Nascido com o século vinte, o espanhol Luis Buñuel foi um cineasta dos mais importantes. E o mais singular, segundo a opinião do crítico Moniz Vianna, formulada na década de 1960, para quem Buñuel não iria deixar herdeiros (eu incluiria Fellini). Adesista de primeira hora do Surrealismo, Buñuel, na verdade, se manteve fiel ao movimento até o fim da vida. Claro que o Surrealismo, e não podia ser de outra forma, aparece bem mais diluído em meio aos temas que ele aborda a partir de uma certa parte de sua carreira, mas não deixa de ser visível, por exemplo, num filme como O Fantasma da Liberdade, o penúltimo de sua obra. Numa entrevista aos críticos franceses André Bazin e Jacques-Donioel Valcroze, concedida nos anos 50 do século passado, Buñuel, ao responder à observação do primeiro de que ainda conservava vínculos com o Surrealismo, diz que é verdade e aproveita a oportunidade para reconhecer a sua dívida com ele. E por falar em Bazin, este inclui Buñuel na lista dos diretores que fazem "o cinema da crueldade", ao lado de Dreyer, Kurosawa, Hitchcock, Stroheim e Preston Sturges.
Examinando-se os filmes de Buñuel sob o prisma da narrativa e da linguagem, observa-se, se não um desprezo, pelo menos um desinteresse pelo cuidado, o apuro da forma. Ou seja, interessa-lhe é a comunicação da mensagem ao espectador, a intensidade, o impacto que ela possa ter sobre este. Mas, às vezes, ele sonega a comunicação ao espectador. Como se quisesse bulir com o espectador, levando-o a dar tratos à bola sobre o significado de um plano, até de uma cena. Outras vezes, ele nem revela o detalhe de uma cena, como acontece, por exemplo, em A Bela da Tarde, quando se fica sem conhecer o conteúdo de uma caixinha que o cliente oriental mostra às moças da casa de encontros amorosos frequentada por Catherine Deneuve.
É o antípoda de Visconti, que, mesmo quando mostra uma cena "forte", também de impacto, jamais abdica do seu estilo requintado, do apuro visual-plástico, da elegância formal. Não há parentesco com o despojamento de Bresson, nem com o de Rosselinni; não, é o toque de Buñuel, como existe o toque de Welles, o de Fellini, o de Hitchcock, o de Ford, enfim, dos grandes cineastas. Ele disse, certa vez, destestar o que chamou de "angulos complicados". E também não gostava do uso da música no cinema, conforme afirmou na citada entrevista.
Voltando ao tema da crueldade na obra de Buñuel. Esse enfoque dado ao seu cinema o desagradava muito e, aparentemente, ele desconhecia a opinião de Bazin. Pelo menos, não faz referência ao crítico e ensaísta francês na autobiografia "Meu Último Suspiro" (Nova Fronteira/1982) . Nesse livro, indispensável para se conhecer o cineasta e, principalmente, o homem, Buñuel comenta a tristeza que sentiu ao ler este slogan escrito sobre o cartaz de um de seus filmes, exposto num cinema de Paris: " O metteur-en-scène mais cruel do mundo".
E o pior é que essa "crueldade" era associada a sua pessoa. Um pouco mais adiante de quando menciona esse fato, ele conta a impressão causada em Vittorio De Sica por Viridiana. De Sica assistiu ao filme na Cidade do México, ao lado de Jeanne, esposa de Buñuel. Saiu do cinema "horrorizado", "sufocado" e depressa tomou um táxi, junto com Jeanne, para ir a um bar. No trajeto, perguntou a ela se o marido era um monstro dentro de casa e se chegava a bater nela. Resposta de Jeanne: "Quando é preciso matar uma barata, ele me chama".
O homem era tão digno de interesse quanto o cineasta. Tinha as melhores idéias quando estava solitário num bar, degustando um bom vinho. Adorava usar disfarces que o deixavam irreconhecível. Ele conta a peça que pregou so set de filmagens de Viva Maria, de Louis Malle. Entrou ali usando uma peruca, passou um tempão pra lá e pra cá, olhando a câmera, fitando os atores, e todo mundo se perguntava quem era aquele estranho velhinho, que parecia ser alguém enviado pelo produtor. Nem Jeanne Moreau, que trabalhara com ele há pouco tempo, o reconheceu. Muito menos o próprio filho, Jean Louis, que trabalhava como assistente de Malle.
Esse era Don Luis, assim tratado, que faleceu em 29 de julho de 1983, há exatos 25 anos.