sábado, setembro 30, 2006

CAPOTE (2005)

Da biografia do escritor Truman Capote (1924-1984) escrita por Gerard Clarke, o filme do quase estreante Bennett Miller ocupa-se apenas dos 5 ou 6 anos que Capote levou para escrever o livro "A Sangue Frio" ("In Cool Blood") , que trata do assassinato de uma família de uma cidadezinha do estado de Kansas, em novembro de 1959. Todo esse tempo foi consumido pelo escritor para. antes de escrever o livro, realizar pesquisas sobre a comunidade local e sobre a personalidade e a vida dos dois assassinos. Na verdade, de um dos assassinos, Percy Smith (Clifton Collins Jr.) . O filme não procura esclarecer o interesse do escritor em Percy, mostrado logo quando, no meio da pequena multidão postada à frente da delegacia de polícia para ver a chegada dos dois criminosos capturados, ele o observa atentamente na sua caminhada para a delegacia. Há a atração física por Percy (como se sabe, Capote era homossexual)? Ou porque, nas conversas que tem com ele, Capote descobre uma certa identidade entre a vida dos dois? Ou as duas coisas? O roteiro opta pela ambiguidade e esta se torna um dos pontos altos de "!Capote".
Mas se não é exatamente uma biografia do escritor, o filme fornece alguns dados sobre a personalidade do escritor: o humor ferino, a vaidade, o vedetismo e mais uma ou outra faceta de um homem de natureza polêmica. Outro ponto alto de "Capote" ´trata do seu abatimento depois que os assassinos são executados, fato que lhe dá, enfim, condições de concluir o livro. A sua expressão no avião que o leva de volta a Nova York não deixa dúvidas sobre o seu estado. Terá valido a pena todo o trabalho consumido para escrever um livro que ele sente ser importante? Do ponto de vista literário, sim. "A Sangue Frio", definido como um romance-reportagem para
os outros( Capote o chamava de um "romance de não-ficção) , é uma obra marcante, seminal. Mas do ponto de vista humano? Ético? Moral? A verdade é a seguinte: se "A Sangue Frio" rendeu ricos dividendos literários e também financeiros (foi, inclusive, transposto para o cinema por Richard Brooks em 1967) , também marcou, negativamente, a vida de Capote. Segundo informam os créditos finais, ele não conseguiu mais concluir nenhuma obra. Além disso, o gosto pela bebida foi se intensificando e as complicações dela resultantes levaram-no à morte aos 60 anos. E veja-se esta epígrafe escrita por ele no seu último livro (inacabado) , exibida também nos créditos finais: "Mais lágrimas são derramadas por orações atendidas que as não".
Mas não se pode falar em "Capote" sem falar na interpretação de Philip Seymour Hoffman. Na imitação da voz do escritor, na sua extravagância no vestir, nos trejeitos efeminados (mas evitando o mínimo de exagero) , o ator nos faz lembrar de outra grande atuação: a de Bruno Ganz em "A Queda - As Últimas Horas de Hitler". Se não tivesse outras qualidades, o notável desempenho do ator (que lhe rendeu o "Oscar" e o "Globo de Ouro") já faria de "Capote" um filme merecedor de ser visto.

domingo, setembro 24, 2006

OUTRO EPISÓDIO NA DITADURA MILITAR


Não faz muito tempo eu relatei um episódio ocorrido durante a ditadura militar, em que fui confundido com alguém caçado pelos agentes da repressão. Os que me leram maquela ocasião devem estar lembrados. Por muito pouco não fui preso e, provavelmente, teria desaparecido. Hoje vou contar outro episódio. Neste não existiu o mínimo risco de eu ser preso, apesar de eu ter me encontrado, por acaso, com um amigo de Natal que tivera de fugir para não ser apanhado. Eis o episódio.
Em um dia de 1969 viajei a Recife, impelido por um motivo muito especial: conhecer, finalmente, Paixão dos Fortes, um dos mais belos filmes de John Ford, que ele fez em 1946. Entrei no cinema com o filme em andamento e tive que aguardar a sessão seguinte para vê-lo desde o início. Naquela época os filmes eram exibidos em sessões contínuas, terminava uma sessão e, com um pequeno intervalo, a seguinte era iniciada. O espectador não precisava sair da sala e comprar outro ingresso, para ver o filme de novo. Num mesmo dia, você o assistia tantas vezes quisesse, pagando apenas uma vez. Pois bem. Nem bem as luzes foram acesas, aparece Juliano Siqueira na minha frente. Fiquei surpreso, tanto quanto emocionado, pela presença de Juliano, pois jamais me passaria pela cabeça encontrá-lo ali, ou em qualquer outro local de Recife. Juliano era um dos milhares de brasileiros que, naquela época, eram caçados pelo regime militar. Durante o breve intervalo, ele conversou sem parar, sempre interessado em saber notícias dos ex-companheiros do Cineclube Tirol. E me confessou que fora ao cinema, não só pelo filme, mas na esperança de encontrar a mim, ou a Gilberto Stabile, dois fordianos assumidos e de carteirinha assinada.
Mas a alegria daquele reencontro perdia-se um pouco pela apreensão que nem um dos dois conseguia disfarçar, devido à circunstância de um dos interlocutores ser procurado pelos agentes policiais. Quem viveu aquele período negro da nossa História há de se lembrar de que o medo e a tensão eram presenças constantes quando as pessoas, mesmo sem estarem com a cabeça a prêmio, se reuniam para uma simples conversa. Felizmente não aconteceu o pior, até o intervalo terminar. E, ao nos despedirmos, disse a Juliano para tomar cuidado.
O filme recomeçou, assisti-o até o final. Saí do cinema duplamente emocionado: pela grandiosidade de Paixão dos Fortes e pelo inesperado encontro com Juliano. Voltei a Natal um ou dois dias depois. Mas Juliano não deve ter seguido o meu conselho, ou os brucutus da repressão foram mais eficientes. Poucos dias depois soube que ele fo apanhado. Passou cinco anos na prisão. Menos mal que conseguiu sobreviver. E hoje está morando em Natal, depois de passar uma longa temporada no Rio. Foi isso.
***********************************
LUTO NO CINEMA
Esta semana morreu numa clinica de idosos, em Estocolmo, o diretor de fotografia sueco Sven Nykvist. Tinha 83 anos e há muitos anos estava doente, sofrendo de afasia. Sven Nykvist foi um dos gigantes da fotografia no cinema e, desde "Noites de Circo" (1953) , foi sempre o fotógrafo dos filmes de Bergman. Segundo o crítico Ricardo Calil, "para muitos diretores de fotografia, foi o maior na história do cinema. Ele era conhecido por criar a atmosfera de uma cena e captar todos as nuances nas expressões dos atores com recursos mínimos de iluminação". Trabalhou, ocasionalmente, com outros diretores, como Woody Allen (quando este pretendeu ser o Bergman do cinema americana) e Louis Malle, entre outros menos prestigiados.

quarta-feira, setembro 20, 2006

GENTE BOA DE RECORDAR


Talvez seja a idade. É, deve ser. Com frequência, geralmente deitado à espera de o sono chegar, passam pela minha memória pessoas que conheci na minha infância e juventude. Mas só gosto de me lembrar de pessoas boas. Se as más, às vezes, aparecem, não me detenho em recordá-las, para não sofrer de novo algum mal que me causaram. E, para minha sorte, estas já viraram pó. As boas, é claro, também, mas, ao relembrá-las, é como se, de repente, por um passe de mágica, elas voltassem a viver.
Uma das pessoas que sempre me "visitam" é o velhinho Vitorino, cuja figura povoou a minha infância. Pretinho, baixinho, muito pobre, era um homem bem-humorado, com quem valia a pena conviver. O meu pai gostava muito dele. Como esquecê-lo imitando para aquele menino que eu fui o som de um trombone? Ou de expressar no rosto, feito um ator, a diferença entre Juscelino Kubitschek e Juarez Távora, candidatos a Presidente nas eleições de 1955? Ao se referir a Juarez, ele fechava a cara, expunha uma carranca; já com Juscelino se abria num sorriso imenso. E meu pai, sempre que falava no velhinho Vitorino, exaltava-lhe uma qualidade: quando morria alguém da sua condição social, fosse amigo dele, ou não, ele passava parte da noite velando-lhe o corpo. Beleza de pessoa. Coloquei-o num antigo conto, numa pequena homenagem a um grande homem.
Quando cheguei a Natal, conheci o cego Raimundo. Ia quase diariamente ao banco e era sempre recebido festivamente por grande parte dos funcionários. Baixinho, menor talvez do que Vitorino, Raimundo não tinha guia, se movimentando com o auxílio de uma bengala. Às vezes, trazia a gaita (fizera parte, no passado, de um grupo musical formado só de cegos) . Uma das maiores emoções que tive em minha vida foi ouvi-lo uma vez executando a música "Barril de Chope". Falando de chope, cego Raimundo era chegado a uma birita. Tinha vez que chegava até nós naquele estado em que não se devia riscar um fósforo perto dele... Parecia se divertir com a sua falta de visão. "Eu quero é cegar, se o que estou dizendo não é verdade" , era uma das suas tiradas costumeiras. E quando lhe perguntavam se ele conhecia alguém, vinha rápido a resposta: "de vista". Na verdade, identificava as pessoas pela voz. Também o incluí como personagem, mas num romance policial.
E me lembro de Eros. Sim, era esse o nome de um colega. Uma das suas brincadeiras era "dar um papel" para certos colegas, tendo em vista o biótipo deles. Como sabia que eu gostava de cinema (ele também gostava, e, inteligente e sensível, possuía certa visão crítica, embora não conhecesse a técnica e a linguagem cinematográficas) , chegava pra mim e, apontando para um colega, me perguntava qual o papel destinado para ele. Eu confessava a minha incapacidade para a escolha. Ele dava um risinho maroto e mencionava o tipo de personagem destinado àquele funcionário. E quase sempre acertava.
Outra de suas brincadeiras. Ele vivia dizendo que ia fazer uma excursão de navio. Até aí tudo bem. Tanta gente (eu incluído) tem o sonho de um dia viajar de navio. Só que no caso de Eros, a viagem jamais poderia se realizar, as cidades a serem visitadas não eram banhadas pelo mar: Caicó, Campina Grande, Macaíba, por exemplo, para ficar só entre as do Nordeste.
Uma vez pediu carona a um colega para uma festa na AABB, alegando que o seu carro estava na oficina. O colega prontamente o atendeu e pediu informações sobre a localização da casa. Com as instruções na cabeça, à noite foi apanhar Eros. Ao chegar lá, encontrou-o já na calçada com a esposa, morrendo de rir. É que ele morava a poucos passos da AABB. Morreu de um ataque cardíaco, causado pelo esforço empenhado para salvar a filha pequena de se afogar no mar. Tinha pouco mais de quarenta anos.
Vitorino, Raimundo, Eros, pessoas que tornaram a vida mais fácil de ser suportada para quem com eles conviveu.

domingo, setembro 17, 2006

O RIVAL

Ia envolvendo os adversários, um remoinho investindo para o gol. Difícil contê-lo - os pés pareciam imantar a bola, que só conseguia fugir deles quando aplicavam falta no garoto. Recurso inútil. Com a potência, que não se imaginava em pernas tão secas, a falta, cobrada por ele, quase sempre resultava em gol. Ele ia se livrando dos pontapés, deixando os adversários para trás, em mais uma brilhante jogada daquele menino, já ídolo da cidade. Foi quando surgiu à sua frente aquele magricela sardento, forasteiro, naquele dia estreando. Neco requebrou rápido o corpo para a esquerda e, ainda mais rápido, passou a bola para o lado direito e assim deixar o garoto perdido, como os outros. Jogada infalível, que os marcadores já conheciam, mesmo assim eram eram sempre burlados. Só que não teve êxito com o estranho. Vivaz e muito ágil, acompanhou a retirada de Neco pela direita, roubou-lhe a bola, driblou-o e saiu jogando. Neco nunca poderia imaginar que o estranho (logo ele) interrompesse a sua jogada, empregando um recurso daqueles. Sua primeira reação foi de pasmo, sem ânimo para perseguir o garoto. A seguir, a certeza da obrigação de lhe dar o troco. Aguardou que ele estivesse com a bola, para tirá-la e aplicar-lhe um drible humilhante. Foi ao seu encontro, mas o menino não perdeu a bola e ainda realizou duas jogadas, que atraíram a atenção de jogadores e assistentes. Tinha passado da conta, pondo no ridículo por duas vezes, e num curto espaço de tempo, o craque da cidade. Neco descontrolou-se, atacou-o a pontapés, prostrando-o no chão. O magrelo se levantou pronto para revidar, os dois chegaram a se agarrar, mas logo foram apartados. Neco espoletado abandonou o campo. Não pensou em outra coisa o resto do dia. Arquitetava diferentes espécies de jogadas, para realizar sobre o forasteiro no dia seguinte. Executou algumas com êxito, mas em muitas outras o adversário foi melhor. Não se aborreceu, senão intimamente, por ouvir elogios ao sardento. E foi se lhe infiltrando devagarinho o medo de perder o monopólio da bola. Decidiu que teriam que atuar do mesmo lado. Justificou a exigência lembrando aquele incidente e, aparentemente, não ligou para as insinuações maldosas.
*******************
Agora eram dois craques do mesmo lado - coitados dos adversários. A cidade foi que lucrou, ganhando aquele outro Neco. Mas o medo de Neco instalou-se definitivo e com o medo o despeito. Quando Adelmar marcava um gol, era o único a não abraçá-lo. Não retribuía os passes que lhe dava Adelmar, que o deixavam em posição privilegiada para golear. Neco ficava prendendo a bola ou passava-a para outro companheiro. Adelmar não demorou a perceber o boicote e a empregá-lo também. Tornaram-se, então, dois jogadores que sabiam se entender com a bola, mas não sabiam se entender. Fora do campo, mantinham-se afastados o mais possível, se acontecia se encontrarem, não iam além de um olá seco, formal.
********************
Neco recebeu a notícia embasbacado. Se na tarde anterior Adelmar tinha jogado brilhante, como sempre, parece que até mais. Marcara um gol, driblando todo mundo, inclusive o goleiro. De noite o vira na pracinha, conversando animado. Quase não acreditava no que lhe contavam. "Se não tá acreditando, Neco, vamos lá na casa dele".
A mãe de Adelmar não consentiu que vissem o filho. Estava aflita e foi ríspida com os garotos. A irmã, mais calma, explicou que ele estava muito febril, não era aconselhável que lhe entrassem no quarto, naquele momento. Viessem à notinha, talvez ele estivesse melhor. Se Deus quisesse.
A partir daí, Neco começou a pensar na morte de Adelmar. O pasmo inicial dando lugar a uma alegria, que se empenhava em disfarçar. Em presença dos amigos - sozinho, ficava num estado de euforia, ao ponto de quase manifestar-se numa gargalhada.
À noite passou pela casa de Adelmar. Encontrou os amigos sentados no meio-fio, não tinham tido permissão para entrar. Estavam sofrendo com o estado de Adelmar, que talvez não completasse aquela noite. As vozes aflitas atravessavam a porta e janelas fechadas e chegavam cochichadas aos ouvidos dos meninos. Alguém sugeriu saírem, sempre não podiam ver Adelmar. Os demais concordaram, seguiram para a pracinha. A conversa foi só sobre Adelmar, mas driblando a sua enfermidade. Preferiam relembrar suas jogadas maravilhosas, os dribles desconcertantes, a lindeza dos gols. Neco não dava uma palavra, e, no íntimo, se revoltava com os amigos, por incensarem o rival. Com pouco se retirou. Precisava se afastar daqueles amigos que pareciam não lhe reconhecer mais as qualidades de jogador, só faziam louvação para aquele cara de ferrugem. Era bem feito que o forasteiro, vindo de tão longe para roubar-lhe a supremacia da bola, morresse e morresse logo naquela noite. Ele teria que voltar a ser o maior da cidade.
Ao despertar, pensou logo em Adelmar. Nessa alutra, já devia ter morrido. Pulou alegre da rede, asseou-se rápido, engoliu o café. Queria ter a certeza. Saiu rápido, como quando buscava o caminho do gol. Na pracinha, encontrou os amigos, nos rostos o anúncio do fim do rival. Só faltava confirmá-lo com palavras. "Adelmar morreu"? "Não agoura não, Neco". "Quer dizer que melhorou"? "Tá na mesma. Mas ainda há esperança".
******************************
Muita gente na casa de Adelmar. Na rede, a mãe de choro solto, cercada pelas amigas. O choro era acompanhado de gritos e de frases de desespero. Chegava a desviar para si a atenção ao corpo do filho estirado no caixão. As pessoas entravam no quarto, para se revezarem no consolo à coitada, traziam-lhe café e sedativos, que ela atirava longe. Outras se comprimiam à porta e havia as que se retiravam, sem coragem de presenciar a dor da mulher.
Quando Neco chegou, o corpo de Adelmar não estava sendo velado por ninguém. Examinou primeiro o rosto sardento, chupado pela doença. Depois as mãos cruzadas, nos dedos enleado um terço. Finalmente as flores que cobriam os sapatos. Circunvagou os olhos pela sala, a ver se havia alguém observando-o. Todos atentos ao histerismo da mulher. Neco afastou as flores, descalçou os sapatos e as meias, escondeu-os sob as flores. Olhou para os pés descarnados, tocou-os e depressa recuou a mão: frígidos. Mas em seguida tocou-os de novo e dessa vez os apalpou demoradamente e não se conteve em apertá-los nos dedos crispados pelo ódio há muito tempo acumulado. Quando largou os pés, veio o desejo de extravasar a sua felicidade. Como se estivesse sozinho na casa, explodiu numa longa gargalhada, sem despregar os olhos daqueles pés, e tornou-se uma zoadeira só o seu desabafo e o chororô da mulher.
***********************************
Conto extraído do meu livro Não Enterrarei os Meus Mortos

quarta-feira, setembro 13, 2006

MAIS ALGUNS MOMENTOS CHOCANTES DO CINEMA


- A patética imitação do cantar do galo pelo velho professor de "O Anjo Azul" (Josef Von Sternberg/1930)
- O "delirium tremens" do alcoólatra em "Farrapo Humano" (Billy Wilder/1945)
- Um macaco pregado numa cruz conduzida por anões em "Também os Anões Começaram Pequenos" (Werner Herzog/1970)
- Em "A Marca da Maldade" (Orson Welles/1958) : despertada, num quarto de hotel, de um sono induzido por substância tóxica, Janet Leigh vê o rosto aterrorizante do homem morto pendurado à cabeceira da cama.
- O corpo do adolescente morto é atirado junto ao lixo acumulado num terreno descampado em "Os Esquecidos" (Luis Buñuel/1950)
- Em "Gritos e Sussurros" (Ingmar Bergman/1973) : Ingrid Thulin fere a vagina com um caco de vidro e, na cena seguinte, deitada na cama, lambuza o rosto com sangue, com uma expressão provocadora para o velho marido de pé no quarto.
- Ed Harris tirando os óculos e exibindo para o dono do restaurante a horrenda cicatriz em torno do olho em "Marcas do Passado" (David Cronenberg/2005)
- Lou Castel debatendo-se no chão, como um inseto pisado, vítima de um ataque epilético, enquanto uma vitrola toca "La Traviata", no final de "De Punhos Cerrados" (Marco Bellochio/1965)
- O sacrifício de uma criancinha pelo beato de "Deus e o Diabo na Terra do Sol" (Glauber Rocha/1963)
- A prostituta escorraçando do quarto, com um chicote, o escritor, que, com o rosto cortado, foge para a rua, tropeçando no lixo ("Eva", Joseph Loseuy/1962)
NOTA SOBRE "O MAIOR AMOR DO MIUNDO"
Numa primeira visão, tive uma ótima impressão desse último filme de Cacá Digegues , em cartaz no Praia Shopping e no Midway. Um astrofísico brasileiro (José Wilker, numa boa atuação)vivendo nos Estados Unidos há muitos anos, vem ao seu país para receber uma condecoração do governo, num momento em que está se despedindo da vida, vítima de um tumor cerebral. Em visita ao pai, numa clínica geriátrica, fica sabendo que a sua mãe biológica não é a esposa do pai , e, de repente, vem-lhe o interesse de colher informações sobre ela. A narrativa dessa busca alterna presente e passado. O contato com o presente é chocante para aquele homem que vive "no ar", com uma dedicação não só exclusiva, mas obsessiva à profissão (ele sequer se interessa por sexo, resistindo ao assédio da secretária e tem a primeira relação com uma jovem e atraente negra da favela), ao se deparar com com uma realidade de miséria e violência. Experiente e hábil, Diegues não cai na armadilha de querer transformar esse personagem (mesmo com os dias contados) num revoltado e num crítico, se já na juventude, durante a vigência da ditadura militar, demostrava desinteresse pela realidade do país. O maior amor do mundo é o do pai (Sérgio Brito) por Flora, a filha de uma empregada de sua casa. Ela morre ao dar à luz o filho, por falta de socorro médico, e no dia em que o Brasil perde para o Uruguai. O filho desconfia que seja por isso que os dois sempre tentam tido um relacionamento frio, distante. (A cada aniversário seu, o pai lhe narra, com detalhes, a derrota do Brasil.) "O Maior Amor do Mundo" tem muito mais elementos para se discutir, que não caberiam numa simples Nota. Mesmo sem conhecer os últimos filmes de Diegues (mas baseado em referências críticas) creio poder dizer que é o seu melhor filme em muitos anos. Merece ser visto.

sábado, setembro 09, 2006

UM CASO REAL E UM FILME

Há poucos dias a mídia noticiou a fuga de uma jovem austríaca da casa onde fora mantida prisioneira, pelo seu sequestrador, durante um longo período. Uns sete, oito anos, por aí. Ainda não atingira a adolescência quando o sequestro ocorreu. Ao retomar a liberdade já era uma moça-feita, conforme vimos pela televisão. Ao ser entrevistada, entre outras revelações, uma chamou mais a atenção: durante o tempo em que esteve nas mãos do sequestrador, os dois costumavam sair de casa para uns passeios e que ela aproveitava o contato com as pessoas para fazê-las entender que ali estava na companhia do sequestrador. Fazia para alguém um movimento com os olhos, que, no entanto, nunca foi percebido. Até que um dia ela conseguiu escapar (não me lembro de que maneira) e agora estava sã e salva.
O insólito nesse sequestro é que o rapaz nunca pediu dinheiro à familia da moça para libertá-la. E, pelo aspecto da jovem, ela não sofreu maus-tratos e, parece, que não foi obrigada a manter relações com o sequestrador. Tudo indica que o rapaz tinha um amor platônico por ela e que devia sofrer de algum distúrbio mental ou psíquico. Tanto que se matou, quando se viu privado da convivência com ela.
Esse caso me fez lembrar de O Colecionador, um filme de William Wyler, 1965, e um dos pontos mais altos da carreira do cineasta. É a história de um rapaz solitário, que colecionava borboletas, e que se apaixona por uma moça. Impedido pela timidez de tentar um relacionamento saudável com a moça, ele a sequestra e a mantém presa em sua casa por algum tempo. O móvel do sequestro é o de ter aquela jovem em sua companhia para sempre e, pela demonstração do seu amor, aliada à convivência, conquistar um dia o coração dela. Em vão. O final do filme difere do final do caso real. Confesso que não me lembro bem, decorridos quase quarenta anos que o vi. Sei que a moça morre, parece que de morte natural. Tampouco me lembro do que aconteceu ao sequestrador (Bené e Moacy talvez possam me esclarecer) ; se ele, a exemplo do sequestrador da jovem austríca, se suicidou, ou se foi apanhado pela polícia. Esse belo filme bem que poderia ser lançado em DVD. O sequestrador é interpretado por Terence Stamp, naquela época gozando de um grande prestígio, que o levou a trabalhar com Pasolini (Teorema), Fellini (Toby Dammitt, um média-metragem) e Losey (Modesty Blaise). A jovem era vivida por Samantha Eggar, que esteve longe de ter o mesmo sucesso de Stamp e que desapareceu sem deixar rastros. Nem sei se ainda está entre nós.

quarta-feira, setembro 06, 2006

A GUERRA IDEOLÓGICA DOS RATOS, DE BERILO WANDERLEY

Os ratos lá de casa não tiveram mais o que fazer, intelectualizaram-se e, além do mais, como recomenda o processo da história, firmaram suas ideologias políticas que estão defendendo com unhas e dentes, principalmente dentes. Comecei a desonfiar dessas últimas tendências quando o meu volume de "O Capital", de Marx, amanheceu com várias páginas roídas. No dia seguinte, em contra-ataque, a prateleira onde alinhei a literatura norte-americana acordou quase inteiramente devorada. Um grupo de ratos vermelhinhos não gostara, decerto, da guerra dos ratos antiianques (sic) sobre Marx e fez a investida, e, no final das contas, sem Organização das Nações Unidas para ter a quem apelar, saiu o dono dos livros com a carga do prejuízo.
Mas a guerra fria não cessou aí. Houve, é certo, um armistício que durou mais de uma semana e que me animou bastante. Julguei que os contendores tivessem decidido, nalguma conferência dos Grandes, votar pelo desarmamento, a bem de uma melhor digestão deles próprios contendores, resolvendo retornar às aprazíveis colinas das cozinhas e dos armários, onde a vida é mais mansa à noite e as guerras ideológicas não têm sentido. Mas esta semana, não sei que reviravolta aconteceu, pois o grupo reacionário resolveu quebrar o tratado de paz, ou, simplesmente, o armistício tentado na última conferência. Dois romances de Leon Tolstoi, meu caro e barbudo Tolstoi, despertaram roídos. Desconfio que essas barbas é que atiçaram a ignorância dos ratinhos antiamericanistas. Tolstoi jamais sonhou com a revolução cubana, quando deixou crescer suas respeitáveis barbas brancas que, mansamente cofiadas, o ajudaram a bem escrever a "Guerra e Paz". Mas os ratos, decerto maus alunos de literatura, desconheciam tanto Tolstoi como a isenção política de suas barbas brancas, e largaram os dentes contra os dois romances, os quais traziam o retrato do velhote russo nas primeiras páginas. Ando assustado e já me decidi por algumas medidas urgentes, para evitar uma Grande Guerra. Encaixotei o resto de Tolstoi, mais Dostoiewsky, mais Pusckyn, inclusive Pudovski e Eisenstein e tudo mais que é russo. Para outro lado do quarto, meti noutro caixão os norte-americanos, de Melville a Faulkner, de Poe a Frost. Sempre que possível, devemos evitar as guerras. Face ao meu gesto, um dia um conselho de ratos sábios e serenos saberá outorgar-me o Prêmio Nobel da Paz. Que já comecei a esperar, com vaidade.
***************************************
O norte-rio-grandense Berilo Wanderley (1934-1979) foi cronista, crítico de cinema e poeta. Em vida, publicou o livro de poemas "Telhado do Sonho" (1956) , Em julho passado, mês de aniversário de seu falecimento, publiquei neste espaço duas crônicas dele, as quais, como esta bem-humorada crônica, foram retiradas do livro "Revista da Cidade" (EDUFRN/1994), organizado por sua viúva.

sábado, setembro 02, 2006

ALGUNS MOMENTOS CHOCANTES DO CINEMA


- O tiro na palma da mão de James Stewart em "Um Certo Capitão Lockhart" (Anthony Mann/1955)
- O café quente atirado por Lee Marvin no rosto de Gloria Grahame em "Os Corruptos" (Fritz Lang/1953)
- Richard Widmark empurrando uma velhinha paralítica do alto de uma escada em "O Beijo da Morte" (Henry Hathaway/1947)
- Cavalos agonizando no final de uma batalha em "Kagemusha" (Akira Kurosawa/1980)
- Uma navalha cortando um olho em "Um Cão Andaluz" (Luis Buñuel/1928)
- O assassinato de Janet Leigh no banheiro em "Psicose" (Alfred Hitchcock/1960)
- Um cão com a mão de uma pessoa presa na boca em "Sanjuro" (Kurosawa/1962)
- O cavalo que aparece morto na cama do produtor de cinema, que solta um grito lancinante, em "O Poderoso Chefão I" (Francis Ford Coppola/1972)
- O palhaço carregando a esposa nua, depois de ela tomar banho no rio com oficiais militares em "Noites de Circo" (Ingmar Bergman/1953)
- A prostituta, deitada num sofá, puxando com um pé o dinheiro atirado pelo homem em "A Aventura" (Michelangelo Antonioni/1959)
GLENN FORD
Em maio último falei nesta página sobre Glenn Ford, que no primeiro dia daquele mês completara 90 anos. Quase quatro meses depois, ele se vai. Glenn Ford foi um ator de talento (me lembro de um artigo de Paulo Francis em que, de passagem, ele mencionava uma expressão no rosto de Ford, que só ele sabia fazer), mas não foi bem aproveitado pelo cinema de Hollywood. Não foram muitos os seus filmes memoráveis: "Gilda", o mais cultuado de sua filmografia (mas não o melhor), "Os Corruptos", "Sementes da Violência", "Como Nasce um Bravo", "Desejo Humano" (em que trabalhou de novo com Lang, uma espécie de refilmagem de "A Besta Humana", de Renoir), "Cimarron", "Escravas do Medo", um interessante thriller de Blake Edwards, diretor mais especializado em comédia. Talvez uns dois ou três mais. Além de "Gilda", fez mais 4 filmes com Rita Hayworth. Casou quatro vezes, a primeira vez com a atriz e dançarina Eleanor Powell, com quem teve seu único filho, Peter. Pouca gente talvez saiba que não nasceu nos Estados Unidos, mas no Canadá. Seu nome de batismo era Gwyllyn Samuel Newton Ford. Com a sua morte, só resta Kirk Douglas como um dos 3 atores nascidos em 1916 e que iniciaram a carreira nos anos 1940. O outro era Gregory Peck.