terça-feira, março 31, 2009

TANTOS ANOS


Foto A Máscara, de Marco Ricca,
in 1000 imagens.

Este conto já saiu aqui em out/07. Republico-o
para avaliação daqueles que, na época, não visi-
tavam este blogue e reavaliação de quem o
leu.

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Fazia uns dois a três minutos que estavam calados. Aquele silêncio que num dado momento, assim de repente, baixa numa conversa entre duas pessoas. Como se os assuntos comecem a faltar, depois de um período longo e ininterrupto de conversa. O olhar do homem não se fixava em nenhum ponto, parecia não encontrar nada que o interessasse, enquanto a mulher curvara um pouco a cabeça. Até que um casal de jovens, num banco próximo, despertou a atenção dele. O rapaz, pernas estiradas, fazendo de cavalgadura para a namorada, os rostos e bocas colados. Olhou para a mulher, que também observava a cena. Ela disse, virando o rosto para ele: "Era tão diferente na nossa juventude". "Pois é"... E retornaram à mudez.
Estavam ali, vindos de uma loja próxima. Ela já ia saindo, com uma sacola, enquanto ele ia entrando, para ir à seção de dvd e cd. Passaram um pelo outro, como dois desconhecidos, até que ele a ouviu perguntar: "É o Carlinhos"? Ele se virou imediatamente, respondeu sim e aproximou-se da mulher de óculos escuros, um pouco gorda, o rosto moreno bem conservado. "Não está me reconhecendo"? Ele examinou o rosto atentamente, não disse palavra, nem precisava dizê-la. Ela levantou os óculos até o início dos cabelos e ali os pousou. Ele continuou o exame e, de repente, como se iluminado por uma luz vinda de um passado distante, a reconheceu. "Letícia, irmã de Leila, não"? Ela sorriu e repôs os óculos. "Tantos anos que não nos vemos". "Tantos". Ele estendeu a mão para ela, que foi recebida com um aperto e uma duração que lhe pareceram além do normal. Com as mãos livres, cada um perguntou como ia o outro e foi aí que ele se lembrou de que ouvira falar em Letícia não fazia muito tempo, ao encontrar um amigo à saíde de um banco. "Soube que perdeu o marido, aceite os meus pêsames". E logo se arrependeu do que dissera, pois, detrás dos óculos, vieram lágrimas de Letícia, e o tom de voz se alterou. Embaraçado, percebendo que as suas palavras foram inoportunas, pousou-lhe uma mão no braço e se sentiu na obrigação de se desculpar. "Tudo bem", ela disse ainda com a voz chorosa e, depressa, ele buscou um assunto.
Era um entra-e-sai de pessoas, sempre apressadas, algumas esbarrando neles, uma ou outra sem pedir desculpa. "Está com pressa, Letícia"? "Não, já fiz as compras". "Que tal ficarmos um pouco naquela pracinha"?
E ali estavam há bem uma hora. Letícia ficara sabendo que ele se separara da primeira esposa e vivendo com outra mulher. "Naturalmente uma mais nova do que a primeira". Ele deu um sorriso e achou por bem dizer um gracejo: "Cavalo velho, capim novo". "Vocês homens"... "Vocês também não estão ficando atrás. Não vê aquela atriz da televisão que está casada com um homem que tem idade pra ser filho dela"? "Direitos iguais, meu filho". "Ah, o velho feminismo". Surpreendeu-se com a risada de Letícia. Achava que ela iria replicar e iniciar a defesa da igualdade dos direitos do homem e os da mulher, mas ela se limitara a rir. Pensou que talvez tenha sido a maneira como falara. Houve esses momentos de descontração. Mas houve outro momento mais embaraçoso do que aquele em que Carlinhos tocara na morte do marido. Ele tinha
terminado de falar outra vez sobre Leila, quando Letícia falou um tanto ríspida. "Leila, Leila, Leila. Até parece que não foi você que terminou o noivado. Aliás, ainda hoje é um mistério por que você a largou às vésperas do casamento". Ele não soube o que dizer e, por um momento, ficaram mais uma vez calados. Foi ela que retomou a conversa. "Você nunca notou, não, Carlinhos"? Ele a olhou e de novo o olhar fixo por trás dos óculos. E ele percebeu o sentido da pergunta, sem a necessidade de uma única palavra.
"Eu era apaixonada por você. Sabe que quando você terminou com a Leila, eu fiquei feliz? Cheguei a pensar que você também estava apaixonado por mim e por isso tinha tomado aquela decisão. Meu Deus, como fui ingênua e burra. E fui a única pessoa da minha família a não recriminar você. E todos lá de casa ficaram possessos com a sua atitude. E, convenhamos, com razão. Um dos meus irmãos disse que se o encontrasse, lhe dava uma surra de você nunca esquecer".
Carlinhos ouvia calado e já sem olhar para Letícia. Às vezes olhava para o casal de jovens, que continuava na mesma posição. Alguns transeuntes sorriam, outros olhavam a cena com indiferença - um fato que se tornara rotineiro, banal. Depois da confissão de Letícia, não tinha coragem de olhar pra ela. Não sabia se ela estava virada para ele, ou se curvara um pouco a cabeça, como há pouco tempo. Uma olhadela rápida no relógio. "Já está ficando tarde. Acho que tenho que ir, Letícia". Desviou o rosto para ela. E foi ela que se levantou primeiro. Ele se levantou e então os seus olhos se encontraram. Aqueles óculos muito escuros o fitavam de uma maneira que o deixou perturbado. (Já na loja, eles tinham lhe provocado a mesma reação.) "Até logo, Letícia". Estendeu-lhe a mão (impossível lhe passar pela cabeça a ideia de dar-lhe um beijinho formal) e acrescentou prazer em rever você. "Igualmente", ela disse e não prendeu a sua mão, como ele chegou a pensar.
E os dois se afastaram em direções opostas.

terça-feira, março 24, 2009

A BILHETEIRA DO CINE MODERNO

Poster francês de A Mu-
lher do Rio, de Mario Soldati (1955).
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Naqueles meus primeiros meses em Fortaleza fui conhecendo os outros cinemas, além do Diogo. Conheci o Majestic e o Moderno, o primeiro no mesmo quarteirão onde ficava o Diogo, do lado oposto, o segundo na Major Facundo. Eram bem inferiores ao Diogo, sendo natural que a impressão que este me causara, ao entrar ali pela primeira vez, não tenha se repetido com aqueles dois em idêntica situação.
Eram, na verdade, considerados poeiras, onde as moças e as senhoras não entravam, para não se misturar com as raparigas que os frequentavam habitualmente. Os homens não tinham nada com isso, embora, por outro lado, o Majestic tivesse a fama de ser o preferido dos baitolas.
Esses três cinemas pertenciam à Empresa Luiz Severiano Ribeiro, assim como o Rex. Os outros cinemas faziam parte da Empresa Cinemar, assim denominada por uma curiosa particularidade: os nomes deles referiam-se a coisas ligadas ao mar. Havia o Samburá, na Major Facundo, o Jangada, na Floriano Peixoto, o Tuaçu, na Praça José de Alencar, e o Araçanga, na Barão do Rio Branco, dois quarteirões após a Praça do Carmo.
Quase dez cinemas à minha disposição! Bem, não se pode dizer exatamente à minha disposição. Eu não vivia socado dentro de um cinema, não apenas porque meus tios não deixavam (por recomendação do papai), mas também por não ter idade para ver os que eram proibidos para menores de dezoito anos. Eu ia duas vezes por semana ao cinema, ou três, esporadicamente.
De todo modo, ia sendo apresentado a filmes que jamais passariam em São Januário. E a belas atrizes que me atiçavam desejos, tanto quanto as mulheres com quem cruzava no dia-a-dia. Dessas me lembro especialmente de Sophia Loren em A Mulher do Rio. De short curto, a exibir uns coxaços, e ajustado de modo a modelar um traseiro do qual se podia imaginar só maravilhas, a italiana deixou perturbado aquele pobre adolescente. Aliás, preciso contar um fato ligado àquele filme, e assim poder fazer justiça à bilheteira do Moderno, pois, sem a generosidade dela, eu não teria recebido a dádiva de ver Sophia desfilar a cobiçada plástica.
Ela, a bilheteira, possuía um bonito corpo, apesar de ser um pouco magra. Morena, cabelos alourados que talvez não fossem naturais, e os olhos buliçosos, com um jeito de olhar para um homem que o fazia imaginar coisas. (Que bem podiam ser fundadas. Um colega certa vez comentou, durante o recreio, que ela queimava a periquita.)
Pois não é que essa dona dona começou a me olhar daquele jeito! Ela me atraía já há algum tempo. Por causa dela passei a frequentar mais o Moderno do que os outros cinemas, e a passar pela calçada, mesmo se não fosse assistir ao filme, esperando vê-la fora da bilheteria, batendo papo com o porteiro. Aquele comentário do colega ocorreu ocorreu na época em que ela começou a me botar aqueles olhos sedutores. E eu sonhava em acabar a donzelice com aquela bilheteira, mas, pobre de mim, ao mesmo tempo me convencia de que aquele era um sonho impossível de realizar-se.
Quando foi anunciado A Mulher do Rio para exibição em breve, sua classificação etária ficou estabelecida para maiores de 14 anos. Só iria completar 14 anos dali a mais de um mês e não podia perder a chance de ver Sophia na tela (já a tinha visto em revistas). Foi quando pensei na bilheteira. Quem sabe se ela não poderia me prestar aquele favor? Decidi que era melhor falar a ela com antecedência.
Escolhi um momento em que não havia ninguém para comprar ingresso. Quando apareci na bilheteria, ela deu aquele sorriso e já ia destacando o ingresso do borderô, eu disse que queria tratar um assunto com ela. Ela me olhou com um ar de supresa (talvez supondo que eu ia lhe passar uma cantada) e disse: "Estou trabalhando. Não posso ficar batendo papo com ninguém". Fiquei ainda mais nervoso, as mãos começaram a suar, devo ter mudado de cor. Não sabia se dissesse que não era aquilo que ela estava pensando, porque não tinha certeza do pensamento dela. "É uma coisa rápida", consegui dizer. "Mas você não está vendo que não é possível"? Cada vez mais nervoso, me virei rapidamente para ver se vinha alguém para comprar ingresso. Ninguém. Não podia perder mais tempo e então desembuchei o assunto. Só Deus sabe como. A sacaninha deu um sorriso irônico, depois de me ouvir, e falou: "Ah, então o meu amiguinho (ela gostava de me chamar por um diminutivo que variava a cada encontro) quer assistir filme sem ter idade. E quer que eu ajude ele a fazer isso. Não entende que eu posso perder o meu emprego"? "Se não pode me fazer o favor, não fique aí me dando lição de moral".
Disse isso e fui embora. Sabia que a minha reação tinha destruído o pouquinho de boa vontade que a bilheteira pudesse ter em me ajudar, mas não consegui conter a raiva por ter bancado o bobo.
Nos dias seguintes, ainda raivoso e também frustrado, evitei ir ao Moderno, sem sequer passar em frente. Estava disposto, inclusive, a nunca mais pôr os pés ali.
Mas numa tarde fui ao centro, pegar um relógio que tia Íris mandara consertar. A relojoaria era ali na Guilherme Rocha, já próximo à Major Facundo. Segui por esta rua, depois de receber o relógio, em direção à loja 4.400, onde iria fazer uma compra para Simone. Quando ia entrando, dei de cara com a bilheteira, que vinha portando um embrulho. Tomei um susto ao vê-la, naquele vestido preto que ela gostava de usar, pela primeira vez fora do cinema. Ela me fitou com um arremedo de sorriso, um sorrisinho encabulado. "Ainda tá com raiva de mim"? Fiquei calado, a cara fechada. "Homenzinho besta. Escuta aqui. Quando a fita tiver passando vai lá que te boto pra dentro. Viu"? Continuei mudo, olhando trombudo pra ela. "Bom, se não quiser, não vá". Ela disse e saiu a toda, procedendo quase como eu daquela vez. Parecíamos namorados.
Mas fui. Claro que fui, e logo na estreia do filme. Ela ainda tirou sarro de mim. "Pensei que não viesse". Mas me advertiu que nunca mais eu sequer pensasse em lhe pedir um favor idêntico. Prometi e cumpri a palavra.
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- Capítulo do meu romance Infância do Coração (2002).

terça-feira, março 17, 2009

VISITANTES INDESEJÁVEIS



O que mais me agrada na blogosfera é o contato com as pessoas. Se na blogosfera não pudesse existir a presença de visitantes, não haveria razão para se criar um blogue. Nos seus pouco mais de 4 anos de vida, o Luzes da Cidade abrigou visitantes que o enriqueceram com a sua inteligência, o talento, além da qualidade humana. Não foram em grande quantidade e houve os que deixaram de vir aqui, mas, se não com todos, entre mim e alguns estabeleceu-se um contato mais estreito que resultou numa amizade saudável, que seria melhor se não se cingisse apenas ao plano virtual. Mas a distância torna muito pouco provável que um dia venha a conhecer um ou outro desses amigos/amigas brasileiros e impossível os que residem em outro país. Uma pena.
Pois bem. A blogosfera proporciona-nos conhecer pessoas dessa qualidade, que nos faz tão bem. Infelizmente, por outro lado, temos que nos deparar com uma certa espécie de pessoas que se servem do nosso espaço para fins variados e, por vezes, desagradáveis.
Há poucos dias entrou no meu blogue um sujeito me oferecendo seus serviços de pintor de camisetas. O que mais me aborrece é que gente assim se dirige a mim sem um mínimo de boa educação, de gentileza. Eles não tocam, nem de passagem, no texto da postagem e vão logo dizendo a que vieram. Um outro apareceu com uma espécie de manifesto, mal escrito, mal articulado, pregando, imaginem só, o separatismo numa parte da Europa que não identifiquei bem, tão carente de boa escrita o sujeito é. Já houve quem se servisse do Luzes para divulgar um poema seu, por sinal, de má feitura.
Mas esses, no entanto, apenas causam algum aborrecimento, não ofendem, não agridem o blogueiro. Condenável sob todas as formas é a atitude daqueles que entram no blogue de uma mulher para exercitar os dotes de um Don Juan de quinta categoria. Uma amiga, cujo nome não vou revelar por não ter lhe pedido permissão, sofreu durante um certo tempo o assédio de um desses caras, para os quais, parece, a Internet só serve para eles conquistarem mulheres (e em alguns casos são bem sucedidos), muitas delas casadas, como é o caso da minha amiga. Ele mora na mesma cidade dela, isso ficou evidente logo nos seus primeiros comentários, ou melhor, nos primeiros galanteios. Ele falava que a vira em certo recanto da cidade, descrevia a roupa que ela estava usando, o penteado, e, invariavelmente, louvava-lhe a aparência e algum atributo físico. Por algum tempo, o sujeito infernizou a vida da minha amiga e, por tabela, a do seu marido. Chegou um dia em que ela não aguentou mais. Conhecedora dos caminhos de pedra da Internet e recorrendo à ajuda de alunos seus, ela caiu em campo para descobrir a identidade do galanteador e não é que o conseguiu? O marido, então, foi tomar satisfações com o indesejável visitante e este, afinal, deixou de perseguir a esposa.
Mas terá ele encerrado a "carreira" de conquistador de mulheres na blogosfera? E, no momento, não estará importunando outra mulher honesta, boa mãe e boa esposa?

terça-feira, março 10, 2009

OBRIGADO, TIA (Grazie, Zia/1967)


Este meu artigo foi publicado em agosto/1970, no Boletim do Cineclube Tirol, de Natal. Publico-o neste espaço em razão da morte do diretor Salvatore Samperi, ocorrida na semana passada. "Obrigado, Tia" foi o seu primeiro filme e impressionou a crítica (o crítico José Lino Grunewald, por exemplo, um dos maiores do Brasil, o colocou na sua lista dos 10 melhores filmes de 1969) que viu em Samperi uma promessa em potencial. Infelizmente, com o passar do tempo, o diretor não confirmou essa promessa e morreu praticamente esquecido, trabalhando na televisão. Eis o texto.

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Salvatore Samperi é mais um produto da novíssima geração de cineastas italianos, da qual fazem parte Bertolucci e Bellochio, entre outros. O inconformismo é o elo que une esses jovens que estrearam na direção com pouco mais de vinte anos (Bellochio, 26; Samperi, 23) - uma estreia que os colocou em elevada posição perante a crítica especializada, capacitando-os a manter a fulgurosa tradição de um cinema que já produziu personalidades marcantes do porte de um Visconti, de um Rosselini, de um De Sica, de um Fellini e de um Antonioni, sem falar em valores pertencentes ao segundo time.
A atitude contestatória dos filmes iniciais de Bellochio e Samperi - em ambos utilizada a presença do mesmo ator Lou Castel - deu ensejo a que fosse formulado um conceito de estreito parentesco entre os dois, que retiraria ao filme do segundo a condição de originalidade, o que, bem observado, não chega a ser isso. O Alvise de "Obrigado, Tia" é tão revoltado quanto o Alessandro de "De Punhos Cerrados", mas é preciso notar a diferença de classe entre os dois. Alvise é um integrante da sociedade burguesa (filho de riquíssimo industrial), porém, não se adapta a ela; já Alessandro é um marginalizado que deseja ascender à sociedade em que vive o personagem de Samperi. Ainda existe um outro detalhe, de grande importância: a doença de Alessandro é real (epilepsia), ao contrário da de Alvise, que se finge de paralítico, usando esse recurso como um meio de defesa contra o mundo que ele hostiliza (tal a Elizabeth Vogler, de "Persona", esta abdicando do uso da voz).
E que mundo é esse? É o de que faz parte Stefano, amante de Lea há 15 anos, e ex-militante do PC, convertido num bom burguês, apresentando uma caduca perspectiva dos problemas da atualidade; é o mundo da jovem candidata a cantora de TV, do jovem industrial e do entertainer. É uma hostilidade mútua. E em se tratando de Stefano, agravada por um sentimento de rivalidade, a qual tem Lea como elemento motivador. Ela é a única pessoa que pode compreender Alvise e será por meio da convivência com o sobrinho que as suas relações com Stefano, já um tanto estremecidas, atingirão a ruptura. Então, ela decide participar do jogo inventado pelo sobrinho, que se projeta na figura de Diabolik - personagem dos quadrinhos, possuidor de grande força e enorme poder, com quem pretende se identificar, mas compreende ser impossível - e termina por preferir a morte sem sofrimento, como o cachorrinho de estimação da tia.
No relacionamento tia-sobrinho, consumado pelo jogo infanto-sado-erótico, percebe-se o pulso do diretor, que explora, à perfeição, os recursos interpretativos de seus principais atores: Lou Castel e Lisa Gastoni (uma gratíssima surpresa, inclusive em termos de beleza física).
A cena em que é feita a alusão ao Vietnam é a mais bem realizada de todo o filme, tendo considerável participação dramática a canção de Sergio Endrigo. Nessa cena, é evidente a intenção em Samperi de contrapor a ação participatória de Alvise ao alheamento de Stefano, que conduz Lea ao quarto dela, para praticarem um ato sexual apressado e sem interesse dela. Ressalte-se, para mérito do jovem cineasta, que ele evita alternar planos da cena no quarto e na cena fora deste - um recurso, a meu ver, desnecessário, e que já foi utilizado por grandes autores (Buñuel/Viridiana) ou realizadores talentosos (Lumet/O Homem do Prego).

terça-feira, março 03, 2009

O NONSENSE NUM SAMBA DE ASSIS VALENTE


Na foto, Assis Valente à esquerda de Carmen Mi-
randa e Dorival Caymmi à direita.
In Google.
O baiano José Assis Valente (1911-1958) foi um dos grandes compositores da nossa música popular. É o autor do clássico "Boas Festas", que se tornou uma espécie de hino do Natal brasileiro; contudo, é uma música triste, que não celebra o Natal, contendo uma crítica ao mito do Papai Noel, com versos inspirados, como "eu pensei que todo mundo fosse filho de Papai Noel", "felicidade eu pensei que fosse uma brincadeira de papel", entre outros. Mas fez músicas alegres, a que não faltava a crítica de costumes, como "Good bye, boy", em que ele investe contra o começo da influência do inglês no Brasil, como consequência do cinema americano. Outra composição sua, ..."E o Mundo Não se Acabou", satiriza o pavor que tomou conta de parte da população provocado por boatos sobre o iminente fim do mundo ("falava-se num misterioso eclipse, colisão de cometas com a Terra, tudo isso reforçado pelo medo de uma segunda guerra mundial, prestes a explodir na Europa", conforme se lê no fascículo dedicado a Assis Valente sobre a História da Música Popular Brasileira, Abril S/A Cultural e Industrial/1970). Composta em 1937 e gravada por Carmen Miranda em 9.3.38, transformou-se num dos grandes sucessos da cantora. Carmen, aliás, deve a Assis Valente muitos dos seus sucessos, antes de ir para os States; entre outros não se pode esquecer de "Camisa Listada", que se tornou também um clássico da MPB.
Em 2 de abril de 1939, ela gravou "Uva de Caminhão", que Assis compusera no ano anterior. É uma música que se não se diferencia das outras do compositor pela verve, a ironia, possui um componente inédito: a letra coloca num balaio só palavras e expressões da época, Branca de Neve e Os Sete Anões, Caramuru, a pensão de uma Dona Estela, uma Florisbela e "as cadeiras dela", dois locais do Rio, resultando numa salada em que pontifica o "nonsense". O ponto inicial de tudo isso recorria a um costume no Rio, naqueles tempos, de se vender uva em caminhão, segundo informa o mencionado fascículo. Curiosamente, Assis classificava a música de samba-revista.
Eis a letra.
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Já me disseram que você andou pintando o sete
andou chupando muita uva
e até de caminhão.
Agora anda dizendo que está de apendicite
vai entrar no canivete, vai fazer operação.
Oi que tem a Florisbela nas cadeiras dela
andou dizendo que ganhou a flauta de bambu
abandonou a batucada lá da Praça Onze
e foi dançar o pirolito lá no Grajaú.
Caiu o pano da cuíca em boas condições
apareceu Branca de Neve com os sete anões
e na pensão da dona Estela foram farrear.
Quebra, quebra gabiroba
quero ver quebrar.
Você no baile dos quarenta
deu o que falar cantando o seu Caramuru.
Bota o pajé pra brincar
tira, não tira o pajé
deixa o pajé farrear.
Eu não te dou a chupeta
não adianta chorar.