terça-feira, abril 29, 2008

A PERVERSIDADE DO TEMPO

Foto retirada do Google

Há poucos dias Brigitte Bardot teve que ir à policia, para prestar depoimento sobre declarações racistas contra os muçulmanos. Foi a quinta vez em que a ex-atriz compareceu a uma delegacia policial pelo mesmo motivo. Nesse mesmo dia, sintonizando o canal francês TV5, pude ver a reportagem sobre o caso. E o que mais me impressionou foi ver como ela envelheceu. É óbvio que, a poucos meses de completar 74 anos, Brigitte teria que mostrar as marcas da idade, mesmo com todos os recursos de rejuvenescimento à disposição das mulheres da sua situação econômica, mas me parece que, no seu caso , o tempo foi mais perverso do que com outras colegas da sua geração, como, por exemplo, Sophia Loren, que, aliás, é do mesmo ano de Brigitte.

Mas o tempo não alisa. E pouco depois de ver a reportagem, me lembrei de uma crônica do potiguar Berilo Wanderley (1934-1979), também crítico de cinema, em que ele faz um indignado e contundente protesto contra o que o tempo fez com atrizes de gerações anteriores à de Bardot. Tudo indica que a crônica é dos anos 1970. Quem sabe se não foi escrita pouco tempo antes de Berilo falecer? Está no livro Cine Lembrança (Sebo Vermelho, 2004), organizado por sua viúva. Eis o texto:

GRITO

Oh tempo, por que marcaste tanto o rosto de AVA GARDNER? Por que maltrataste tanto o corpo do RITA HAYWORTH? Por que machucaste tanto as pernas de MARLENE DIETRICH? O rosto de devastadora beleza de AVA... O corpo de avassalador domínio de RITA... As pernas de MARLENE que tanto me maltrataram em o "Anjo Azul"...

Tempo que quebrou a voz de GRETA GARBO, falando pela primeira vez no cinema, para dizer "give me a whisky", que foi como um copo de cristal batendo contra outro copo de cristal. Tempo que atirou SILVANA MANGANO dentro do arrozal, chapelão na cabeça, meias pretas resvalando sobre as pernas de cetim, tão grossas, e depois matou tudo isso. Tempo que não soube preservar JUDY GARLAND cantando para a eternidade diante de nós "Meet me tonight in Dreamland"... Tempo que assassinou os olhos verdes de MICHELLE MORGAN se tornando líquidos acima de todas as misérias humanas naquela sequência da igreja de "As Grandes Manobras", de René Clair... Tempo que quebrou as pernas de CYD CHARISSE...

Tempo, miserável tempo, que um dia nos atirou diante dos olhos, da boca, dos ouvidos, do estômago, dos órgãos genitais, tudo isso que eletrizou em nossa carne e espírito todas essas mulheres... se nos deu tudo isso tão generosamente... por que nos deu, se havia de nos tirar essas vozes, esses rostos, essas pernas, esses corpos?!

Desgraçado tempo!

quarta-feira, abril 23, 2008

CURIOSIDADES

O último dos auto-retratos de Vincent Van Gogh, in Google

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1) É fato suficientemente sabido que Vincent Van Gogh vendeu um único quadro em sua curta vida de 37 anos. Mas quem adquiriu esse quadro, "A Vinha Encarnada", ou "A Vinha Vermelha", ou, ainda, "O Vinhedo Vermelho", conforme a tradução do título original nos sítios pesquisados? E é relevante se saber a identidade do comprador? Como curiosidade, creio que sim. E, afinal, estamos tratando de alguém tido como um dos maiores expoentes da forma de arte que adotou, que não conseguia vender o que criava, apesar do empenho do irmão Theo. Hoje, quando um quadro de Van Gogh é arrematado em um leilão por uma fortuna não existe mais o interesse em saber a identidade do comprador, já que é dos pintores que mais atraem a cobiça dos colecionadores.

Mas quem foi que "fez essa caridade" a um dos mais torturados artistas que já existiram? Há coisa de dois meses ocorreu, em Londres, uma exposição de quadros só de pintoras, uma das quais era Anna Boch, da Bélgica, um país vizinho da Holanda de Van Gogh. A matéria sobre a exposição, que li no sítio da BBC Brasil, informava, de passagem, que foi ela que comprou o quadro.
2) O livro "Abdias", de Cyro dos Anjos (edição do Círculo do Livro, s/data), autor de "O Amanuense Belmiro", é narrado em forma de diário pelo personagem-título. Na página 14, Abdias fala da possibilidade de passar a guardar o diário no seu local de trabalho, para proteger o manuscrito de uma possível descoberta da esposa. E revela um estratagema criado por Tolstoi quando escrevia o seu diário. Transcrevo suas palavras: "Contam que o velho Tolstoi resolveu engenhosamente o problema do diário, fazendo dois simultâneos. Um, escrevia-o às claras e esquecia-o de propósito por todos os compartimentos da casa, para que a família nele saciasse a curiosidade; o outro, o verdadeiro, que continha confidências mais íntimas, era escrito em segredo e escondido nas botas". Muito sabidinho o autor de "Anna Karenina", não?
3) Alagoano de nascimento, mas radicado no Rio do século XIX, o poeta Guimarães Passos passou boa parte de sua vida lutando contra a tuberculose que o acometeu. Apesar da doença, ele continuava produzindo e chegou a escrever um livro, cujo título era Tratado de Versificação. Contemporâneo de Passos, o poeta Emílio de Menezes, que adotava a linha do poema satírico, ao saber, boêmio que era, em um bar, do próximo lançamento do seu colega, não se conteve e soltou este trocadilho: "Coitado do Guimarães! Há muito tempo ele tem tratado de ver se fica são.
4) "Domingo pé-de-cachimbo". Eis uma expressão que vem de longe e é grafada erroneamente. Até por escritores, como já vi em um livro de um autor aqui do Estado, que a utilizou como uma das epígrafes da obra. O correto é "Domingo pede cachimbo", o verbo pedir na acepção de querer, necessitar, e cachimbo na de ócio, descanso; ou seja, domingo é dia de a pessoa não trabalhar, mas se estirar em uma rede, fumando cachimbo. Ou cigarro, se preferir.

quarta-feira, abril 16, 2008

QUEBREI A TIGELA




Faz poucos dias estreei uma camisa. Ao me ver com a camisa, minha mulher disse: "hi, quebrou a tigela!" Quebrar a tigela. Há séculos não ouvia essa expressão, muito usada na minha infância e adolescência. Embora originária do Nordeste, é possível que os habitantes do Sul e Sudeste a conheçam por ela estar no Aurélio. Quem consultou o dicionário, viu que quebrar a tigela significa que uma pessoa usa uma roupa, ou um objeto, pela primeira vez. Como sinônimo, o Aurélio registra também "quebrar a panela", que nunca ouvi. Sei que não é possível, mas que bom seria se o dicionário pudesse revelar a origem dessas expressões. Penso em Marco, do Antigas Ternuras. Como eu, ele gosta muito dessas saborosas expressões e vai à cata da origem delas. Quem sabe se ele não sabe de onde veio quebrar a tigela e faça uma daquelas postagens cheias de humor, irreverente, às vezes, que muito aprecio?
Estava com cinco anos quando nasceu Bosco, o meu irmão caçula. Se meus pais não inventassem de ter mais um filho, encerrando uma série de 11 (o primogênito, uma mulher, morreu com pouco tempo de nascido), eu permaneceria como o caçula. E, assim, não teria ficado no canto. Usava-se a expressão "ficar no canto" naquela época para a criança que perdera a condição de filho mais novo, com o nascimento de um seu irmão. A expressão não consta do Aurélio. Como só disponho desse dicionário (nessa especialidade), não sei se outros do mesmo gênero a registram. Deve ser também exclusiva da região nordestina.E tal como "quebrar a tigela" , fico doido pra saber a sua origem, a exemplo de tantas outras.
Essas expressões, ou palavras, nascidas no Nordeste desapareceram, ou estão em processo de extinção. E a culpa é da televisão, via novelas. Um adolescente, de ambos os sexos, mesmo morando numa cidade das mais atrasadas deste país, prefere falar como os jovens das novelas da Globo. Tantas e tantas expressões que fizeram parte da minha infância, adolescência e juventude se perderam no esquecimento das pessoas.
Mas isso não ocorreu apenas nas cidades do interior. Falei aqui uma vez da expressão "o cão chupando manga" e de outras, que eram comumente usadas quando cheguei a Natal nos anos sessenta. Onde estão elas? Mesmo pessoas da minha idade, até mais velhas, talvez com umas poucas exceções, as desprezaram, por certo para não ouvirem que elas "são de 12" (cadê esta também?), isto é, de um tempo muito antigo. Não sou contra o emprego de palavras importadas do Sudeste (principalmente), assim como os nativos daquela região utilizam algumas do Nordeste. O carioca Machado usou mais de uma vez a expressão "vender azeite às canadas", ao falar de um personagem que está furioso, muito irritado. É um dito aqui do Nordeste, mais especificamente de Pernambuco, conforme descobri há poucos anos.
Acho importante esse intercâmbio. Não vejo nada demais nisso, são palavras faladas em um mesmo país (até a alguns estrangeirismos sou receptivo), mas que não joguemos no lixo, como um objeto imprestável, as expressões e palavras da nossa região.
A minha filha mais nova está esperando o segundo filho. Quando este nascer, o seu primogênito, ao contrário do avô, não vai ouvir das pessoas que ficou no canto. Ainda que morando no interior do Estado.

terça-feira, abril 08, 2008

PAI E FILHA (Banshun/1949)




Em seu Dicionário de Cinema, Jean Tulard transcreve estas palavras do diretor japonês Yasujiro Ozu: "Os filmes de enredo elaborados demais me aborrecem. Naturalmente, um filme deve ter uma estrutura própria, de outro modo não seria um filme, mas acho que para que ele seja bom é preciso renunciar ao excesso do drama e ao excesso da ação". Essa visão que Ozu tinha do cinema está bem caracterizada em "Pai e Filha". Se na recusa de Noriko (Setsuko Hara) em se casar (já com 27 anos), para poder dedicar-se ao pai viúvo Shukichi (Chishu Ryu), atitude que não é aceita pela tia Masa (Haruko Sugimura) e pela amiga Aya (Yumeji Tsukioka), existe uma situação dramática, esta, no entanto, é mostrada com sobriedade, sem permitir uma discussão acalorada, mesmo quando se percebe o aborrecimento , o enfado de Noriko com as investidas casamenteiras das duas, principalmente da primeira. Mas, para mim, o exemplo maior dessa contenção da dramaticidade é dado na cena em que Noriko está se preparando para o casamento (sim, ela acaba por capitular, porém, por obra de um estratagema do pai). Já vestida de noiva, prestes a sair para a cerimônia matrimonial, Noriko se ajoelha diante do pai e lhe agradece pelo cuidado e o amor que teve por ela. Um momento de forte emoção, transmitido apenas pela expressividade dos rostos de Noriko e Shukichi. Ressalte-se também que o casamento não é mostrado (aliás, o noivo só é visto uma única vez, de relance, quando ainda não namorava Noriko), nem se vêem a noiva, o pai e a tia saindo para tomarem o carro estacionado à frente da casa, apenas curiosos em volta do carro. Como o faz ao longo do filme, o diretor opta pelo destaque aos pequenos detalhes, aos silêncios, à contemplação, relegando, portanto, a ação a um plano inferior.
O cinema de Ozu, como afirmam os conhecedores de sua obra, está visceralmente ligado à tradição, às raízes culturais do seu país, havendo quem lhe colasse o rótulo de o mais japonês dos diretores. (O seu entranhado japonesismo é até responsabilizado pelo reconhecimento tardio de seu talento e de sua importância no Ocidente, ao contrário de seus pares Kurosawa e Mizoguchi, com os quais ele forma a Santíssima Trindade do cinema nipônico.) Em "Pai e Filha" o seu apego à cultura, à tradição, aos costumes do Japão se faz presente em vários momentos, como, por exemplo, no espetáculo musical a que Noriko e Shukichi vão assistir; ou, ainda, na carteira de cédulas encontrada na rua por Masa e que ela guarda, pois isso lhe irá trazer sorte - no caso, a concretização do desejo de ver a sobrinha casada, pelo qual luta com obstinação. E é bem possível que a original maneira de Ozu filmar, com a câmera bem perto do chão, o operador se pondo de cócoras, resulte do seu posicionamento nacionalista. Pois, segundo o crítico André Setaro, ao posicionar assim a câmera, ele pretendia "enquadrar os personagens conforme a visão de uma pessoa sentada no chão, como é hábito e costume das casas nipônicas tradicionais, da cultura japonesa, antes dela se transfigurar e se descaracterizar com a ocidentalização de Tóquio".
No entanto, em uma oposição (ou, uma invasão) ao tradicional, percebe-se a presença da modernidade. É esclarecedor, por exemplo, o diálogo entre Shukichi e a cunhada Masa, em que esta reprova a gula de uma noiva após a cerimônia do casamento, um comportamento inconcebível no tempo em que ela casou. Essa intromissão do moderno é mais agravada pela influência da cultura americana no país, a qual é mostrada, de modo sutil, como convém a Ozu, em duas ocasiões: uma placa com um anúncio da Coca Cola, em inglês, na estrada por onde Noriko e o assistente do pai passeiam, e um restaurante em cuja fachada estão escritas, também em inglês, as palavras café e chá.
Com o lançamento deste belíssimo filme, A Lume, nova produtora de DVD, dá um grande presente ao cinéfilo. Torçamos para que ela lance outros filmes desse mestre do cinema, como "Viagem a Tóquio", que, dizem os que o conhecem, é ainda melhor.

quarta-feira, abril 02, 2008

UM EPISÓDIO NA DITADURA MILITAR

Este artigo foi aqui publicado em 13.06.06. Sai pela segunda vez, na ocasião em que, há 44 anos, estava se iniciando a implantação da ditadura militar no Brasil, um terrível pesadelo que durou mais de 20 anos.
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Há poucos dias Moacy Cirne comentou, no seu Balaio Vermelho, que chegou a ser caçado pelas forças da repressão da ditadura militar, um dos períodos que mais mancharam a história do Brasil no decurso de mais de vinte anos. Felizmente, o nosso amigo não chegou a ser preso e torturado, pelo menos não tenho informação disso. Já outros amigos e conhecidos meus não tiveram a mesma sorte, e um ou outro pagou com o sacrifício da própria vida o fato de contestar o regime militar. Comigo não houve problemas, até porque não dei motivos para tal, o que não quer dizer que fosse favorável à presença daqueles milicos no poder. Evidente que não concordava com toda aquela situação pela qual o país estava passando, discutia-a com os amigos, mas tive o cuidado de não me expor demais, principalmente quando escrevia nos jornais. Sobre cinema. Apesar dos meus cuidados, houve uma vez em que, por um triz, não fui preso. É um episódio que jamais me saiu da cabeça.
Foi assim. Num certo dia, em 1972 (no governo de Médici, o mais sanguinário de todos), precisei ir a Fortaleza, para tratar de um negócio. O ônibus saía à meia-noite. A viagem seguia tranqüila, mas aí pela metade do percurso, de repente o ônibus parou. Era no meio da estrada escura, o que já causou estranheza nos passageiros. O ônibus, pois, pára, as luzes se acendem e, então, surgem dois homens, com toda a pinta de agentes policiais. Ficam por alguns segundos em pé, à frente da porta que dá acesso ao posto do motorista, e, com os olhos, examinaram os viajantes. Logo em seguida um deles se afasta e vem diretamente para o lugar onde eu estava. Devia ser na terceira ou quarta fileira. Me pede a carteira de identidade e examina-a atentamente. Ao ver a fotografia, certamente, olha meu rosto com atenção. Por fim me devolve o documento, com um obrigado. Sem um pedido de desculpas. A mim e aos demais viajantes. Quando o ônibus se pôs de novo em movimento, as pessoas não tiravam os olhos de mim. Se não me falha a memória, alguém chegou a me perguntar o que eu fizera para ser submetido àquele incômodo exame. Mas se eu próprio não saberia dizer o motivo! Sem nenhuma dúvida, aqueles homens estavam à caça de alguém e me acharam parecido com ele.
No início eu disse que, por um triz, escapei de ser preso. O caso é que eu quase viajava sem a minha carteira de identidade. Durante o dia, no meu trabalho, tive que entregá-la à Seção de Pessoal, para uma atualização de dados na minha ficha funcional. Cheguei a alertar o colega que ia precisar do documento, pois iria viajar naquele mesmo dia. Ele prometeu devolvê-lo dentro de pouco tempo, mas o certo é que o expediente se encerrou e não o recebi de volta. Como a minha viagem era inadiável, mesmo preocupado, tinha que ir a Fortaleza. Mas aí por volta de umas oito horas da noite, eis que chega o colega à minha residência com a carteira de identidade.
Pelo que relatei, se estivesse sem ele, teria sido arrastado do ônibus, talvez tivesse ficado preso e até sido torturado. Talvez nem estivesse contando aqui esse episódio de uma época que, só os que a viveram, sabem dos seus inúmeros e enormes malefícios.