terça-feira, novembro 25, 2008

CONTOS DE TÓQUIO ( Tokio Monogatari/1953)




Também conhecido por Viagem a Tóquio e Era Uma Vez em Tóquio, esse filme de Yasujiro Ozu (Pai e Filha, já comentado aqui), aborda a questão dos relacionamentos familiares, centrando-se na conduta do filho Koichi (Sô Yamamura) e da filha Shije (Haruko Sugimura) para com os pais, Shukishi (Chishu Ryu) e Tomi Hirayama (Chieko Higashiyama), que saem de sua longínqua cidade para visitá-los em Tóquio - conduta a que assistimos com um misto de pena pelo velho casal e de reprovação, que pode chegar até à indignação. Não há alegria, não há prazer pela visita da parte dos dois filhos. O que há é uma sensação de incômodo até certo ponto dissimulado, uma indiferença, uma falta de dedicação aos pais, confinados na casa do filho, sem que lhes seja mostrada a cidade, situação que chega ao ponto extremo de eles fazerem o casal passar uns dias em um hotel. E por os velhos não comentarem entre si a atitude dos filhos (a única observação que Shukishi faz à esposa é quanto à descoberta de que Koichi é um um "médico de subúrbio", que não se realizou, portanto, na profissão), fica-se com a impressão de de que eles não a sentem. Mas é uma impressão falsa, como se verá perto do final do filme.
Essa viagem só não se torna um desastre completo por causa de Noriko (Setsuko Hara), a nora viúva. É ela que leva os ex-sogros para um passeio pela cidade em um ônibus turístico e abriga Tomi em sua casa uma noite, quando deixara o hotel com o marido, perturbados com o barulho da noite anterior. Aliás, a chegada inesperada dos pais à casa da filha, onde funciona o seu salão de beleza, proporciona uma situação constrangedora para Shije, que os manda esperá-la em um cômodo da casa e, perguntada por uma cliente quem são os visitantes, se envergonha de revelar que são seus pais, fazendo-os passar por uns "amigos do interior."
É Noriko, a meu ver, o personagem mais "forte", por concentrar em si o que de mais humano há no filme, em que pese o realce dado ao casal de velhos. É ela que proporciona à ex-sogra o único momento agradável em sua estada naquela Tóquio de forte calor (um detalhe: na maior parte de Contos de Tóquio, o casal está se abanando com um leque, o que pode ser um contraponto à frieza do comportamento dos filhos), quando passam a noite juntas. E enquanto os dois filhos mais velhos e o mais novo, Keiso (Shiro Osaka), este residindo em Osaka (e que se atrasa na viagem para visitar a mãe doente, já a encontrando morta) retornam para suas cidades logo depois do sepultamento da mãe, Noryko fica mais um pouco, fazendo companhia ao viúvo e a Kyoko, a solteira ex-cunhada.
E os dois velhos não ficam imunes ao tratamento que recebe dela. Ainda em Tóquio, Tomi a convida para visitá-los e chega a aconselhá-la a voltar a se casar. E Shukichi presenteia-a com o relógio da esposa, um relógio antigo que ela usava desde jovem. É nessa cena entre os dois que, afinal, Shukichi se queixa da conduta daqueles filhos, confrontando-a com o comportamento dela. A Noriko é dedicada uma das últimas imagens dos filme: no trem de volta para Tóquio, ela retira o relógio da bolsa, olha-o rapidamente, e, em seguida, o rosto assume uma expressão séria, reflexiva.
Com a exposição de sentimentos e emoções vários, cujo clímax é a morte de uma mulher sofrida, o filme corria o risco de descambar para o melodrama, não tivesse o diretor a capacidade de Ozu de driblá-lo em razão do seu temperamento artístico, que compunha a sua maneira (ou o seu estilo) de conduzir a história. Ozu conseguia controlar os excessos dramáticos, mesmo quando a cena, o momento continham uma forte carga emocional (observe-se o choro, talvez mais provocado pelo remorso, de Shije quando a mãe morre, ou o desabafo de Kyoko a Noriko, reprovando a atitude dos irmãos que partem pouco depois de Tomi ser enterrada, além do interesse da irmã em se apossar do xale e do quimono da falecida). Além disso, ele enfatizava os silêncios, revelando através dos rostos dos atores as expressões dos seus sentimentos. Ou seja, uma contenção, um despojamento (também na forma), em privilégio da sobriedade, da contemplação, da reflexão. Em sua narrativa havia sempre a presença de elementos que, se não se vinculavam ao enredo (estranhos caminhando, uma embarcação na água, uma paisagem, etc.), mostravam o cotidiano, a vida que vai passando.
O lançamento em DVD de alguns filmes de Ozu é um fato a ser comemorado pelos cinéfilos, que têm a oportunidade de conhecer a obra de um dos grandes mestres da cinematografia. E, entre outras obras-primas, Contos de Tóquio é provavelmente a principal delas.

terça-feira, novembro 18, 2008

CAETANO, MACHADO E UM PROFESSOR DE FÍSICA





Em 1970, quando vivia em Londres, ao abrigo da perseguição da ditadura militar, Caetano compôs a música "Como Dois e Dois" e a enviou para Roberto Carlos. Lançada no ano seguinte, a composição fez muito sucesso, como também o elepê do qual fazia parte. Além da sua qualidade, como quase tudo que Caetano fez, da boa interpretação de Roberto Carlos, suspeito que o sucesso de "Como Dois e Dois" se deveu também a uma frase da letra que dizia "tudo certo, como dois e dois são cinco". Os mais intelectualmente dotados perceberam na frase (não só nela, como em toda a letra, mas especialmente nela)) uma crítica à situação do país naquele momento, cujo ditador era Médici, o mais sanguinário entre os seus pares que estiveram no poder. Já os menos dotados não compreenderam aquela frase, ou não a levando a sério, ou se indignando pelo fato de que ela que subvertia uma verdade matemática.


Mal sabiam eles, inclusive creio que os que compreenderam o seu significado, que Machado de Assis já usara a frase em uma crônica de 15 de março de 1896 (W. M. Jackson Inc. EDITORES/1962). Setenta e quatro anos antes, portanto, do compositor baiano. Em suas crônicas, Machado falava de mais de um assunto, às vezes até quatro assuntos. Nessa, justamente, ele dizia que o fato de não terminar um texto com o tema que o iniciara levava os "inábeis" a pensar "que falta ao escritor lógica ou convicção, quando o que unicamente não há é tempo de fazer outro artigo". E acrescenta: "No meio ou no fim, percebe ele que começou por um dado errado, mas o tempo exige trabalho, o editor também, e não há senão concluir que dous e dous são cinco".


Quase caio das nuvens ao ler isso há poucos dias, o que, para Machado, é melhor do que cair de um terceiro andar. E me veio a suspeita de que Caetano fora buscar no nosso maior escritor a frase de sua composição. Ele devia conhecer a crônica. Ou ter ouvido de alguém que a lera. Penso assim porque é Machado o seu escritor preferido da literatura brasileira. Bom, pelo menos o era na década de 1990, quando revelou isso em uma entrevista à Folha de São Paulo. Revelação que me deixou surpreso, porque supunha que o seu eleito fosse Guimarães Rosa, ou, quem sabe, Oswald de Andrade.


Quando surgiu "Como Dois e Dois", de imediato me veio à lembrança uma aula de Física nos meus tempos de estudante em Fortaleza. O professor já havia terminado de expor a matéria, e ficou conversando com os alunos, aguardando o soar da sirene para deixar a classe. Ele era muito alvo, pequenininho quase como um anão de Velazquez (assim se referia Nelson Rodrigues nos seus escritos a alguém de estatura muito baixa), meio gaiato, sempre fazendo suas piadinhas. Boa gente e competente. Se não tiver morrido, está aí beirando os noventa.Foi quando um colega lhe perguntou se era verdade que dois mais dois não eram quatro, como ele lera ou ouvira alguém dizer, não me lembro com precisão. O professor respondeu afirmativamente e disse que iria prová-lo. Foi para o quadro-negro, pegou do giz e começou a sua "aula". Devem ter se passado uns dez minutos, o quadro-negro foi se atulhando de números e fórmulas. Enquanto isso, todos nós o acompanhávamos com atenção e já ansiosos na expectativa de saber o resultado de dois mais dois. Não deixara um só instante de falar, dando explicação para cada detalhe do seu trabalho. Quando concluiu, o que vimos ali no quadro-negro quase cheio foi que dois e dois são... são.... são... TRÊS. Pois é.

terça-feira, novembro 11, 2008

CAMINHADAS


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Quando o meu joelho esquerdo não está muito dolorido, por conta de uma artrose que convive comigo há mais de vinte anos, faço minhas caminhadas diárias. Hoje caminho à tarde, com o sol já perto de ir embora, amenizando um pouco a temperatura que começa a subir nesta época do ano. De uns tempos para cá escolhi a Praça das Flores para andar, que fica a um quarteirão e meio do meu edifício. É um nome bonito o da praça, porém inadequado. Fico sem entender a escolha do seu nome, pois não existe uma única e escassa flor por lá. Mas quem é que vai entender o que se passa na cabeça dos nossos governantes? Apropriado seria Praça das Árvores, pois estas existem em bom número no local.
A praça está sempre povoada. Pessoas aglomeradas na parada de ônibus, pessoas que moram ali perto e a atravessam, indo ou vindo de suas residências, umas poucas, em certos momentos, formando fila em frente a um terminal de caixas eletrônicos. E há os alunos de ambos os sexos que, àquela hora, estão saindo da escola pública em frente à praça. Alguns deles não vão direto para casa e ficam nos bancos, barulhentos nas suas conversas e nas risadas que soltam, muitas vezes sem uma razão plausível. Mas isso é próprio da idade. Aqueles que um dia foram jovens, já riram assim. Já encontrei em certos dias três ou quatro meninos apostando corrida em suas bicicletas, que me fizeram voltar a noites remotas, quando, na idade deles, apostava corrida, a pé, na Praça da Basílica da minha cidade.
Entre todos que estão ali àquela hora, sou o solitário que caminha para se exercitar. Um ou outro aparece, mas apenas passa por um recanto da praça, já vindo de outros lugares e, certamente, retornando para sua residência. Havia um senhor que escolhera a praça para o mesmo fim, logo que comecei a freqüentá-la. Já velho, com os seus oitenta anos, um pouco mais, um pouco menos, mas a com o andar ainda firme. Sempre que cruzávamos pela primeira vez, nos cumprimentávamos de cabeça. Mas há muito tempo ele não aparece. Terá morrido? Ou escolheu outro local para suas caminhadas?
Há poucos dias apareceu uma senhora em uma cadeira de rodas. O seu exercício já devia estar quase no fim quando cheguei à praça, pois passei por ela apenas duas vezes. Mais velha, creio, que aquele senhor, parecia não se dar conta do que fazia ali, nem onde estava. E apoiada a um ombro uma boneca. Fiquei pensando, então: nos primeiros meses de vida, em seus primeiros contatos com o mundo, aquela velha e enferma senhora devia levar também uma boneca no carrinho empurrado pela mãe, ou a babá, sem igualmente se dar conta de nada. Não a vi mais depois desse dia.
Ao sairmos de casa nos deparamos com pessoas de toda espécie. E acontecem coisas também de toda espécie. Algumas engraçadas, como a que vou relatar. Quando ainda caminhava de manhã, geralmente aí pelas nove horas (nunca gostei de caminhar cedinho), encontrei uma jovem de uns quinze, dezesseis anos. No máximo, dezoito. Eu andava pela calçada de onde se vê o mar, ela estava recostada a um poste. A qualidade do vestido denunciava a sua classe social. Devia estar ali para alugar o corpo a algum homem. Mas, coitada, não era uma tarefa fácil consegui-lo - a seu favor só a idade, pois, além da falta de atrativos, aparentava um ar de desasseio. Ao passar pela jovem, ela me fez a proposta. Era bastante ficar calado, como uma resposta negativa, mas eu estava de bom humor e, olhando o relógio, lhe disse que estava muito cedo... Disse isso sem parar, para não perder o ritmo da caminhada. E aquela jovem, que provavelmente àquela hora estivesse de estômago vazio, replicou às minhas costas: "E tem hora pra essas coisas, danado"? Não pude deixar de rir. E enquanto continuava andando, pensei em quanta sabedoria havia nas palavras da mocinha analfabeta, ou quase . Não tem mesmo hora pra "essas coisas".

quarta-feira, novembro 05, 2008

DEPOIS DO VENDAVAL (The Quiet Man/1952)


Se Depois do Vendaval, evidentemente, não é o maior filme de John Ford, mesmo, talvez, entre os não-"westerns", é, sem dúvida, o mais encantador de todos os que realizou. E me arrisco a considerar que foi o que lhe proporcionou a maior satisfação, o que lhe deu mais alegria ao dirigi-lo. Se penso assim é porque esse filme, cuja fonte é o romance homônimo do irlandês Maurice Walsh, que Ford sonhou por muitos anos em transportá-lo para a tela, ensejava ao cineasta um encontro nostálgico e sentimental com a Irlanda dos seus pais; não a Irlanda convulsionada pela luta política de O Delator ("The Informer"/1935) e Horas Amargas ("The Plough and the Stars"/1936), mas a dos costumes arraigados, das belas paisagens, das canções românticas e humorísticas, da humanidade dos seus nativos. Esse o aspecto da terra dos seus ancestrais que Ford queria abordar, e, para que esse contato fosse o mais estreito e genuíno possível, ele foi filmar no próprio local. E o regresso de Sean Thornton (John Wayne) à sua terra, de onde emigrara para a América ainda criança, é como se também fosse o regresso do diretor. (Aliás, como chamaram a atenção os críticos Moniz Vianna e Francisco Luiz de Almeida Salles, o prenome do personagem e do diretor é o mesmo, pois o nome de batismo de Ford é Sean O'Fienne.)
O encanto, a graça, o humor não são obscurecidos mesmo nos momentos de hostilidade entre Sean e o cunhado Will Danaher (Victor McLaglen). Nem na divergência entre Sean e Mary Kate Danaher (Maureen O'Hara), por causa do dote que é negado a ela pelo irmão, ao se casar. Enquanto não receber tudo a que tem direito, ela será uma esposa dedicada apenas à administração da casa e aos cuidados com o marido. Essa obstinação de Mary Kate é um componente da personalidade do herói fordiano - a forte determinação em lutar para alcançar algum objetivo. Por outro lado, a atitude do marido em não dar importância à posição da sua mulher configura outra divergência (talvez fosse melhor dizer um choque), essa de natureza cultural, entre a terra onde ele nasceu e a em que morou durante muitos anos.
Na verdade, só há um momento dramático em todo o filme: quando Sean, derrubado por um soco de Will, na recepção após o casamento, relembra, num rápido "flashback", a morte do adversário na luta de boxe. A diferença entre essa curta cena e as demais é pontuada pelo realce do vermelho. Até na longa briga entre os dois homens, uma das seqüências antológicas do cinema, a violência é quase obscurecida pelo humor que aparece em certos detalhes, como quando o velho Tobin (Francis Ford, irmão de John), já moribundo, de repente, ao ouvir o rumor da briga, salta da cama e deixa a casa para não perder o "espetáculo".
Entre tantos personagens marcantes de Depois do Vendaval, Michaleen Oge Flynn (Barry Fitzgerald em soberba atuação) é o mais atraente. Casamenteiro por profissão, grande apreciador de um trago, a sua presença torna-se o elemento principal na deflagração do humor no filme por suas tiradas engraçadíssimas.
O final concentra praticamente todo o elenco ao ar livre, em seguida à passagem da carroça de Michaleen conduzindo o casal de namorados Will e a viúva Sarah Tillane (Mildred Natwich). Ao aplaudirem o casal, alguns fazem acenos com a mão e uma atriz faz uma curvatura, erguendo de leve o vestido. O gesto deles passa a impressão de que também estejam saudando o espectador, ao término de uma representação teatral. È quando Mary Kate diz algo ao ouvido de Sean, que faz um aceno positivo com a cabeça e solta uma vara que tinha na mão, ela se afasta em direção à casa, seguida pelo marido. (Não é preciso ser muito arguto para se entender o significado da cena.) Logo em seguida aparece o THE END, encerrando um filme, em que a direção, o roteiro, o enredo, o elenco, a fotografia e a música se aliam perfeitamente para deixar o espectador muito próximo do êxtase depois de vê-lo.