brinquedo que fazia parte também dos adultos. Ah, como desejava montar numa bicicleta e andar com ela pelas ruas, devagarinho, às vezes, como para fruir a conta-gotas o prazer de sabê-la sua, não precisando recorrer à de um amigo, que a emprestava por pouquinho tempo e sempre o advertindo cuidado, não vá arranhar a minha bicicleta; e em outras vezes, fazendo-a correr, apostando corrida com alguém, pra ver quem chegava antes a um determinado ponto.

Não tinha coragem para pedir ao pai. Sempre recomendando à esposa para economizar na administração dos encargos domésticos, os negócios não iam bem, a seca, outros motivos de queixa que ele ouvia e não entendia.

Sim, havia os dois padrinhos. Talvez com eles fosse menos difícil o pedido. Um era rico, dono de fazenda, de gado, tinha até carro, com motorista. Só que morava longe, aparecia raramente, mas quando vinha à cidade era certo almoçar em sua casa. Difícil era falar com ele, os dois compadres sempre juntos, acompanhados das esposas. Além disso, os raros e pequenos presentes que ganhara dele confirmavam os comentários ouvidos em casa que o padrinho era assim, ó (fechava bem a mão).

O outro padrinho, por coincidência, era também fazendeiro, mas um pequeno fazendeiro. Não tinha carro, ia de cavalo à cidade, e, não sabia a razão, nunca almoçava em sua casa, visitava o compadre na casa comercial. Estava por lá numa dessas visitas, a mando de sua mãe para pegar dinheiro para uma compra. Tomou a bênção ao padrinho, que lhe fez um afago e sacou do bolso uma pequena importância, pra você comprar de bombom. (E não é que ele seguiu ao pé da letra a recomendação?)

Não, daquelas duas tocas não sairia coelho algum.

Um dia em que estava no seu quarto ouviu o pai gritar por ele. Ao chegar, quase correndo, à presença do pai, encontrou-o com o rosto mais vermelho do que o natural, tão irado estava. Segurava numa mão o boletim escolar. A voz alterava o tom à medida que lhe passava uma descompostura, a mão chegava a tremer. Ele ali calado, cabisbaixo, já com medo de apanhar. Nem sabe quanto tempo durou a cena até a mãe chegar e pedir calma ao marido, os vizinhos já deviam estar de ouvidos colados naquela gritaria raivosa. O pai foi se acalmando, de repente calou-se e sentou na cadeira de balanço. Ele aproveitou para sair, mas o pai o chamou de novo, a voz ainda irada, mas baixa. E então lhe disse: "Escute bem o que vou lhe dizer. Se você passar de ano, vou lhe dar uma bicicleta; agora, se você não passar, vai levar uma surra que nunca vai esquecer. Ouviu bem"?

Reconheceu, já sozinho, que errara ao neglicenciar os estudos, como um ato de rebeldia por não ter a bicicleta de que se julgava merecedor. Agira sem avaliar a forma dessa rebeldia, que só teria como efeito a ira do pai podendo chegar ao limite. Fosse pelos percalços nos negócios, fosse por temperamento, ou as duas coisas, o pai perdia fácil o controle e isso repercutia no trato com a esposa e os filhos.

Mas espera aí, o pai não lhe prometera uma bicicleta, se ele passasse de ano? Estava mal em todas as matérias, poucos meses restavam para o final do ano letivo. Mas iria se empenhar - reduziria as brincadeiras, renunciando a algumas, queimaria as pestanas, para não ser reprovado. E surra é uma coisa muito dolorosa. Mais na alma, certas vezes, do que no corpo.