quarta-feira, setembro 06, 2006

A GUERRA IDEOLÓGICA DOS RATOS, DE BERILO WANDERLEY

Os ratos lá de casa não tiveram mais o que fazer, intelectualizaram-se e, além do mais, como recomenda o processo da história, firmaram suas ideologias políticas que estão defendendo com unhas e dentes, principalmente dentes. Comecei a desonfiar dessas últimas tendências quando o meu volume de "O Capital", de Marx, amanheceu com várias páginas roídas. No dia seguinte, em contra-ataque, a prateleira onde alinhei a literatura norte-americana acordou quase inteiramente devorada. Um grupo de ratos vermelhinhos não gostara, decerto, da guerra dos ratos antiianques (sic) sobre Marx e fez a investida, e, no final das contas, sem Organização das Nações Unidas para ter a quem apelar, saiu o dono dos livros com a carga do prejuízo.
Mas a guerra fria não cessou aí. Houve, é certo, um armistício que durou mais de uma semana e que me animou bastante. Julguei que os contendores tivessem decidido, nalguma conferência dos Grandes, votar pelo desarmamento, a bem de uma melhor digestão deles próprios contendores, resolvendo retornar às aprazíveis colinas das cozinhas e dos armários, onde a vida é mais mansa à noite e as guerras ideológicas não têm sentido. Mas esta semana, não sei que reviravolta aconteceu, pois o grupo reacionário resolveu quebrar o tratado de paz, ou, simplesmente, o armistício tentado na última conferência. Dois romances de Leon Tolstoi, meu caro e barbudo Tolstoi, despertaram roídos. Desconfio que essas barbas é que atiçaram a ignorância dos ratinhos antiamericanistas. Tolstoi jamais sonhou com a revolução cubana, quando deixou crescer suas respeitáveis barbas brancas que, mansamente cofiadas, o ajudaram a bem escrever a "Guerra e Paz". Mas os ratos, decerto maus alunos de literatura, desconheciam tanto Tolstoi como a isenção política de suas barbas brancas, e largaram os dentes contra os dois romances, os quais traziam o retrato do velhote russo nas primeiras páginas. Ando assustado e já me decidi por algumas medidas urgentes, para evitar uma Grande Guerra. Encaixotei o resto de Tolstoi, mais Dostoiewsky, mais Pusckyn, inclusive Pudovski e Eisenstein e tudo mais que é russo. Para outro lado do quarto, meti noutro caixão os norte-americanos, de Melville a Faulkner, de Poe a Frost. Sempre que possível, devemos evitar as guerras. Face ao meu gesto, um dia um conselho de ratos sábios e serenos saberá outorgar-me o Prêmio Nobel da Paz. Que já comecei a esperar, com vaidade.
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O norte-rio-grandense Berilo Wanderley (1934-1979) foi cronista, crítico de cinema e poeta. Em vida, publicou o livro de poemas "Telhado do Sonho" (1956) , Em julho passado, mês de aniversário de seu falecimento, publiquei neste espaço duas crônicas dele, as quais, como esta bem-humorada crônica, foram retiradas do livro "Revista da Cidade" (EDUFRN/1994), organizado por sua viúva.

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