quarta-feira, novembro 28, 2007

A VELHA SENHORA E A FILHA


"Não sei porque você foi inventar de marcar essa consulta para hoje".

Pela terceira vez a velha senhora queixava-se à filha. A filha fez uma careta, franzindo os cantos da boca, e desviou os olhos para o televisor ligado. Ainda em casa a mãe começara a cantilena, como se não estivesse convencida de que a consulta fora marcada para aquele dia, graças à desistência de uma pessoa. Não fora isso, ela só seria atendida dali a quase um mês.

O televisor exibia a novela das seis e todos os presentes, à exceção da velha senhora e da filha (esta olharia com a mesma indiferença para um quadro que estivesse no lugar do aparelho), acompanhavam atentamente as cenas. A filha, às vezes, olhava para a recepcionista, que, quando não estava ocupada em atender a alguém, tinha o rosto inclinado para o televisor. Por alguns minutos ela conseguiu errar o olhar entre a telinha, a recepcionista e as pessoas sentadas a sua frente. Parecia acreditar que, evitando virar-se para a mãe, esta parasse de aborrecê-la com queixas e resmungos. Mas foi como se a velha senhora tivesse concedido uma pequena trégua, e, ao término dela, retomasse o ataque com uma mais decidida determinação.

"Você está cansada de saber que não gosto de sair de casa no dia dos meus anos". Dessa vez a filha deu um muxoxo, conservando-se calada. Um som de risadas chamou-lhe a atenção para o televisor e ela viu uma cena cômica, que, no entanto, não lhe arrancou sequer um sorriso. As risadas não tinham ainda cessado, quando ela voltou a ouvir a voz da mãe, e foi quase um alívio que sentiu ao perceber que a velha senhora escolhera outro alvo para onde apontar o seu azedume. "Seu pai continua ignorando o dia dos meus anos. Que custava dar um simples telefonema? Mas não. Ele só tem atenção para aquela sujeita". Era um assunto a que ela voltava a cada aniversário. A filha aprendera a não mais discuti-lo, porque a mãe achara desde a primeira vez que ela assumia a defesa do pai. Nesse ponto lhe dava razão, pois ficara ao lado do pai - o único dos filhos do casal - na questão daquela separação. No entanto, contava com uma arma poderosíssima para enfrentar o assédio da mãe, desde que há uns três anos um dos irmãos deixara de frequentar-lhes a casa, em consequência de uma briga violenta entre a sua mulher e a velha mãe. "E o queridinho da senhora? Nem no aniversário da senhora ele aparece lá em casa e a senhora não diz nada". Mas o Ronaldo nunca deixa de me telefonar no dia dos meus anos. Já hoje ele me deu os parabéns. Se não vem me visitar, é por causa daquela cascavel". "Ele não quer é contrariar a mulherzinha dele. O que ele é, é um barriga-branca".

Foram interrompidos pelos acordes da Marcha Nupcial, provindos da televisão. A velha senhora virou o rosto para o aparelho e por um instante concentrou-se na cena de um casamento. Já a filha permaneceu na mesma posição, como se não tivesse ouvido a música.

"Não sei o que o meu filho viu naquela sujeita. Desde a primeira vez que botei os olhos naquela sirigaita que percebi que não era a mulher certa para o Ronaldo. Muito metida, sem educação, a boca suja. E nem bonita é. Ninguém tira da minha cabeça que aquilo foi macumba". "Ô que bobagem, mamãe", interrompeu a filha, que dessa vez não pôde reprimir um sorriso". "Bobagem não senhora. Tenho certeza que foi macumba e macumba das boas. O meu filho estava quase noivo da Estelinha. Uma moça de ouro. Fina, educada, atenciosa (a nora talhada para a senhora dominar ,) e bonita ainda por cima. A Estelinha jamais iria afastar o meu filho de mim. Eu pedi tanto ao Ronaldo pra não casar, mostrei os defeitos daquela mulher, mas não houve jeito".

Uma gritaria no vídeo interrompeu mais uma vez a velha senhora e a fez voltar-se para o televisor. Agora acompanhada pela filha. Os recém-casados partiam para a lua-de-mel, saudados por uma pequena multidão. A cena talvez tenha despertado na filha a lembrança de um outro casamento, este na vida real, que não pôde ser concretizado. "A ele a senhora pediu e ele não atendeu. Mas comigo a senhora não teve essa consideração. Simplesmente me proibiu de casar". "E você ainda acha que teria futuro um casamento daquele? Um pé-rapado, que nem presença tinha". "A senhora não gostava dele, porque ele era pobre. Mas era um homem bom e me queria bem. E eu também gostava dele. Eu é que fui uma besta, não fugindo com ele. Tanto mais que o papai não era contra o casamento, até simpatizava com ele". "Seu pai? Essa é boa - a velha mãe soltou uma risada, que chamou a atenção de uma moça, sentada de frente para elas. Seu pai o que é, é a falsidade em figura de gente. Tratava bem o seu namorado, mas depois vinha falar mal dele pra mim".

A filha sentiu o impulso de insultar a mãe, revoltada por ela pretender dividir com o ex-marido a culpa pelo casamento irrealizado, mas foi contida pelo receio de causar um escândalo ali, o qual, parecia-lhe, aquela moça estava farejando, pois não tirava mais a atenção dela, desde aquela risada da velha senhora. E talvez essa sujeição às regras sociais, impedindo-a de desrespeitar a mãe, quando já não se sentia tão tolhida pelo despotismo dela, tenha lhe revelado, em toda a plenitude, a impotência que marcou a sua vida. Por ela jogara fora a chance de viver ao lado do homem que a amava e desperdiçara a vida ao lado de uma mulher tirânica.

A mãe não parara de falar, atraindo agora a atenção de outras pessoas além da moça, já que a novela terminara e ninguém se interessava pelo jornal. De súbito a filha sentiu uma vontade incontrolável de chorar. Disposta a não resistir às lágrimas, levantou-se para sair em busca de um lugar isolado. Vendo-a se afastar, a mãe perguntou com voz autoritária pra onde você vai? ela respondeu que ia tomar um pouco de ar. "Não demore, que nós já vamos entrar", disse, e aproveitou para cobrar da recepcionista a vez de ser atendida.

Com os olhos úmidos, a filha atravessava a porta que dava acesso ao corredor, quando sofreu um encontrão com um casal de crianças que, à dianteira dos pais, chegavam alegres e gritalhonas. Passou as mãos pelo corpo dolorido, em seguida foi refugiar-se no fundo do corredor. Despovoado, quase às escuras, aquele recanto favorecia a sua necessidade de desabafo.A sua frente erguia-se uma árvore frondosa. Ali se deixou ficar, chorando baixinho, até ser chamada pela recepcionista. Puxou o lenço e enxugou cuidadosamente as lágrimas. Na sala, a mãe a esperava, de pé. Estendeu o braço para a filha e as duas se afastaram a passos lentos.

- Conto do meu livro "Clarita" (1993).

- A foto acima é uma imagem de "Desde que Otar Partiu"... (2003), um sensível e delicado filme de Julie Bertuccelli, do qual deverei falar provavelmente na próxima postagem.

quarta-feira, novembro 21, 2007

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE GILDA


"Nunca houve uma mulher como Gilda". Essa frase correu o mundo, impressa no cartaz de Gilda. E o personagem-título é Rita Hayworth. Aos 28 anos, no auge da beleza, Rita personificava o ideal da mulher, fosse para os homens, fosse para as mulheres. A femme fatale que inferniza a vida de Johnny Farrell (Glenn Ford), principalmente quando, para enciumá-lo, se envolve com outros homens. E ainda por cima casada com o melhor amigo de Farrell: Ballin Mundson (George Macready).
Rita é, de longe, o atrativo de Gilda, no seu esplendor físico e na sensualidade, esta atingindo o ponto mais alto quando ela canta (dublada por Anita Ellis) "Put The Blame On Mame". Sobre esta cena, vale transcrever as palavras de Barbara Leaning, autora de "If This Was Happiness", sua biografia sobre a atriz. "Rita se despoja na realidade somente de suas longas luvas negras, todavia seus quadris oscilantes, seus olhares lúbricos e a entrega erótica que interpreta com sentido magistral tornaram a cena uma obra mestra da insinuação proibida".
Além de Rita, no entanto, o filme de Charles Vidor possui outros elementos positivos. O roteiro, por exemplo. Curioso é que foi rascunhado por Jo Eisinger e elaborado, na forma definitiva, por Marion Parsonnet; ou seja, duas mulheres, que, juntas a Virginia Van Upp, responsável pela produção, realçam a presença feminina de "Gilda", um fato de causar espanto na Hollywood da época. (É de se perguntar se não tenha sido pela intervenção delas que haja quem identifique um componente homossexual na amizade entre Farrell e Mundson, que, confesso, não chego a perceber. Mas...)
O roteiro joga com dois elementos básicos. Um é o de mostrar coisas e pessoas sob uma aparência que não é precisamente a delas, ou a única delas. Exemplos: a bengala usada por Mundson, que oculta uma afiada lâmina; o comportamento de Gilda quando na presença de Farrell, cuja verdadeira finalidade é a de provocá-lo. O outro elemento é a intensa relação de amor-ódio, atração-repulsão entre Gilda e Farrell.
É provável que "Gilda" se tivesse convertido numa obra-prima se, por trás da câmera, houvesse um diretor com o talento e a relativa independência (levando em conta o cinema hollywoodiano) que Charles Vidor não possuía. Apesar disso, ele conduz o filme com competência e, pela eficiência do roteiro, da interpretação do trio principal, e, sobretudo, do carisma de Rita Hayworth, é um filme que tem mantido o seu interesse ao longo de mais de 60 anos, valendo a pena ser visto ou revisto.
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NOTA - A opinião da biógrafa de Rita foi transcrita do livro "A Altura e a Largura do Nada", de Ignácio de Loyola Brandão (Ed. Jaboticaba/2006).

quarta-feira, novembro 14, 2007

UM CONTO DE BARTOLOMEU CORREIA DE MELO(RN)

CAVILAÇÃO
Todo causo cabe três estórias:
a tua, a minha e a verdadeira.
Dito de boa Sabença
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AH , Genival, que injúria me prega! Nada disso que está pensando, não!... Já lhe disse que não! Nego e renego! Ora, faz mesmo questão que lhe explique? Por mim, nem carecia... Pois bom, sem tirar nem botar, lhe conto.
Pois bom, todo dia, logo cedo, cheiroso e engomado, você corre a trabalhar de balconista. Muito que lhe bem. Toda noite fica ainda fora, fazendo biscate de garçom. Coisa que desgosto, mas me conformo, ainda que carecida. Se acha que, assim fazendo, nada me falta... Disso, faz tempo, deixei de reclamar. Preguiça não enche barriga. Tenho mesmo que agradecer, bem retribuindo seus cuidados de bom marido.
Hoje mesmo, larguei minhas costuras, lembrada de passar punhos e colarinhos de quantas camisas. Mas a goma tinha acabado e também faltava carvão pro ferro de engomar. Ora, essas faltinhas, você não perdoa mesmo, pois não? No menos das vezes, não diz, mas palpito que me pense mulher preguiçosa e relaxada. Não mereço, mas esqueço tais ninharias.
Adondo comprar goma e carvão, hora daquelas? Mesmo debaixo de quanta chuva, devia de cumprir essa obrigação De manhã cedinho, havera meu homem de estar todo lorde, arrumado e engomado, pra bem servir quem servido fosse.
Daí avante, tudo fiz mais que avexada. Enfiei o vestido assim mesmo, nadinha por debaixo, peguei a cesta e rumei pro mercado, sem avaliar se aberto ou fechado estaria. Com pressa, esqueci da sombrinha. Nas ruas, chuva muita e nen viv'alma; somente a devota aqui, zanzando atrás de goma e carvão. Ensopada e friorenta, vestido colado nas formas, como ainda estou. Passava na esquina da rua Esquerda, quando, sem ninguém à vista, escutei um chamado vindo do Beco Mirim. Sou mulher direita, você sabe que não atendo a qualquer psiuzinha à-toa! Mas, de novo, aquela vozinha me chamou. Nada de chamamento safadeza, não. Era gritinho rouco, fraquecido , embora aperreado, dizendo meu nome com todo respeito.
- Ei, dona Francleide!...
Fui virando o rosto devagar, olhando enviesado, pronta pruma honesta rabiçaça. Mas findei espiando direitamente e não tinha ninguém. Já seguia caminho, rindo do disparate, quando chamaram outra vez. A voz vinha de baixo, rente ao chão.
- Dona Francleide!...
Ora, ninguém caído estava, nem ao menos acocado, naquele bequinho sem esgotos nem porões. Somente um sapo, cururuzão avantajado, tamanho quase dum peba, ali parado num pé-de-parede. Dei um tunco e já passava adiante quando percebi que era justamente aquele sapo que chamava. Fiquei pasma com tal disparate. Sapo comum, agrandalhado, mas comum, cururu besta de beira-de-corgo. Se bem que algo emagrecido, sem aquele bucho inchado que todo sapo carrega. Avaliei ser leseira minha. Mas aí, pulando pra minha banda, o cujo falou, meio choroso.
- É com vosmicê mesmo, dona Francleide!
UFa, no tamanho susto, fiquei presa no chão, abismada naquilo.
- Somente pessoa de alma pura e justa, pode me valer nessa desventura! - o bicho seguiu dizendo, muito convencedor.
Eu queria correr e não podia, gritar e nem gemia. Quando alembro chega me arrupio! Não desfaleci por falta de acudimento, juro! Daí que o sapão chegou mais perto, olhou pros lados e...
- Não tenha medo, dona Francleide, não quero nem posso lhe fazer mal. Apenasmente imploro sua ajuda caridosa. Se digne de ouvir, com toda compaixão, a estória do meu penoso padecer!
Eu não disse que sim nem que não, olhando arregalada praquele bicharoco magrelo e nojento. Ele chegou pertinho e pulou pra dentro do meu cesto. Argh, que repunança; quase rebolo fora aquilo tudo! Entonce, com todo doce que pode a voz dum sapo, me propostou:
- Vambora pralgum lugar cômodo e seguro. Mode, em sossego e segredo, lhe contar minha triste sina.
A chuva seguia pesada, ensaiando trovejos e relampeios. Adonde, nesse atrapalho, havera uma mulher honrada de buscar arrego? Nem responda, Genival! Voltei pra casa sem trocar palavra com o dito, querendo que tudo findasse num sonho maluco. Aqui chegando, me pediu portas fechadas e coração aberto; pronto que obedeci. Aí ele saltou fora do cesto e pinotou pra nossa cama, desacanhado como todo cururu. E ficou de lá, muito sapamente, me olhando esbugalhado, o papo batendo vento. .. Eu, embora que ainda meio confusa, estava mais calma e demais curiosa naqueles aconteceres. Pelo sim, pelo não, somente encostei portas e janelas. Ainda sem fala, bebi água, respirei fundo e tornei ao quarto, rezando pra que fosse somente imaginação. Mas o danado ainda lá estava, mais sapo do que nunca, atento num rola-bosta que voejava rodeando o candeeiro. E me mandou, muito despachado:
- Sente na beira da cama e preste atenção!
Procurei o lado mais longe dele,pois ainda me metia medo, embora que misturado com troncho respeito. Então, assim me aclarou:
- Meu nome é Regivaldo e não nasci sapo, não. Na verdade,sou um príncipe, mancebo nobre e bem apessoado...
Nesse dito, debochei um riso que logo-logo murchou. Pois ele, toando honesta verdade, contava o que agora lhe conto.
- Sempre me encabulei pra banda de mulher - começou dizendo - tanto que nunca tive namorada, por pura vergonha de falar nessas coisas. E veio daí minha perdição. Acho que, no fundo no fundo, mais aprecio jogos de paz que artes de guerra. Fico contente junto aos meus pajens, rapaziada alegre e formosa. A rainha minha mãe botou reparo no meu fastio pelas moças. E, meio escabriada, me cobrou aclaramento. De pronto que lhe respostei: "Arre, mãinha, minha fina machice dasaguenta daquelas frescurinhas dela, viche!" Não se ria, não Genival, mode algum malembaraço no desfiar da estória.! Sinta quanto engasgo de tristeza na sina infeliz desse coitado! E o sapo seguia contando...
Até que, num malembrado dia, uma princesa bonitinha e poderosa, mas sem tico de simpatia, se arriou toda por mim. E botou-se me cercando, fazendo por onde noivar comigo. Eu, nisso muito enrolado, ficava desjeitoso pra mandá-la embora; adiando e atrasando resposta que nunca vinha. Até que , o reizinho pai dela veio falar com minha mãe rainha, pra ajuste de casório. Muito feliz com a proposta, sem ao menos me perguntar mãinha pronto que aceitou. Pobre de mim! Obrigado a juntar todas as forças, na hora e vez do noivado, pra dizer, perante os convidados, que não queria casar de jeito nenhum! Ah, naquilo chegou-me desgraça! No quando, desarvorado, gritei que nem morto casaria, a linda princesa, me acredite, se transformou numa bruxa horrorosa! Piedade de nós! E num só gesto mágico fez que a rainha minha mãe e toda sua corte virassem insetos de várias diversidades. Gafanhotos, besouros, baratas e mariposas, que logo se espalharam mundo afora. E pra mim, teso de medo, entre risadas de despeito, a escomungada me agourou pior maldição.
- De agora em diante, profetou, serás um sapo cururu ronceiro e feioso e, como todo sapo, comerás insetos de toda qualistria! Mas a dúvida será teu castigo. Nunca saberás se cada bicho que engoles seia teu pai, tua mãe ou teu pajem predileto. E nessa incerteza passarás fome, vagando pelo mundo em busca de mulher séria e bondosa que te redima os pesares. Pra quebrar o encanto e voltares a ser príncipe novamente, tua salvadora deverá banhar-te com sabonete de ervas e água-de-cheiro. Mas quando tornares a ser humano estarás nuzinho e ninguém, a não ser tal boa mulher, poderá ver-te assim.
Foi por isso, Genival, que alguém saiu correndo do banheiro, pulou a janela e se escafedeu. E deixe de sua maldade besta, se enciumando daquele unzinho trejeitoso... Ah, pobre príncipe, tão belo, tão delicado, esguio que nem Biliu de Ingrácia!... Capaz de virar sapo de novo, o bichinho!
Tudo por culpa sua, Genival, nesse jeito estabanado, entrando assim sem avisar! Tibes! Deus que lhe perdoe tão injustos malpensares!... E se quiser roupa aprontada, que arranje goma e carvão!
Natal/set/2006

quarta-feira, novembro 07, 2007

NOMES PRÓPRIOS TÃO IMPRÓPRIOS



Li na revista "Língua Portuguesa", última edição nas bancas, que um casal chinês quis dar ao filho recém-nascido o nome @. Sim, o sinal que aparece nos e-mails, chamado de arroba no Brasil. Segundo a revista, a justificativa dada pelo casal é que @ "quando traduzido para o chinês, tem o mesmo som dos ideogramas em mandarim para a expressão 'eu o amo'. O nome da criança, portanto, seria uma homenagem ao amor que os pais têm por ela". Fiquei imaginando se algum pai brasileiro, da espécie de internautas que chegam quase à idolatria ao computador, quisesse batizar uma filha com o nome de Arroba. Não queria estar na pele da coitada. As gozações que iria sofrer ao longo da vida, as piadas sobre o seu nome, proporcionadas pelo fato de que a palavra também significa uma unidade de peso, equivalente a 15 quilos, usada para produtos agropecuários.

Não consigo entender o que passa pela cabeça de certos pais na hora de escolherem um nome para o filho. Há nomes que ensejam a pensar que o pai não estava com o juízo perfeito na ocasião. E não seria também o caso de, por não desejar o nascimento do filho (ou filha), o sujeito quisesse lhe dar um nome que o ferisse por toda a vida, como uma chaga? Há alguma coisa que não sabemos qual (a não ser o péssimo gosto), que leva um pai a nomear uma filha de Merdolina. E por falar nesse nome, me lembro de quando trabalhava na seção de ordens de pagamento. Muitas vezes a orpag era transmitida por telefone. E um dia recebi uma mensagem de uma agência de Fortaleza. O nome da beneficiária era Medda. O colega até me advertiu, em tom de brincadeira: "Cuidado, Sobreira, pra não trocar o primeiro "d" por um "r" quando for escrever o nome da moça".

Em certos nomes não há um componente escatológico como o de Merdolina, por exemplo. O caso é apenas de mau gosto mesmo. Quando trabalhei no interior do Ceará tive uma namorada chamada Primitiva. Na mesma cidade encontrei um colega com o nome de Oceano Atlântico. Oceano Atlântico Linhares, que tratávamos apenas por Oceano. Outro exemplo, o nome do excelente ator Lima Duarte (foto acima, in Google) : Aryclenes Venâncio Duarte. Ele abomina o seu prenome, segundo soube pelo seu colega (já falecido) Paulo Gracindo, num espetáculo solo que este apresentou em Natal na década de 1980. Paulo, que também não gostava do seu verdadeiro nome (Pelópidas), revelou que quando alguém da Globo chamava Lima Duarte por Aryclenes (pra mexer com ele), levava como resposta uma expressão chula muito usada. "Um dos nomes é bem pequenininho", acrescentou. O sobrenome Vandré foi criado pelo próprio compositor, em parceria com Théo de Barros, da obra-prima "Disparada". Ele abreviou o segundo nome do pai, que era, vejam só, Vandregísilo.

Ainda nesse caso de apenas mau gosto estão aqueles nomes que encerram uma homenagem. Quando estudava no Liceu, de Fortaleza, havia um colega chamado Irapuan Índio do Piauí. Numa aula de Português, o professor, ao fazer a chamada, fez uma gozação com o nome dele, que arrancou risadas da classe. Ele carregou o fardo do nome enquanto o pai estava vivo. Com a morte deste, Irapuan (de quem sou amigo até hoje e, como eu, se tornou funcionário do Banco do Brasil), decidiu suprimir esse incômodo "Índio do Piauí". O filho de Oswald de Andrade, fruto do seu casamento com Patrícia Galvão (Pagu), tinha por nome completo Rudá Poronominare Galvão. Rudá não sei a razão. Já Poronominare é uma entidade indígena, cujo nome significa "dono da terra e do céu". É o que revela a matéria "Marcas de batismo" dessa ótima revista, que não conhecia, escrita por Luiz Costa Pereira Junior.