sábado, fevereiro 26, 2005

INJUSTIÇADOS PELO OSCAR



Acessando o site da Folha de São Paulo um mês atrás, deparei-me com um texto informando sobre uma votação feita na Inglaterra, entre internautas, para escolher os maiores injustiçados pelo prêmio Oscar, incluindo diretores e atores. Hitchcock ficou no topo da lista dos diretores, enquanto Kubrick figurou em terceiro lugar. Hitchcock e Kubrick.Dois dos maiores expoentes da direção foram ignorados, desprezados, esnobados pela Academia de Hollywood. E no caso de Hitchcock o fato é mais surpreendente, porque os seus filmes, mesmo possuindo qualidade artística, atraíam a massa de espectadores que vão a cinema para se entreter, rendendo grandes bilheterias, que é o único foco de interesse dos produtores de Hollywood. Mas outros grandes cineastas jamais receberam aquela feia estatueta por um filme seu. Houve casos como os de Welles, Hawks e Chaplin, que receberam um Oscar honorário pela sua obra (esse troço de prêmio honorário é como menção honrosa em concurso literário) , numa atitude dos acadêmicos de repararem uma injustiça sem tamanho. Aliás, sobre o prêmio conferido a Chaplin, o crítico de cinema e jornalista Sérgio Augusto afirmou, com uma precisão cirúrgica, que foi "um Oscar cravejado de vergonha e hipocrisia." E antes que me esqueça. O segundo colocado na lista foi Martin Scorcese, que, ainda vivo e atuante, poderá, enfim, empalmar a estatueta. Talvez até na cerimônia de amanhã, já que é um dos indicados ao prêmio de Melhor Diretor. Além de que ele, pelo visto, aderiu ao esquema de produções hollywoodianas.
Samuel L. Jackson encabeçou a lista dos atores. E aí a injustiça foi dos votantes. Como não esquecer Montgomery Clift (será que foi votado?) , tantas vezes indicado e que morreu sem levar o prêmio? E James Mason, esse extraordinário ator inglês, algumas vezes indicado, mas que também ficou de mãos vazias? Richard Widmark, ótimo ator, que, parece, foi indicado apenas uma vez? Paul Newman levou mais de 30 anos para sair vencedor. Se tivesse morrido há uns 20 anos, teria tido a mesma sorte de Clift e de Mason e de tantos outros atores talentosos, de que não me lembro agora. Não faz muito tempo que Al Pacino ganhou um Oscar, depois de concorrer por várias vezes.
E mesmo quando a Academia faz justiça ao talento de um ator, acontece de não ser por sua melhor interpretação. Vou citar só o exemplo de Humphrey Bogart. Ele ganhou por uma Uma Aventura na África, (Huston, 1951) , por um desempenho inferior a de outros filmes (um exemplo isolado: O Tesouro de Sierra Madre, do mesmo diretor) , E é bom ressaltar que, quando saiu vencedor, Bogart concorria com nada menos que Marlon Brando (Uma Rua Chamada Pecado) , Fredric March (A Morte do Caixeiro Viajante) e o coitado do Montgomery Clift (Um Lugar ao Sol) , três atores de maior estatura interpretativa do que Bogart, não desmerecendo o talento deste.
E como diretor, há que citar John Ford. Ganhou 4 Oscars (o recordista, até hoje, entre os diretores) , mas em nenhum deles foi por um dos seus westerns. Ora, Ford foi o maior entre todos os cultores do gênero, elevando-o, a partir de No Tempo das Diligências, 1939, à categoria de arte. Ah, Hollywood. Ah, Academia.
a

terça-feira, fevereiro 22, 2005

IMPULSO



"Me diga uma coisa. Em todos os anos que exerce a profissão, o senhor nunca sentiu um impulso de cortar a garganta de um cliente"?
Como se a pergunta tivesse sido feita a mim, interrompi a leitura da revista e me virei para o lado de onde soara a voz. Ocupava uma cadeira num cantinho apertado que se situava entre a parede fronteira à porta do salão e a cadeira do barbeiro. Fora a única cadeira livre que encontrei ao chegar ao salão. Era um sábado de manhã, o dia em que as barbearias ficam superpovoadas, por causa daqueles clientes - a grande maioria - que não podem frequentá-las nos outros dias da semana. Aquele sábado não era diferente, com muitos clientes espalhados pelo salão, uns conversando, outros lendo, enquanto os barbeiros apressavam-se para acabar um corte de cabelo, a fim de poderem iniciar o do freguês que esperava a sua vez.
Aquela estranha pergunta fora feita pelo cliente que estava próximo a mim. O barbeiro pareceu-me ter ficado perturbado com a pergunta - provavelmente a ouvia pela primeira vez em todos os seus anos de profissão - pois interrompeu o trabalho , e, com a tesoura na mão, respondeu (ou melhor, perguntou ao cliente) : "Doutor, por que o senhor me faz uma pergunta dessa?" Já o cliente, um senhor que devia estar beirando os sessenta anos, que perdera mais da metade do cabelo do alto da cabeça e tinha o dos lados embranquecido, não apresentou a mínima reação de desconforto, quem sabe não já tivesse feito a mesma pergunta a outros barbeiros? Disse ele: "Digamos assim. Um dia em que o senhor esteja sofrendo um tipo de problema. Uma dívida que não tenha dinheiro bastante para saldá-la. Uma caso de doença grave na sua família. Enfim, um problema que deixa qualquer um preocupado. Aí acontece do senhor pegar nesse dia um desses clientes exigentes, que passam o tempo todo a dar ordens ao barbeiro, orientando-o como ele deve cortar o cabelo, reclamando que um lado tem muito cabelo, que o outro tem de menos, e isso sem usar um mínimo de delicadeza, nada de por favor, o senhor podia cortar um pouco mais aí, e outras coisas mais. Enfim, um desses chatos de carteirinha. Pois bem. Nem por um segundo, nesses anos todos em que o senhor trabalha nesse ofício, não passou pela sua cabeça o pensamento de degolar um tipo desses?" "Não, doutor. Graças a Deus, nunca tive esse tipo de pensamento. É certo que muitas vezes vim trabalhar tendo algum problema. Mas o freguês, o que é que ele tem a ver com o problema por que estou passando?" "Mas o senhor não acha que quando a pessoa está tendo um problema grave, fica facilmente irritada com as pessoas que vivem em volta dela, chegando muitas vezes até a ser agressiva?" "É verdade. Eu realmente já cheguei a me aborrecer com algum freguês mais exigente, mas nem sequer fiz com que ele percebesse. E já peguei freguês que ficou o tempo todo me ordenando como eu devia cortar o cabelo dele e quando terminei, certo que ele estava satisfeito, que trouxe o espelho para ele ver o corte, ele ainda achou defeito e eu tive que continuar para que o corte ficasse do jeito que ele queria."
Tinha ficado tão interessado pela conversa entre aqueles dois, ao ponto de abandonar a leitura da revista. Mas havia uma razão para isso. Desde que comecei a frequentar os salões de barbearia, levado pelos próprios pés, vejo o barbeiro como um indivíduo que diariamente é tentado pelo desejo de matar. Essa tentação é estimulada por um lado pelos instrumentos de que ele se serve, e do outro pelo cliente, ao oferecer o pescoço a quem está com uma navalha e uma tesoura. Assim, ouvindo aquela pergunta, presumi que encontrara alguém que partilhava da minha idéia e desviei a atenção para a conversa.
E para maior satisfação, descobri no meio dela um detalhe engraçado no tratamento reverente utilizado por cada um dos homens em relação ao outro: o barbeiro tratando o cliente por "doutor", o cliente chamando o barbeiro de "senhor". Os dois deviam estar se encontrando pela primeira vez para se tratarem daquela forma, já que eram mais ou menos da mesma idade. O barbeiro mostrava um rosto mais envelhecido, os cabelos estavam inteiramente brancos, embora ainda bastos, ao contrário dos cabelos do outro.
Ocorreu uma pausa na conversa, enquanto o barbeiro se afastou em direção à mesinha, para pegar o massageador elétrico. Olhei para o cliente, ele tinha encurvado a cabeça, como se examinasse os pedaços de cabelo que sujavam o lençol. De repente virou-se para mim, como se sentisse que era observado, com o ar de quem estivesse meditando. Não me fez nenhum cumprimento e desviou os olhos de mim. Quando o barbeiro voltou, de massageador na mão, ele lhe disse:
"O senhor sabe que há muitos anos assisti um filme em que um barbeiro cortava a garganta de um freguês? E aí havia um motivo relevante. É que o barbeiro descobrira que o freguês era amante de sua mulher. E agora deixe eu lhe fazer outra pergunta. Se por infelicidade, o senhor fosse vítima de adultério e chegasse um dia a ter sentado nesta cadeira o amante de sua esposa. O senhor sabendo que era ele, será que o senhor teria controle sobre si mesmo, ou faria o mesmo que fez o barbeiro do filme?"
Quando o cliente fez aquela pergunta, olhei para o barbeiro. Ele ficara calado, então notei - notei que seu rosto sofrera uma alteração. Subitamente assumira uma expressão constrangida, mas que, assim pensei, não seria a mesma se a pergunta do cliente aludisse a, por exemplo, uma morte de um parente bem próximo do barbeiro. Já o cliente deve ter suposto que o barbeiro não ouvira a pergunta por causa do barulho que fazia o massageador, pois voltou a fazê-la, dessa vez virando um pouco o rosto para o lado do outro.
"Hem, mestre (pela primeira vez variava a forma de tratamento) , se o senhor chegasse um dia a ter sentado nesta cadeira o amante de sua esposa, o senhor sabendo que era ele, será que faria o mesmo que o barbeiro do filme?"
Eu continuava com os olhos fixos no barbeiro, que, dessa vez respondeu de uma maneira que evidenciava a sua intenção de encerrar o assunto. "Doutor, eu não quero responder a essa pergunta."
Disse essas palavras em um tom tão incisivo que chamou a atenção das pessoas que estavam mais próximas. O barbeiro, cuja cadeira ficava imediatamente vizinha, chegou a interromper o trabalho e ficou olhando para seu colega. Imitando-o, o seu cliente interrompeu a leitura do jornal e virou-se. Foi então que o cliente curioso cometeu uma imprudência. Em vez de encerrar a conversa, o que fez foi insistir no prosseguimento dela. Até me surpreendeu a sua atitude de remoer uma questão que não agradava ao barbeiro, que não queria satisfazer-lhe a curiosidade. Porque até então ele me dera a impressão de ser um homem de esmerada educação, que tratava com distinção as pessoas, inclusive as que lhe eram inferiores na escala social. Pois, de repente, ele destruía o conceito que tinha a seu respeito, quando desrespeitou o direito do barbeiro de evitar aquele assunto. Virando-se para o barbeiro, ele falou, e, para desmentir ainda mais a impressão que me passara, de maneira chula e num tom de voz provocativo: "Pois eu digo o que o senhor faria. O senhor não ia perder a chance de degolar o puto que trepava com a sua esposa".
Se não estivesse olhando atentamente para o barbeiro, não o teria apanhado em todos os detalhes do seu gesto, tão rápido foi ele. Afastou a tesoura do cabelo do cliente e, colocando as duas lâminas em cruz, desceu-a para o pescoço do homem e cravou-a na garganta. O cliente só teve tempo de soltar um grito estentóreo, a cabeça tombou para um lado e o sangue começou a jorrar do pescoço. De repente, o salão se transformou numa confusão de vozes, todo mundo falando ao mesmo tempo, e já uma pequena multidão se acercava do morto. Logo em seguida ao grito do homem, o barbeiro vizinho pegou o colega pelos ombros e, sacudindo-lhe o corpo, disse tu é doido, homem. Enquanto o outro replicou, olhando para o homem que acabara de matar: "Ele não devia ter falado aquilo".
E o seu rosto tinha um ar sereno, não expressava revolta ou indignação, como se ele estivesse consciente de que praticara um ato de justiça.
(Conto integrante do meu livro "Clarita", Editora Blocos, Rio de Janeiro, 1993, aqui publicado com algumas alterações na linguagem.)

sábado, fevereiro 19, 2005

CURIOSIDADES CINEMATOGRÁFICAS



1. O cinema mostra alguns exemplos de escritores que experimentaram a direção. Dos pesquisados, os mais prolíficos foram Marguerite Duras, roteirista de Hiroshima, Meu Amor (Alain Resnais),, que dirigiu mais de dez filmes, desde sua estréia com La Musica, de 1966, e o italiano Alberto Bevilacqua, com oito filmes na bagagem. Já outro escritor italiano, Curzio Malaparte (autor de A Pele, entre outros livros) , fez apenas O Cristo Proibido, 1951; o mesmo caso do francês Andrè Malraux, com A Esperança (1039). Romain Gary, um francês de origem russa, que escreveu As Raízes do Céu, filmado por John Huston, dirigiu dois filmes estrelados por Jean Seberg, sua então mulher. Um dos fabricantes de best-sellers, Sidney Sheldon, além de escrever roteiros, dirigiu também dois filmes, um deles a cine-biografia de Buster Keaton (O Palhaço que não Ri (1957). No Brasil, pelo que pude apurar, há o caso de Coelho Neto, com um único filme, de título um tanto longo: Os Mistérios do Rio de Janeiro (O Tesouro do Viking, de 1917. Deve haver outros autores que se aventuraram no cinema, mas só consegui apurar os aqui mencionados.
De todos os filmes desses escritores, conheço apenas dois. A Rebelde, 1970, de Bevilacqua, que achei razoável. Já Desejo Insaciável (1967), de Gary, entre outros defeitos, me impressionou a incapacidade dele de dar ritmo adequado à narrativa.
2. O polonês Rudolph Maté é considerado um dos grandes fotógrafos do cinema. Ela trabalhou com Carl Dreyer no clássico O Martírio de Joana Darc e em O Vampiro. Segundo informa Rubens Ewald Filho, em seu livro Dicionário de Cineastas, foi por acaso que ela passou à direção, quando já estava nos EUA. Responsável pela fotografia de Tenha que ser você, ele foi convocado para substituir o diretor Don Hartman, quando este não quis mais continuar o filme, por se sentir incapacitado para resover alguns problemas técnicos. Maté tomou gosto pela coisa e decidiu trocar de vez de função. Não foi uma boa opção. Como diretor, ele esteve longe de ser o brilhante fotógrafo que foi. De uma filmografia relativamente extensa fez alguns filmes medianos, nenhum memorável. O cinema nada lucrou com o ingresso dele na direção e, de quebra, perdeu um destacado fotógrafo. Enfim...
3. Paul Newman vai morrer arrependido de ter feito uma bobagem bíblico-histórica chamada O Cálice Sagrado (Victor Saville, 1954). Ele estava estreando no cinema e, talvez por isso, tenha sido obrigado a fazer esse filme, em que trabalhou com Virginia Mayo, falecida no mês passado.Pois bem. Muitos anos depois quando ele soube que O Cálice Sagrado ia ser exibido num canal de televisão dos Estados Unidos, sabem o que ele fez? Pagou um espaço nos jornais mais lidos dos país, pedindo aos leitores que não fossem ver aquele filme que. ´por ele, teria sido destruído. Não se sabe se os leitores atenderam o apelo desesperado e oneroso dele. Talvez alguns de seus mais ardorosos fãs. Não sei não. Pode ser que o tiro tenha saído pela culatra.

quarta-feira, fevereiro 16, 2005

CHAPLIN,. BRANDO, EISENSTEIN



Marlon Brando foi um gênio da interpretação. E o gênio tem um comportamento que não é o mesmo de uma pessoa comum, ainda que dotada de inteligência. Quem é da minha geração e acompanhou a sua carreira sabe, além dos problemas que ele teve na vida pessoal, daqueles causados nun set de filmagem. Discutia com os diretores sobre a maneira de filmar uma cena, interferia no roteiro e outras coisas mais. Mais de um diretor foi despedido de um filme por exigência dele. Quando foi ficando mais velho, e o seu prestígio foi gradativamente diminuindo (e demonstrando um certo enfado pela profissão, só aceitando trabalhar por muita grana), deixou de azucrinar a cabeça dos diretores. E atores com idade de serem seus filhos, como Mathew Broderick e Johnny Depp, chegaram a elogiar-lhe o comportamento quando trabalharam com ele.
Na década de 1960, Charles Chaplin teve a infeliz idéia de voltar ao cinema, quando todo mundo o julgava definitivamente aposentado, e cometeu um segundo erro: escolher Brando para fazer o par romântico com Sophia Loren. O filme era A Condessa de Hong Kong, que o genial comediógrafo jamais deveria ter feito. O relacionamento entre os dois foi o pior possível. Começou já quando Chaplin convidou Brando e Sophia a sua casa na Suiça, para ler-lhes o roteiro. Os fatos estão na biografia da atriz, Sophia, Vivendo e Amando, de A. E. Hotchner. Duz Sophia que Brando cochilou (ou fingiu) durante a leitura do roteiro. Ela ficou embaraçada com o comportamento do ator, apesar de achar que, aparentemente, Chaplin não deu a mínima para o fato. Um parêntese. Condenável a atitude de Brando. Por mais talento, fama e prestígio que tivesse, ele estava diante de um dos gênios do cinema. Em último caso, ele tinha a obrigação de respeitar a idade de Chaplin, já caminhando para os 80, com idade para ser seu pai.
O antagonismo entre os dois manifestou-se durante as filmagens. Não se entenderam nunca, viviam discutindo. O principal motivo era a forma de Chaplin dirigir. Ao contrário dos outros diretores, Chaplin preferia o método de demonstrar ao ator, assumindo-lhe o papel, como ele devia interpretar uma cena, ao invés de de dar-lhe orientações. (Sophia revela que De Sica usava o mesmo método.) Brando não o aceitava e chegou a declarar numa entrevista coletiva que "Charlie não gosta de falar. Às vezes as palavras são suas maiores inimigas".
O auge do desentendimente entre os dois se deu num incidente fora das filmagens. O episódio não é relatado no livro de Sophia: li-o num jornal, ou numa revista. Brando, um dia, flagrou Chaplin passando uma dura descompostura em um dos filhos menores. Não me lembro se o fato ocorreu durante um intervalo nas filmagens, ou se foi na casa de Chaplin. O certo é que Brando viu aquilo e, já irritado com o diretor, não gostou. No dia seguinte, chegou, propositadamente, bastante atrasado ao set, e, ao ser admoestado por Chaplin, lhe disse: "Não venha gritar comigo, que não sou seu filho". E nesse clima as filmagens chegaram ao fim, e quando o filme estreou, causou uma gigantesca decepção à crítica, além de se tornar um fiasco nas bilheterias. É possível que até Chaplin tenha se arrependido de tê-lo feito. Creio que apenas Sophia gostou, mais, no entanto, pela oportunidade de ter trabalhado com Chaplin, embora um Chaplin que há muito deixara de ser o grande artista que o mundo reverenciou.
A atitude de Chaplin com o filho pequeno me faz lembrar uma espantosa revelação feita pelo cineasta russo Serguei Eisenstein. Está no livro deste, Reflexões de um Cineasta. Eisenstein esteve nos Estados Unidos parte dos anos 1931-32, quando estabeleceu um íntimo convívio com Chaplin. Eles se admiravam muito e tornaram-se amigos, ao se conhecerem. Durante a permanência naquele país, Eisenstein foi convidado pela Paramount para filmar um certo livro do escritor Blaise Cendrars. Mas preferiu fazer uma adaptação de Uma Tragédia Americana, de Theodore Dreiser. A Paramount topou, mas esse projeto acabou não se realizando, pela incompatibilidade (que não era difícil de prever) entre a visão do russo e a dos chefões do estúdio sobre a adaptação. (Vinte anos depois, pela mesma Paramount, o livro seria levado à tela por George Stevens com o título de Um Lugar ao Sol, e Chaplin declarou, na época, que era o filme mais perfeito que ele já tinha visto.)
Um dia, estando os dois a bordo de um iate, Chaplin indaga a Eisenstein se ele se lembra de uma cena de A Rua, em que Carlitos joga para uns garotos grãos de milho destinados a galinhas. Eiseinstein responde que sim e Chaplin lhe faz esta incrível revelação: "Da minha parte é o desprezo. Não gosto de crianças". O russo fica chocado com o que acaba de ouvir. E se pergunta se não seria um "energúmeno" um homem não gostar de crianças, justamente o diretor de O Garoto, que, através desse filme, "fez chorar cinco sextas partes do globo pelo destino de um menino abandonado". E continua a se perguntar: "Qual o ser normal que não
gosta de criança"? É, Sr. Eisenstein, os gênios (e o sr foi um deles) têm dessas coisas.

sexta-feira, fevereiro 11, 2005

A COMPANHIA DOS ANÕES

"Algumas mulheres gostam de anões. Talvez porque tenham a impressão de ter, ao mesmo tempo, um amante e um filho". (Luís Buñuel)
O anão subiu na torre e começou a tocar o sino. Era o anúncio, divulgado toda semana aos habitantes da ilha, da chegada do avião conduzindo turistas. Em seguida, o anão ressurgia, elegantemente vestido, ao lado do proprietário da ilha. Estirada no sofá, a cabeça apoiada num travesseiro, Emília acompanhava a história que se desenrolava no vídeo. Ela nunca deixava de assistir à serie que a televisão exibia semanalmente. Já pelas novelas não manifestava o mesmo interesse. Uma ou outra a atraía durante alguns capítulos. Até o momento em que (a expressão era dela) o autor começava a demonstrar que estava enchendo linguiça. Quando se convencia disso, abandonava a novela. Na verdade, Emília não pertencia àquela categoria de mulheres, para as quais a televisão serve de eficiente terapia. Talvez porque detestasse a prisão doméstica. Saía diariamente: sozinha, quando o marido estava no trabalho; à noite, com ele.
E, naquele dia, quando assistia a mais uma história da série, ficou sabendo que uma companhia de circo iria se apresentar na cidade, com estréia marcada para o dia seguinte. Nenhuma outra notícia teria o poder de torná-la alegre - poder-se-ia acrescentar feliz - quanto aquela. Se à televisão devotava uma quase indiferença, o circo exercia sobre ela um forte fascínio. De tal modo que não lhe bastava assistir a um ou a dois espetáculos. Quando um circo visitava a cidade, ela o frequentava todos os dias. Seu marido intrigava-se com esse gosto excessivo de Emília, por não lhe parecer um fato normal. Tanto mais estranho por ter-lhe um dia revelado que, em criança, nunca fora a um circo. De todo modo, ele acabou se acostumando à ausência de Emília à hora do jantar, durante a temporada de uma companhia de circo na cidade.
Ao findar o seriado, os olhos de Emília ardiam. Sentira ligeira sonolência durante um trecho da história. Ainda deitada, bocejou e abriu os braços, no gesto de espreguiçar-se. Levantou-se e foi para o quarto. Sentou na cama, perto da mesinha de cabeceira. Pousada sobre esta uma foto colorida de uma criança. Emília fitava o rosto rosado do filho, cuja boca se abria num largo sorriso. E, como sempre ocorria quando se punha a contemplar aquele rosto, seus olhos encheram-se de lágrimas. Deitou-se. Instalara-se um silêncio de casa abandonada. E quase se poderia considerar que, naquele dia, os habitantes daquela casa tinham-na abandonado. O marido viajara, as duas empregadas saíram depois do almoço. Sendo uma tarde de sábado, a rua estava mais sossegada do que o habitual. Emília recordou, rapidamente, partes da história a que acabara de assistir. E, como se a memória obedecesse ao fascínio que sobre ela exercia a figura do anão, predominavam as lembranças das cenas em que ele aparecia.
Do seriado, Emília saltou para o circo, que a televisão anunciara mais de uma vez durante os intervalos. Fazia mais de ano que o último circo se apresentara na cidade. À medida que o seu pensamento era dirigido para o circo, que iria estrear no dia seguinte, os olhos foram se esvaziando das lágrimas. A sonolência retornou mais forte, estimulada pela tranquilidade da tarde, que começava a cair. E ainda pensando no circo, Emília adormeceu.
Os dois outros palhaços sofriam com as confusões em que os envolvia o anãozinho. Na tentativa de apanhá-lo, chocavam-se um com o outro e desabavam no chão. E era tarefa difícil pegá-lo, dada a sua agilidade, privilegiada pela diminuta estatura. O anão passava por entre as pernas dos companheiros, saltava por sobre as suas cabeças, quando eles se preparavam para se levantar, depois de uma queda. Infernizava a vida dos dois, provocando gargalhadas na platéia. Emília também acompanhava a diversão dos demais espectadores. Mas não era apenas alegria
o que sentia. Havia também ternura, afeição, talvez amor. Ou paixão. O anãozinho do circo seduzia-o tanto quanto o seu irmão da tevê. Só que, enquanto este nunca poderia fazê-la realizar o desejo de estabelecerem um contato real, aquele do picadeiro pudera ensejar esse contato por que Emília lutou desde o dia da estréia do circo. As gargalhadas continuavam a espocar com as estrepolias feitas pelo "Pontaria". "Pontaria, se eu te agarro, eu te mato, projeto de homem", gritava um dos palhaços. A Emília não interessou conhecer a origem do apelido. Supunha que fosse em razão do olho baixo e semifechado - cacoete próprio dos atiradores, ao mirarem o alvo a ser atingido. E não o chamava assim, mas por Ulisses, seu nome de batismo.
Repetindo a rotina de todas as tardes, Emília aguardava, no carro estacionado em lugar deserto, a chegada de Ulisses. O toca-fitas transmitia músicas românticas. Em dado momento, avistou caminhando, apressadamente, em sua direção, aquela figura de pernas arqueadas e que, à distância, parecia bem menor. Ele foi chegando, abriu, rapidamente, a porta e lhe disse um seco olá. Emília achegou-se para perto dele, beijou-o, em seguida deu marcha ao carro.
Emília soergueu-se na cama e ficou a contemplar Ulisses, que ressonava virado para ela. Parecia mais cansado do que nos outros dias. Logo que terminaram o demorado ato sexual, ele caíra em profundo silêncio, como se pretendesse fugir à conversa que, habitualmente, tinham depois do amor. O cansaço, enfim, o venceu, então virou-se e adormeceu de imediato. O abajur da mesinha continuava aceso. Emília aproximou o corpo do de Ulisses, para examinar-lhe o rosto mais minuciosamente. Fitava aquele rosto, não mais como uma amante, mas movida por um irresistível sentimento maternal. A mão pousou nos cabelos desalinhados e começou a fazer-lhes carícias. O contato da mão nem de leve perturbou o sono de Ulisses, que dormia como uma criança - uma criança a emitir um ronco contínuo e ruidoso. A idéia lhe veio de repente. Com um certo esforço, Emília ergueu um pouco o corpo de Ulisses, para colá-lo ao dela. Conseguiu apoiar a cabeça dele entre os seios. E passou a embalar aquele corpo de criança, que tantas vezes cavalgara sobre o dela, penetrando-a com a potência de um corpo normal. E enquanto o embalava, ia cantando, baixinho, para não atrapalhar o sono dele, antigas canções de ninar, que nunca mais poderia cantar para uma criança nascida do seu ventre. As lágrimas sobrevieram: inevitáveis. Caudalosas, inundaram as faces e os soluços terminaram por sobrepujar as cantigas. Ela deixou o pranto soltar-se, como algo bem-vindo, porque sempre o estivera esperando.
Conto extraído do meu livro "O Tempo Está Dentro de Nós" , edição de CLIMA - Artes Gráficas e Publicidade, Natal, 1989. Pequenas alterações de linguagem foram feitas, ao ser aqui publicado. O conteúdo foi preservado.

terça-feira, fevereiro 08, 2005

O GRITO - Uma revisão


Foi em 1967 que vi O Grito (1957), de Antonioni. Revi-o há mais de mês, em DVD, quase quarenta anos depois. A afirmação de uma grande obra, uma das 4 ou 5 principais do cineasta italiano, permanece por esse longo transcurso de tempo, e, talvez, ela tenha se engrandecido ainda mais com o passar dos anos. De início, o que chama a atenção de O Grito é o fato de ser um homem do povo (um operário de uma fábrica) que passa por uma crise existencial, motivada pelo fim de um caso de amor, que o deixa entediado, abúlico, um vencido, por mais que tente buscar, com outra mulher, a libertação do seu sofrimento. Ele deixa a cidadezinha e o emprego, levando a filha pequena que tivera com a amante, e percorre parte da Itália, parando em lugares onde pouco se demora. Essa perambulação de pai e filha me fez lembrar a do pai e do filho em Ladrões de Bicicleta (1948), ambos os homens operários, só que são diferentes os motivos da busca de objetivo dos dois e a perambulação dos personagens de De Sica se circunscreve aos limites de Roma. Mas lá pela segunda metade do filme a garota retorna para a mãe, e o pai continua na busca desesperada de se fixar num lugar e num trabalho, em companhia de outra mulher.
O drama desse Aldo (interpretado pelo americano Steve Cochran, no melhor papel de sua carreira) transcorre durante a estação chuvosa e a presença de uma névoa quase constante (e captada com brilhantismo pela fotografia de Gianni di Venanzo) sublinha-o com perfeição. E como acontece nos filmes de Antonioni, é uma situação que o personagem não consegue superar, a não ser, no caso de O Grito, pelo sacrifício da própria vida. Em grande parte porque as mulheres que Aldo encontra não lhe podem dar o que ele busca, por serem pessoas que vivem outros dramas existenciais. É assim Elvia (Betsy Blair), é assim a proprietária do posto de gasolina, Virginia (Dorian Gray), que, além de vítima da solidão, ainda tem que conviver com o pai senil e alcoólatra. Assim é a prostituta (Lynn Shaw). O breve convívio com elas não lhe traz nenhum alívio (a não ser temporário), e só faz torná-lo cada vez mais dependente de Irma (Alida Valli, vivendo uma mulher do povo, desglamourizada, sem a fascinante beleza de outros filmes).
Na sequência final, quando Aldo, finalmente, resolve voltar para a cidadezinha, estabelece-se um contraste entre a situação vivida por ele, agravada pela descoberta de que Irma teve um filho com o homem pelo qual ela o abandonou, e a dos habitantes do lugarejo, que se unem para lutar contra a tentativa de instalação de uma pista de aviões. Aí o drama individual se choca com o problema coletivo e o filme revela uma faceta social. É talvez principalmente por esse detalhe que um ou outro crítico encontre vestígios do Neo-Realismo em O Grito. Já por outro lado, ao expor elementos que seriam aprofundados em A Aventura, A Noite e O Eclipse, há quem sugire que, com O Grito, Antonioni teria realizado, ao invés de uma trilogia, uma tetralogia sobre a crise existencial, localizada em diferentes classes sociais.

terça-feira, fevereiro 01, 2005

CARNAVAL

Não gosto de carnaval. Nunca gostei. Nunca brinquei. Mas as músicas me fascinavam e ainda hoje cantarolo algumas, principalmente as compostas nas décadas de 1930 e 40, as fases mais criativas daquele gênero musical. Até me casar, a não ser em raras ocasiõies, passei o carnaval em Canindé, a cidade onde nasci. Mesmo quando já estava trabalhando corria pra lá, na época do carnaval. Na infância e adolescência, quando começava o baile no clube, a poucos passos da minha casa, ia fazer parte da turma do "sereno", vendo os foliões pular ao som das marchinhas e dos sambas. Alguns deles a gente via chegando, passando pertinho da gente, com as suas fantasias, que gostava de ver. E o lança-perfume? É um cheiro que sinto até hoje, apesar de nunca o ter aspirado, se posso confiar na memória. Perto de mim, ali na frente do clube, testemunhei muitas vezes um folião ensopar o lenço de lança-perfume e levá-lo ao nariz. Na minha memória ficaram para sempre guardadas as fantasias usadas por um um bloco de 4 ou 5 rapazes.Desfilavam à tarde, trepados em um daqueles jipes grandes, que, já nos anos 50, não se fabricavam mais, alugado a um médico. E montados nele chegavam ao clube, já cheios de cana. Era "A Turma do Funil", nome tomado de empréstimo a uma marchinha que fez grande sucesso.
Sempre que me lembro daqueles modestíssimos carnavais de Canindé logo me vem à cabeça a figura de Boió. Um mulato baixo e atarracado, que, quando o conheci, tirava a subsistência com a revenda de revistas semanais que ia comprar em Fortaleza. A mais vendida, entre as mulheres, era a Capricho, por causa das fotonovelas de procedência italiana. Uma das minhas irmãs era freguesa de Boió e, assim, cheguei a ler muitas daquelas melosas histórias que faziam um grande sucesso na época. Pois esse Boió, um sujeito calmo, trabalhador, humilde, soltava a franga quando chegava o carnaval. Brincava os quatro dias, municiado, claro, de bebida, usando uma fantasia condizente com os seus recursos financeiros e em que o bom gosto passava longe. Fantaisa que variava a cada ano. Uma delas, me lembro bem, imitava um índio. E o curioso é que brincava sozinho. Seu quartel-general era a calçada de um extinto posto de gasolina, que, no entanto, conservara a mercearia. Ficava pertinho da minha casa. Do alpendre dava para vê-lo dançando solitário, sob as vistas dos curiosos. E o mulato tinha um bom gingado.
Há outra figura que associo ao carnaval. Mas não era da minha cidadezinha, nem festejava o carnaval. Pelo contrário. Era um padre de Fortaleza, que não cheguei a conhecer, nem sequer lhe guardei o nome. Quem me falou dele foi um outro padre, quando eu trabalhava no interior do Ceará. Não pude, pois, testemunhar o que vou contar sobre ele, mas confio na veracidade das palavras do seu colega de batina, que, por ser um ministro de Deus, não iria mentir. (Será mesmo que não?)
Esse padre fazia parte daquele grupo de viventes que parecem viver à procura de um ficcionista, que os coloque como personagens de seus romances e contos. Quando ele ia dar a comunhão, se entre os presentes estivesse um figurão da cidade (um político de renome, um médico conceituado, um professor brilhante, etc.), antes de pôr a hóstia na boca do fulano, parava com a hóstia na mão e dizia, em alto e bom som, para todos os preserem ouvirem: "vejam que exemplo está dando o... (e pronunciava o nome do medalhão). Uma figura de renome e aqui ajoelhado para receber o Corpo de Cristo". Se o sujeito fosse um pavão (p. ex., um poeta aqui de Natal), subia ao céu. Mas se fosse alguém avesso aos holofotes, pedia a Deus que o chão se abrisse para ele desaparecer dali.
E num domingo de carnaval ele dedicou o sermão a investir contra a "festa profana". Não sei se os padres de hoje agem assim, tanto eles mudaram, alguns até viraram cantores. Mas naqueles tempos era um fato comum, e o padre naquele domingo, do alto do púlpito, fazia a condenação ao carnaval, conclamando os presentes a fugirem dele. Quis usar uma palavra para qualificá-lo adequadamente, já perto de encerrar a sua diatribe, e a palavra não apareceu. Tentou umas três vezes, mas o o diabo do substantivo não lhe ocorria. Desistiu e continuou o sermão. Ocorreu que, algum tempo depois de encerrado o sermão, de frente para o altar, a palavra (aleluia!) veio em em seu socorro. Ele não vacilou um segundo, interrompeu a missa, virou-se para os fiéis e disse: "meus irmãos, a palavra que eu queria dizer naquela hora era bacanal. O carnaval é uma bacanal". E retornou à celebração da missa.
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E abaixo a letra de um clássico de uma música de carnaval, composta por João de Barro (Braguinha), para o carnaval de 1947.
ANDA LUZIA
Anda Luzia,
pega um pandeiro
e vai pro carnaval.
Anda Luzia,
que essa tristeza te faz muito mal.
Apronta tua fantasia,
alegra o teu olhar profundo.
A vida dura só um dia, Luzia,
e não se leva nada deste mundo.