terça-feira, fevereiro 24, 2009

UM TELEFONEMA PARA A INFÂNCIA


Este texto já saiu aqui em 4.10.06. Estou republicando-o como uma homenagem ao companheiro de infância Quinca (Joaquim Magalhães Neto), que, segundo soube há poucos dias, faleceu no dia quatro deste mês, aos 64 anos.
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Não eram 8 horas da noite da sexta passada quando o telefone tocou. Só no apartamento, fui atender a chamada. Uma voz masculina queria falar com o Francisco. É ele, eu disse. Sem perguntar como eu ia, o homem foi iniciando uma espécie de divertido jogo para que eu o identificasse. A primeira pista: fôramos amigos, mas há exatos 50 anos perdêramos o contato. Não sei por que supus, de imediato, termos nos conhecido no Liceu, onde ingressei em 1956. Ele disse não, não estudei no Liceu (e eu depressa reconheci o meu erro, pois estudara naquele colégio até 1960, o que reduzia para 46 anos o nosso último contato), nós nos conhecemos de Canindé. E o jogo continuou. Ele disse que morava na praça da Basílica, argumentei que na praça moravam outros amigos meus. E ele, você se lembra do bar do Maciel? Disse que sim e deduzi que ele fosse o Antônio, filho do Maciel. Segundo erro meu. Aí ele deu a pista definitiva, que morava vizinho ao bar. Então, como um estalo, eu me lembrei do Quinca, filho de Antônio Magalhães e de Dona Mirtes (uma bonita mulher): então, você é o Quinca. Do outro lado da linha veio a risada jubilosa, por eu, afinal, ter identificado o dono daquela voz, e, acoplada a ela, a diversão, como se aqueles dois homens, já na casa dos 60, estivesessem participando de uma brincadeira de quando eram meninos. Aí voltamos ao presente, cada um querendo saber como o outro estava vivendo. Mas foi por um breve tempo, porque ele queria relembrar um episódio que ocorrera comigo e do qual não me lembrava. Ei-lo.
Um solteirão da nossa cidade gostava de promover na praça, à noite, uma corrida de garotos. Quinca não disse, nem me recordo, se aquele homem dava algum prêmio ao vencedor. Bom, a corrida se dava assim. Era uma disputa entre dois meninos, mas eles não corriam emparelhados. Um menino ficava no início do lado direito da praça e o outro se postava do lado esquerdo. Ao dar-se a largada, o vencedor seria o que chegasse primeiro ao final de um dos lados. Morava ali na praça o Tirso Rabelo, que corria como o diabo, e sempre ganhava. E se gabava de não ter concorrente à sua altura. Pois um dia eu resolvi enfrentar o Tirso. O Quinca não disse se por iniciativa própria, ou se fui estimulado por alguns amigos. O certo é que disputei com a fera e ganhei dele. Ainda segundo Quinca, fui ovacionado e o Tirso gozado pelos outros garotos, mas ele não me disse se houve revanche. Esse episódio tem a intromissão do insólito, porque continuo não me lembrando dele, mesmo depois de relatado por Quinca. O que lembro é que gostava de apostar corrida na praça, mas com outros meninos e as corridas eram promovidas por nós mesmos. Se a memória é seletiva, como dizem, eu não devia tê-lo esquecido. Estranho, não?
Mas o Quinca tinha outra coisa pra me contar. Você talvez não saiba que fui apaixonado por uma parenta sua. Paixão de criança, eu tinha 11 anos. A paixão dele se chamava Salete, um pouco mais nova do que ele, filha de um irmão do papai. Uma menina bonitinha, com um leve estrabismo. Na década de 1970 ela morou em Natal durante cerca de um ano, por causa da remoção do marido, da Polícia Federal, para esta cidade. Ficara mais bonita, mas evitei dizer isso ao Quinca, que, cinquenta anos depois, parece ainda estar interessado nela. Revelou que conservava uma fotografia de Salete participando de um pastoril e quis saber onde ela estava residindo. Eu não sei, mas prometi que iria cair em campo para saber o paradeiro dela e o informaria no próximo contato que tívessemos. Porque ele disse que iria me ligar outras vezes, agora que conseguira o meu telefone.
Não é necessário dizer o quanto aquele telefonema me fez bem. Por alguns minutos pude voltar aos tempos bons da infância e retomar o contato com um amigo. E depois de falar com ele, fui rever uma foto colada num álbum, em que estamos com mais 3 garotos, antes do início de uma pelada. Quinca e Boroca (um negrinho muito bom de bola) em pé, enquanto eu, Nei e Tonico estamos agachados. Eu estou ladeado pelos dois, segurando a bola, como centro-avante.
Bons tempos. Velhos tempos. E quantas saudades.
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NOTA DE HOJE - No e-mail que recebi, informando o falecimento de Quinca, é dito que o negrinho Boroca também já se foi, sem estar precisada a data da sua morte.

terça-feira, fevereiro 17, 2009

TEXTO DE CECÍLIA MEIRELES SOBRE O CARNAVAL

Pierrô, Arlequim e Colombina, óleo obre
tela de Di Cavalcanti (1922)
Depois do Carnaval
Terminado o carnaval, eis que nos encontramos com os seus melancólicos despojos: pelas ruas desertas, os pavilhões, arquibancadas e passarelas são uns tristes esqueletos de madeira; oscilam no ar farrapos de ornamentos sem sentido, magros, amarelos e encarnados, batidos pelo vento, enrodilhados em suas cordas; torres coloridas, como desmesurados brinquedos, sustentam-se de pé, intrusas, anômalas, entre as árvores e os postes. Acabou-se o artifício, desmanchou-se a mágica, volta-se à realidade.
À chamada realidade. Pois, por detrás disto que aparentamos ser, leva cada um de nós a preocupação de um desejo oculto, de uma vocação ou de um capricho que apenas o Carnaval permite que se manifestem com toda a sua força, por um ano inteiro contida.
Somos um povo muito variado e mesmo contraditório; o que para alguns parecerá defeito é, para outros, encanto. Quem diria que tantas pessoas bem comportadas, e aparentemente elegantes e finas, alimentam, durante trezentos dias do ano, o modesto sonho de serem ursos, macacos, onças, gatos e outros bichos? Quem diria que há tantas vocações para índios e escravas gregas, neste país de letrados e de liberdade?
Por outro lado, neste chamado país subdesenvolvido, quem poderia imaginar que tantos reis e imperadores, princesas de Mil e Uma Noites, soberanos fantásticos, banhados em esplendores que, se não são propriamente das minas de Golconda, resultam, afinal, mais caros: pois se as gemas verdadeiras têm valor por toda a vida, estas, de preço não desprezível, se destinam a durar somente algumas horas.
Neste país tão avançado e liberal - segundo dizem - há milhares de corações imperiais, milhares de sonhos profundamente comprimidos mas que explodem, no Carnaval, com suas anquinhas e casacas, cartolas e coroas, mantos roçagantes (espanejemos o adjetivo), cetros, luvas e outros acessórios.
Aliás, em matéria de reinados, vamos do Rei do Chumbo ao da Voz, passando pelo dos Cabritos e dos Parafusos: como se pode ver no catálogo telefônico. Temos impérios vários, príncipes, imperatrizes, princesas, em etiquetas de roupa e em rótulos de bebidas. É o nosso sonho de grandeza, a nossa compensação, a valorização que damos aos nossos próprios méritos...
Mas agora que o Carnaval passou, que vamos fazer de tantos quilos de miçangas, de tantos olhos faraônicos, de tantas coroas superpostas, de tantas plumas, leques, sombrinhas...?
"Ved de quán poco valor
Son las cosas tras que andamos
Y corremos..."
dizia Jorge Manrique. E no século XV! E falamos de coisas de verdade! Mas os homens gostam da ilusão. E já vão preparar o próximo Carnaval...
- Texto do livro "Quatro Vozes", Editora Record - Rio de Janeiro, 1998.

terça-feira, fevereiro 10, 2009

MISCELÂNEA (2)

Imagens de "Os Incompreendidos".





1) Em cada ano ocorre o centenário de nascimento de pessoas que se notabilizaram nas atividades a que se dedicaram. Enriqueceram as artes, a cultura, a ciência, etc, e muitas dessas pessoas foram idolatradas por multidões. O ano de 2009 assinala o centenário de nascimento de Carmen Miranda, de quem não preciso dizer nada, tão conhecida se tornou, até, presumo, pelas gerações mais novas. Também ocorre o centenário do ator James Mason. Este, acredito, só é conhecido pelos cinéfilos e críticos da minha geração e anteriores. Foi um grande ator inglês, que fez carreira no cinema americano. Talvez os mais novos se lembrem dele em "Lolita", de Kubrick, a primeira versão adaptada para o cinema do romance de Nabokov, em que interpretava o professor de meia-idade que se apaixona por uma garota. Outro filme seu mais conhecido é "Intriga Internacional", de Hitchcock, em que trabalhava com Cary Grant. James Mason é o meu ator preferido, como já revelei mais de uma vez.
Ao longo do ano haverá centenários de mais gente ilustre (como, me ocorre agora, o de Dom Helder Câmara), que será noticiado pela mídia. Mas o centenário mais importante para mim é de uma mulher anônima, que não escreveu um único poema, uma única crônica, nunca pisou num palco, não apareceu na tela, ficou fora dos jornais, mas teve um significado muito grande na minha vida. Quero me referir a Antônia, ou, melhor, a Neném, como era chamada desde a infância. Quero me referir à minha mãe, que nasceu em 20 de abril de 1909. No momento oportuno estarei aqui lhe prestando uma pequena homenagem



2) Já a "Nouvelle Vague" está completando 50 anos. Lançado em 1959, o filme "Os Incompreendidos" ("Les 400 Coups"), de François Truffaut, é unanimemente reconhecido pelos críticos e historiadores como o iniciador da "Nouvelle Vague". Foi Truffaut, aliás, quem liderou o movimento, ao qual aderiram Jean-Luc Godard, Claude Chabrol, Eric Rohmer e Jacques Rivette. Críticos atuantes da mitológica revista "Cahiers du Cinéma", os cinco jovens tinham em mente insurgir-se contra o cinema francês feito por cineastas de gerações passadas, com a exceção de Renoir e talvez um ou outro. "O cinema de papai", como eles rotulavam os filmes daqueles veteranos; veteranos, vamos reconhecer, que tiveram a sua importância, como René Clair, Marcel Carné e René Clément, para ficar só com esses nomes.
Mas partindo dessa premissa, a "Nouvelle Vague" promoveu uma renovação na narrativa, na linguagem, levando as filmagens para as ruas (embora o Neo-Realismo já tivesse feito isso), utilizando a luz natural e a câmera na mão, revelando diretores importantes e atores, enriquecendo mais o cinema com grandes obras. Sua busca de renovação é também considerável na influência que exerceu em jovens cineastas de outros países, como os brasileiros que fundaram o Cinema Novo. Dos cinco, apenas o seu líder já não está entre nós, enquanto os demais continuam atuantes. Truffaut faleceu em 1984, aos 52 anos.



3) Peço permissão à minha cara Lili para falar de um assunto que ela relatou no seu blogue http://retinasurbanas.blogspot.com/. É o seguinte. No cargo desde 1997, quando aceitou o convite do então governador Mário Covas, John Neschling (apesar do nome, é brasileiro nascido no Rio), regente titular da OSESP (Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo) foi demitido pelo presidente do Conselho de Administração da Fundação OSESP, Fernando Henrique Cardoso. E por e-mail. Mas falam que a demissão partiu do governador José Serra. Segundo Lili, "Neschling foi gravado num ensaio falando que Serra é um 'menino mimado'".
Não dá para acreditar que a demissão do maestro foi motivada por essa frase sobre o governador. Chamar este de menino mimado, se não deixa de ser um desrespeito em termos de relação entre superior e subordinado, não é uma ofensa grave, como tachar Serra de corrupto, mesmo que ele o fosse, ou falar algo de sua vida pessoal. Penso cá comigo que Neschling devia estar incomodando o governador com coisas referentes à orquestra. O governador e, talvez, o presidente da Fundação OSESP não deviam estar satisfeitos com suas possíveis queixas, reclamações, ou reivindicações. O fato de um funcionário dedicado, para não usar uma palavra pesada, ir para um ensaio da orquestra munido de um gravador, dá indícios de que o homem estava sendo "vigiado".
A demissão de Neschling, seja por qual motivo for, é, antes de tudo, uma injustiça e uma desconsideração contra um homem que assumiu a OSESP numa situação difícil e, com afinco e dedicação, levou-a ao estado atual. Enquanto isso, muitos servidores do primeiro escalão e dos abaixo deste nas administrações federal (principalmente), estaduais e municipais saqueiam os cofres da Nação e, na maioria dos casos, só recebem o bilhete azul se eles mesmos quiserem. Mas assim é o Brasil e assim continuará.

terça-feira, fevereiro 03, 2009

PICKPOCKET E O CINEMA DE ROBERT BRESSON




O cinema, que ele chamava de cinematógrafo, idealizado por Bresson transformou-o num solitário no universo da arte que ele adotou, tão solitário quanto o ladrão de "Pickpocket" (1959), filme que sucedeu a "Um Condenado à Morte Escapou" (1956). Um cinema, pelo menos, a partir de "Diário de um Pároco de Aldeia", 1950, despojado, seco, antipsicológico, desdramatizado. Esse último aspecto denotava a intenção de Bresson de desvincular o cinema da influência do teatro. E para alcançar esse fim, ele tinha que contar com a disposição, o empenho e, principalmente, a submissão dos atores, dos quais queria que não expressassem "a imitação de diferentes rostos, gestos e vozes", buscando "levá-los ao automatismo que acho que ocupa uma grande parte na nossa vida", conforme afirma em entrevista a um casal de jornalistas, reproduzida nos Extras do DVD de "Pickpocket". Daí a sua decisão, tomada já a partir de "Diário de um Pároco de Aldeia", de só trabalhar com atores não profissionais, já que estes, ao contrário dos profissionais, eram mais receptivos às suas exigências.
Na mesma entrevista, Bresson diz que prefere que, antes de entender um filme seu, o espectador o sinta, que acha mais importante que "os sentidos antecedam a inteligência". Ou seja, a emoção em lugar da razão. No caso específico de "Pickpocket", pretendia dos espectadores que "sentissem essa atmosfera que envolve o ladrão, essa atmosfera que faz as pessoas se sentirem angustiadas e perturbadas". E, de fato, sem ser necessário recorrer a gestos e expressões característicos da dramatização, o "modelo" (assim ele chamava os atores e atrizes de seus filmes, e me pergunto se essa denominação não traía, consciente, ou inconscientemente, o pintor que ele pretendia ser, antes de optar pelo cinema) Martin Lasalle passa-nos a sensação de um perturbado, de um amedrontado, sentindo o assédio do policial, essa situação desconfortável que envolve o seu personagem Michel, um batedor de carteiras.
De um modo geral, o cineasta francês é associado ao jansenismo. Esse movimento católico que leva o nome do seu criador, o teólogo e bispo holandês Cornélio Jansênio (1585-1638) pregava a ideia da predestinação quanto ao destino do homem, que não tinha como mudar esse destino. O homem não teria livre-arbítrio, liberdade, estando destinado a fazer o que lhe acontecia na vida. É o que ocorre com Michel. Um jovem que se vê impelido a se tornar um assaltante, sem ter a vocação e o talento para tal, tanto que é apanhado pela polícia no primeiro roubo que pratica. É apenas interrogado, mas, a partir daí, inicia-se o assédio do policial chefe. Mesmo quando lhe aparece um verdadeiro profissional que lhe ensina os truques para o bom desempenho da "profissão" (e com quem, além de um conhecido deste, passa a agir), percebe-se que ele não nasceu para ladrão. E, no entanto, prossegue nessa "aventura", segundo a definição de Bresson numa espécie de "nota" antes de se iniciarem os créditos. Até ser de novo apanhado e dessa vez fica preso.
Ao filme não interessa revelar o destino do personagem daí pra frente, até por não se tratar de um filme policial, como esclarece Bresson no início da "nota". E, sim, mostrar que, na cadeia, recebendo visitas de Jeanne (Marika Green), a jovem vizinha da sua mãe (presumivelmente viúva, esta vive sozinha, pois o filho mora em um pequeno e modestíssimo apartamento), Michel desperta para o fato de que existe um amor entre eles. Um sentimento que o faz chegar até ela só depois de ele ter percorrido um "estranho caminho". Tarde demais. Os planos da cena final pertencem à antologia do cinema. Michel e Jeanne separados pela grade buscam se beijar e se tocar, em vão. E a derradeira imagem (Michel de frente, Jeanne de perfil, um pouco inclinada, unidos e ao mesmo tempo separados pela barreira da prisão) contém uma beleza e uma funcionalidade pictóricas, dando razão a Truffaut quando disse que o cinema de Bresson se aproxima mais da pintura do que da fotografia.