quarta-feira, maio 31, 2006

CONTO DE BARTOLOMEU CORREIA DE MELO

Outra vez este espaço é ocupado, para enriquecimento dele, com a ficção do contista e poeta potiguar Bartolomeu Correia de Melo. A exemplo do anterior, o conto hoje publicado faz parte do livro Estórias Quase Cruas (Edições Bagaço, Recife/2002).
ESTÓRIA PRAIEIRA
Na noite tão preta, como carvão,
a gente falava de assombração!... (Ascenso Ferreira)
MARÉ enchente. Boca-de-noite ventosa, sem lua pra espiar. Alpendre de palha, chão de areia, penca de netos brincando de anel. Ela, vindo de dentro, trazia a luz, botando com agrado cada bênção pedida. E, quando se dispôs a fazer renda, logo lhe pediram alguma estória.
Encovando a magrez das bochechas, acendeu cachimbo na lamparina. Demorosa, ajudada em curtos gemidos, a velha se acocorou diante da almofada. E pôs-se, ainda risonha, ajeitando linhas e alfinetes, como arrumasse antigos lembrares.
Na vez do mexericar dos bilros, de pronto que minguou o converseiro gasguito. E aquele frangido contente do rosto foi-se foi-se desmanchando enquanto falava:
"Rezam as crenças que, com céu limpo e maré cheia, na lua-nova de agosto, coisas desconformes acontecem. No meiar da noite, algum cachorro praiero começa uivando malagouros... Com pouco, cruzeiro do céu vermelhece, como cinco brasas atiçadas. Cerração temporã, ninguém sabe donde vinda, apaga as estrelas restantes. E friagem trevosa engole o sossego da praia. Maresia se torna entojada, que nem catinga fria de defunto. Mais e mais, a toada do mar vai semelhando fundo queixume, como se lhe doesse a quebração... Vento sueste encorpa gemidos que lembram fanhas cantorias de incelença. Ali-acolá, vozes de galo se espicham, ecoando como gritos de socorro. Então, assim misturados por algum malencanto, tais escutares vão-se virando em latomia de chorosa multidão. E aí...
Naquilo, ventinho tranquilo amofinou o lume. No empardecer decorrido, fala dela suspensa, quase ninguém respirava. Mas a chama logo endireitou, aquietando a aflição dos entreolhares. Agravando a fala, a rendeira seguiu contando:
"Diz-que, nessa hora, fosforejando no aceiro das ondas, passa a Procissão dos Afogados - coisa por demais medonha! Enorme rebanho de almas penadas, cada qual recarpindo piores desditas. Malassombro de triste feiúra, por muitos apenas ouvido, mas somente avistado pelos bem-merecidos. Ainda assim, aquilo enxergado, ninguém nunca conta a ninguém, mode castigo de morte agoniada."
Peteleco dos bilros desapressando, enquanto os dizeres avexavam os pensares.
"No quando de tal aparição, pedida com fé e coragem, qualquer boa-graça será alcançada. Porém, aquele cristão vidente que, nalguma careta verdosa e inchada, enxergue finado conhecido, se obriga a cumprir piedoso preceito. De pronto, pra riba daquela visagem, avoar punhado de areia seca, gritando a jaculatória que, em vida, o infeliz mais devotava. Isso feito, sem dali arredar-se, ajoelhado em sincera vontade, se deve esperar o sinal. E carece de conhecer qual seja tal aviso..."
De repente, molhando na língua do fura-bolo, mais que ligeira, pegou no cuspe a pulga que lhe mordia a canela. Com gosto, trincou a danada na unha, sem perda do fio da estória.
"Na manhecença, encalha na praia um peixe-anjo - bicho bonito e bendito - dando conta daquela salvação. Pois que esse peixe, enterrado com segredo em campo-santo, voga pelo repouso daquele corpo nunca achado. Se bem que, em tal ação caridosa, não resta vez pra nenhum pedido interesseiro. Pois, qualquer pensamento ambicioso será punido por queda em malpenar sem cura; doideira desinquieta que nem as ondas do mar."
- E quando não sabendo da reza? - um maiorzinho se enxeriu de perguntar.
"Sendo assim, em lugar de peixe-anjo, aparece baiacu-espinho - bicho feioso e reimoso - adivinhão de malefícios. Então, diz-que periga daquela pobre alma tomar encosto no cristão vivente, lhe aparecendo em sonho ou sombra, recitando a devida oração. E disso sobejam esquisitas malestórias... - logo atalhou, feita sisuda - Assunto esse, desadequado pra quem de pouca noção!...
Ela sustou os bilros e cuspinhou de lado, que nem botasse ponto final nos contares. Meneando a cabeça, olhava pras bandas do mar. Naquilo parecia soletrando verdades escritas além da escuridão. Tirou friso do cabelo, atiçou o cachimbo e tornou, muito a sério:
"Águas cujos poderam não tiram sedes nem lavam pecados... Sei disso por sabença de minha avó. Quem nelas morre afogado, nelas tendo sepultura, delas nunca aparta seus penares!... - toava malagourosa. Pois que resta sujeito pra sempre a vaguear, pelo sem-fim das praias, nessa agoniada romaria. Mundo arriba, mundo abaixo, chorando a espera incerta dalgum justo que o valha e desobrige dessa eterna desventura..."
No derredor, meninada guardava silêncio escabreado. Nesse quando, ela arrematou:
"Nas ondas, ninguém se afoite, por brinquedo ou vão capricho, fazendo pouco do mar. Em troca de tolerância, quem dele tira sustento lhe presta respeito e resguardo. Quanto a vancês, mijões de rede, abraç das oiças e cuidem num bom conselho! Pois menino malouvido, que pecou por teimosia, também passa em tal cortejo; catingoso e empalemado, roído pelos siris, berrando por pai e mãe. Podem debochar de caduquice, mesmo assim, sempre redigo: "Água, minha gente, não tem zelo nem cabelo!..."
Trocando alfinetes, chupou do cachimbo as derradeiras fumaças. Na calada do alpendre, dava para ouvir o espipocar do sarro. Detrás das baforadas, em cada olhar abismado, avaliou o alcance da estória. E reocupou-se entrançando bilros, como no aguardo dalguma indagação. Mas, nada de nada, ninguém que duvidou. Bem quietinhos, espiavam pros confins da noite; arrupiados nas cócegas do vento, maginando porquês nos resmungos do mar.
Noutras lonjuras, cachorro botou-se a latir penoso.

sábado, maio 27, 2006

DESENCANTO (Brief Encounter/1945)


Quando se lembra do diretor inglês David Lean (1908-1991), a crítica atual, via de regra, refere-se aos seus filmes "espetaculares" ("A Ponte do Rio Kway", "Lawrence da Arábia", "Doutor Jivago") . Não é que faltem algumas qualidades a essas superproduções, principalmente, no caso de "Lawrence da Arábia", o seu esplendor plástico-visual, embora o filme seja um tanto prejudicado pelo exibicionismo de Peter O' Toole. Mas pouco ou nada se fala da produção de Lean na década de 1940, quando ele realizou os seus melhores filmes: "Oliver Twist" , "Grandes Esperanças"e "Desencanto". O último é a obra-prima do diretor e um dos grandos momentos do cinema.
O breve caso de amor entre Laura Jesson (Celia Johnson) e o médico Alec Harvey (Trevor Howard) é uma dessas histórias de amor, que, graças ao inspirado roteiro de Noel Coward e à ão brilhante direção de Lean, conquistam o espectador sensível, mas jamais pela via do sentimentalismo e do melodrama. Pode-se classificar esse breve romance como um caso de adolescentes (veja-se como eles se divertem com a exibição da desajeitada musicista), embora os seus protagonistas estejam na faixa dos trinta anos. Um amor breve, porque não seria possível para uma mulher relativamente bem-casada, apesar da rotina do casamento, e um homem (cuja esposa jamais aparece, o que, a meu ver, é um grande achado do roteiro) que ambiciona vôos mais altos na sua profissão, ao concretizar o sonho de se transferir para a África do Sul.
O romance é narrado por Laura, como se o fizesse para o marido, entretido em fazer palavras cruzadas. E curioso é que a palavra que ele não consegue decifrar, e recorre à esposa, porque ela gosta de poesia, seja justamente a palavra "romance", que faz alusão a uns versos de Keats.
Laura sente remorso por estar vivendo uma situação que acreditava não poderia acontecer com pessoas simples, como ela. Não esquece o presente de aniversário do marido e fica aflita uma noite ao voltar para casa e encontrar um dos filhos na cama, vítima de um atropelamento. A consciência de que está cometendo um pecado é sublinhada pela presença de um membro da Igreja, que ocupa o mesmo vagão que ela, e lhe dá um sorriso, que lhe parece irônico, deixando-a com a sensação de que ele sabe dos seus encontros amorosos.
Interessante o fato de, paralela ao romance de Alec e Laura, ocorrer uma ligação entre o agente ferroviário e a encarregada do café da estação. Contendo lances de humor (numa cena, por exemplo, em que ela está curvada, ele chega, sorrateiro, e lhe desfecha um tapa na bunda) , essa ligação serve de contraponto para a outra. E tudo indica que logrará o êxito que não teve a de Alec e Laura.
Além da qualidade da direção, do roteiro, da atuação dos atores (sobretudo Celia Johnson e Trevor Howard) , "Desencanto" conta ainda com a fotografia de Robert Krasker (o mesmo de "O Terceiro Homem") e o belo Concerto número 2 para piano de Rachmaninoff, a embalar essa história de amor, que, apesar de curta, trouxe momentos de felicidade para os dois amantes.

quarta-feira, maio 24, 2006

O PROFESSOR ANTUNES



Era muito calmo. Faço alusão a isso, por ser assim como um ponto de referência obrigatório quando se falava nele. O professor Antunes é muito calmo - diziam. Ou: o professor Antunes é uma tranquilidade. Não, ele não era calmo. Quer dizer, sua vida não era calma. Conforme um diário que ele escrevia, descoberto quando a polícia lhe vasculhou a casa. Agora, aparentemente, ele era calmo. Externamente. Daí todo mundo considerá-lo um homem tranquilo. O que era mesmo: comunicativo. Cumprimentava a todos e estava sempre rodeado de pessoas. Garotões - geralmente. Gostava de cerveja. Todas as tardes, ao sair do colégio, enfiava-se no Glacial, de onde só saía para dormir. Diziam que nunca deixou os companheiros pagar. Ninguém desconfiava - era tido como um bom. Às vezes besta - o insulto pior que alguém mais maldoso lhe lançava. E ao que parece sabia beber, pois nunca se comentou que saísse do bar cambaleando.
Professor Antunes sempre me intrigou. Não entendia como um homem ainda moço, bonito, me parecendo inteligente (a descoberta do diário confirmou isso), tinha ido se internar em nossa cidadezinha. Para mim, aquele homem escondia um segredo. E quando aconteceram as mortes daqueles rapazes, só do professor Antunes desconfiei. Mas não revelei a ninguém, mesmo porque não seria levado a sério.
Admirava-o Creio que fui o único que o compreendeu. A cidade inteira condenou aquele homem, que até um mês antes era o seu ídolo. Vi ele ser insultado por pessoas que só faltavam beijar o chão em quee pisava. Ele foi menos o assassino e mais o homossexual desnudado por todos. Ser um homossexual: a nossa cidadezinha não o perdoou. Fosse somente o matador daqueles rapazes, talvez estivesse livre, certamente numa outra cidadezinha. Ele preferia as cidades pequenas, onde havia comunicabilidade entre as pessoas e se estava livre de toda espécie de poluição.
No diário há um período relativamente longo, dedicado às diferenças de comportamento humano entre uma cidade grande e uma cidade pequena. O professor Antunes gostava de conversar com as pessoas - já disse que era muito comunicativo. Detestava a cidade grande. Entre outras coisas, pela dificuldade de relacionamento entre as pessoas. E, no entanto, numa cidade grande, ele poderia manter aquelas "relações proibidas", sem precisar assassinar os parceiros. Ele os matava para que não revelassem o seu pecado. Esse o único motivo dos crimes. Já vinha de outras cidades, onde cometera assassinatos. A sorte, então, o favorecera e saíra delas sem nenhum risco, levando somente o peso na consciência. Talvez por isso bebesse tanto. Só estava sóbrio na hora das aulas.
Coitado do professor Antunes. A sorte não o acompanhou à minha cidade. Ninguém suspeitou dele quando três rapazes apareceram mortos, num período de dois meses. Por azar, o quarto rapaz foi encontrado ainda com vida e a tempo de pronunciar o nome do professor Antunes. Não fosse pela polícia ,que decidiu investigar, ele nunca teria sido preso. Os meus conterrâneos aceitariam a idéia mais absurda, menos a de que o professor Antunes fosse o autor das mortes. Só se convenceram quando o diário foi descoberto. Jornais da capital publicaram trechos daquelas páginas íntimas. Desnudado ante a população, ele desabou estrondoso do posto a que foi elevado. Foi enviado para o presídio da capital, a polícia temeu que fosse trucidado se ficasse na cadeia da cidade. Lá foi julgado e condenado.
Agora, um fato curioso. O tempo se encarregou de amortecer a fúria de vingança dos meus conterrâneos. É verdade que ainda há os que o odeiam, além dos familiares das vítimas, em cujos corações o ódio jamais cansará. Mas nas rodinhas que se formam nos bares, nas esquinas, na pracinha, há sempre uma palavra elogiosa ao professor Antunes. Desde que não esteja presente um parente dos assassinados. Falam-lhe da bondade e da inteligência e não se conformam com a sua condição de homossexual, sendo tão bonito. Alguns chegam até a duvidar de que ele tenha praticado aquelas mortes tão brutais. Porque - enfatizam sempre, o professor Antunes era calmo, muito calmo.
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Este conto (escrito em Natal, no Natal de 1977), faz parte do meu livro Não Enterrarei os Meus Mortos (1980).

domingo, maio 21, 2006

UM POUCO DA POESIA DE BENÉ CHAVES

A meu pedido, o ficcionista e poeta Bené Chaves, de Natal (RN), enviou 4´poemas. O primeiro faz parte do seu livro "Cinzas ao Amanhecer" (2003), enquanto oss outros 3 são inéditos. Bené é ainda editor do blogue "O Apanhador de Sonhos".

ESPECTADOR

No escurinho do cinema eu vi
o vagabundo com o belo gesto de ternura
aquela imagem de uma beleza pura
a florista sorrindo e vendo o amanhã
o rosto da adolescente de olhar afetuoso
a razão vencendo a intolerância.
Vi o afeto superando o ódio
lucidez e discrição na face de todos
aquela bela loura/ruiva me acenando
a morena instigante sempre palpitando.
Vi a gratidão e justiça como bens maiores
a mediocridade rejeitada/derrotada
também a mocidade estancada
a velhice longe e não amostrada
nossas vidas não deterioradas
o amor da mulher dada/amada.

Tudo isso eu vi, mas somente no
no escurinho de uma sala de cinema.


EXISTÊNCIA

De teu ventre intumescido
nascem certezas e incertezas.
Mas de teu dileto amor
mesclam-se esperanças e
contínuos desenganos.
E enquanto brotam desejos
ou ensejos
tu aparecerás incessante
ante o despojar da vida.
O nascimento como metafísica
sucessiva.
A morte como metáfora da
aurora perdida.


ambiguidade

entre tuas macias coxas
eu afogo minhas lágrimas
afago teu seio
pensando no amanhã
no anoitecer e amanhecer
de nossas e novas vidas.


EROTISMO

Em teu corpo pousarei
como um pássaro faminto
uma ave a aterrissar.
Despirei tuas vestes
beberei em tua pele
embevecido de aflição.
Sugarei desejos derramados
na ilusão de te possuir
desesperado como um órfão.
O silêncio a despertar astúcias
sussurando faíscas de amor.
E no duelo inevitável
duas existências feridas.

quarta-feira, maio 17, 2006

A M/AE E O FILHO



Lygia Fagundes Telles tem um conto em que a mãe vai ao cinema com o filho pequeno. Pouco depois de iniciado o filme, um homem senta ao lado da mulher. Ele não é um estranho, que ocupou por acaso aquela poltrona. Aos cochichos, começam uma conversa, com brevíssimas pausas. Parece, não tenho certeza, há tantos anos li esse conto já meio antigo, que os dois chegam a entrelaçar as mãos. E teria a mão dele repousado, em algum momento, no ombro dela? É possível, mas não não descarto a intenção da memória de também ela praticar uma traição.
O filho está muito atento ao que se passa na tela, mas, em dado momento, percebendo o interesse da mãe em conversar com aquele homem, começa a estranhar a atitude dela. O interesse pelo filme é diminuído, e o garoto vai alternando a atenção entre o filme e o que se passa ao seu lado. Mesmo na sua pouca idade, sente que há algo errado na atenção que a mãe dispensa ao seu vizinho. Este se retira um pouco antes de terminar a sessão. Na volta para casa, a mãe diz ao filho para não contar ao pai o que ocorreu no cinema. Não me lembro se lhe promete um presente, ou o ameaça com um castigo , em troca do silêncio. O garoto promete, mas, ao entrar em casa, vai ao encontro do pai e lhe dá um abraço apertado, comovido abraço, exclamando, se não me engano, papai, papai. Não lhe diz nada. Nem a autora também. É suficiente a reação do menino. E assim termina esse belo conto de LFT.
Há poucos dias me lembrei desse conto, ao testemunhar um caso semelhante na praça de alimentação de um supermercado. Estava bebendo chope, enquanto esperava minha mulher fazer umas compras. A uma mesa defronte à minha, uma mesa separando as nossas, uma jovem mulher e o filho pequeno almoçavam. Era uma mulher pouco atraente, um pouco gorda, de óculos. Mas era jovem e exibia um decote que, anos atrás, se classificava de generoso. Percebi que comia apenas legumes com arroz, devia estar se submetendo a um regime para perder alguns quilinhos. O garoto, de costas pra mim, comia com vontade. Devia ter uns 8 a 10 anos, vestia uma calça comprida e era espigadinho. Logo observei um rapaz almoçando sozinho, a uma mesa na mesma fileira da mesa da mulher, a uma pequena distância dela. Ele comia com o mesmo gosto do garoto, mas, embora concentrado no prato, aqui, acolá, dava uma olhadela para a mulher, que parecia não perceber. E aí ocorreu o inesperado: ele largou a refeição, levantou-se e dirigiu-se para a mesa da mulher. O local estava quase lotado, havia um burburinho de vozes, então, não pude ouvir o que o rapaz, de pé, dizia à jovem, mas me pareceu que ele a achara muito parecida com outra mulher e lhe perguntava se eram parentes. O rapaz era alto, um pouco corpulento, e se não era especialmente bonito, possuía um certo charme. Era atraente. (Gostaria de dizer que a mulher era mais bonita do que ele, mas o que fazer? Estou relatando um fato real, não estou escrevendo um texto de ficção.) Ele deve ter perguntado se podia ocupar a mesa, e ela deu permissão, pois, de repente, voltou à sua mesa, pegou o prato e o suco e foi sentar ao lado do garoto. E o rapaz e a jovem senhora começaram a conversar animadamente e sem darem descanso às línguas. E foi então que notei. Notei que o menino espigadinho, com frequência começou a desviar os olhos do prato para dirigi-los ora à mãe, ora ao rapaz. Como se, repentinamente, achasse que alguma coisa não batia bem naquela conversa. (Preciso dizer que a mãe conversava com os olhos fixos no interlocutor, que, certamente, fazia o mesmo.) E a conversa continuou até quando terminaram de comer. Não sei quanto tempo os três ficaram ali, pois logo depois a minha mulher apareceu, terminei o chope, já pela metade, paguei a despesa e fomos embora.
Mas desde então fiquei pensando no garoto. Será que lhe aconteceu o mesmo que ao garoto do conto? A mãe lhe teria pedido que não dissesse ao pai sobre a presença do rapaz na mesa?Teria ele também abraçado o pai, quando chegou em casa? Como se sabe, a vida, muitas vezes, imita a arte. Mas são apenas hipóteses. Talvez a mãe seja separada. Ou viúva, apesar de nova. Não se sabe. Mas, confesso, senti pena do menino.

domingo, maio 14, 2006

DUAS MÃES, DOIS POETAS

MÃE
Horácio Paiva ( Brasil, Rio Grande do Norte, 1945 - )

Mãe
devo-te este poema
que sempre
seguirei querendo escrever

esperei fazê-lo
em toda a minha vida

esperei o sol
e a lua

e ambos passaram
e voltaram
com palavras mudas
douradas e
pálidas

versos
trouxeram-me as estrelas
o mar
e os rios

versos que devolvi
aos livros
e ao tempo
que os prendia

Mas o teu poema
estava sempre
aquém e além do tempo
e a voz para escrevê-lo
não me pertencia

mas vi-o
em teu ventre

onde vi nascerem
as dimensões da vida

e as dimensões
de Deus

e se o amor triunfa
em caminhos infinitos

não pode haver começo
ou fim
para o teu poema.



POEMA À MÃE
Eugênio de Andrade (Portugal, 1923-2005)

No mais fundo de ti,
eu sei que traí, mãe.

Tudo porque jã não sou
o menino adormecido
no fundo dos teus olhos.

Tudo porque tu ignoras
que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais.

Por isso, às vezes. as palavras que te digo
são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.

Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura.

Se soubesses como ainda amo as rosas,
talvez não enchesses as horas de pesadelo.

Mas tu esqueceste muita coisa;
esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!

Olha - queres ouvir-me? -
às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos

ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura
ainda ouço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
no meio de um laranjal.

Mas - tu sabes - a noite é enorme,
e todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber.

Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas.

Boa noite. Eu vou com as aves.




quarta-feira, maio 10, 2006

FLORES PARTIDAS (Broken Flowers/2005)


Iniciam-se os créditos e ouve-se o toque nas teclas de uma máquina de escrever. Em seguida, a primeira imagem: uma mão enfiando um envelope cor-de-rosa em uma coleta de correspondências. Assim começa "Flores Partidas", o melhor filme de Jim Jarmusch entre os que conheço dele ("Estranhos no Paraíso", "Daunbailó"). Um Jarmusch amadurecido e demonstrando uma simplicidade e uma sensibilidade, de que só os maiores cineastas são capazes. Sem indicação do remetente, nem assinatura, a carta é endereçada a Don Johnston (Bill Murray) e chegando-lhe às mãos no momento em que sua jovem amante Sherry (Julie Delpy) está dando o fora nele. A carta é de uma das inúmeras ex-namoradas de Don, comunicando-lhe que teve um filho com ele. Já com 19 anos, o rapaz saiu de casa para tentar encontrar o pai. Mas quem é a autora da carta? Impossível saber. Com uma forte resistência, Don é convencido pelo vizinho e amigo Winston (Jeffrey Wright) a elaborar uma lista das mulheres com as quais teve uma relação mais profunda. Com o auxílio do computador, Winston consegue localizar quatro ex-amantes Aconselhado pelo amigo, Don, a cada mulher que vai visitar, lhe leva um ramalhete de flores.
Encontra Laura (Sharon Stone), Dora (Frances Conroy), Carmen (Jessica Lange) e Penny (Tilda Swinton), esta a única que o recebe com hostilidade e Don sai de lá depois de ser agredido por um homem, cuja relação com a mulher não fica explícita. Mas Dora parece que o acolhe mais por cortesia. Ela dá a impressão de não estar à vontade com o antigo amante, principalmente quando o marido chega em casa, embora este não aparente nenhum desagrado com o visitante. Laura é a que demonstra mais satisfação com o aparecimento inesperado de Don (os dois chegam a dormir juntos). Viúva, tem úma filha, Lolita. Não só pelo nome, mas pela idade e uma desinibição de fundo sedutor (ela, que estava fazendo sala para Don, na ausência da mãe, vai ao quarto para atender a um telefonema e, ao voltar, está inteiramente despida), parece uma homenagem a Kubrick, que filmou, pela primeira vez, o romance de Nabokov. A mais curiosa é Carmen, que exerce a insólita profissão de comunicadora de animais. (Deve ser uma profissão que só existe no país de Bush e, talvez, aí, esteja uma crítica de Jarmush, também autor do roteiro, ao modo de vida americano). E, por uma estranha coincidência, o gato de Carmen tem o nome do amigo de Don.
Don volta para casa, sem nenhum indício de quem lhe escreveu. Apenas a presença da cor do envelope em todas as visitas que fez: o vestido de Lolita, o roupão de Laura, uma máquina de escrever e uma moto à frente da casa de Penny, os cartões que Dora usa para distribuir aos clientes. E ainda um celular na casa de Laura. E é a impossibilidade de descobrir a autora da carta, a dúvida de Don de que pode ter sido o próprio amigo que a escreveu, ou até a jovem amante que o abandonou (quando ele regressa, encontra uma lacônica carta dela, cujo envelope é tambem cor-de-rosa), o mistério que fica na cabeça do espectador, o grande achado do filme, o seu elemento de sedução.
Mas o filme vai um pouco além disso. De repente, Don sente o interesse de conhecer aquele filho, que talvez não exista. Num gesto patético, ele chega a perguntar a um jovem andarilho, a quem já vira no aeroporto e aparece repentinamente na sua cidade, depois de o alimentar e de terem uma breve conversa , se não é filho dele. O rapaz, sem compreender a pergunta, o chama de louco e sai em disparada. Quase em desespero, Don corre para alcançá-lo e, provavelmente, esclarecer o motivo da pergunta, mas não o encontra. Ele pará no meio da rua, pensativo. E aí ocorre o grande momento da narrativa de "Flores Partidas": uma bela panorâmica, que parece saída de um filme de Hitchcock, desliza sobre Don. Em seguida, um outro rapaz, passa num carro e olha fixamente para ele. Depois de o carro passar, ele observa a placa , em seguida a câmera pega um close do rosto do personagem. E o filme termina, deixando a sensação de que Don vai tentar encontrar aquele rapaz, que pode estar à procura do pai.
Não poderia terminar este comentário sem mencionar a grande atuação de Bill Murray. Ele está tão bem, ou melhor, quanto esteve em "Encontros e Desencontros", o belo filme de Sofia Coppola. Sisudo, e revelando uma permanente expressão irônica, à qual se junta, às vezes, um ar de tédio, mesmo quando provocado por um elemento erótico (a nudez de Lolita, as coxas da secretária de Carmen) Murray prova que é , hoje, um dos grandes atores do cinema.

domingo, maio 07, 2006

CAETANO E SEUS IRMÂOS


"Eu quero tocar fogo neste apartamento,
Você não acredita".
Os pés e a cabeça apoiados em almofadas, ouvia os angustiados versos de Caetano. Era assim todas as noites. Antes, lia um pouco, ou via televisão, se houvesse um programa que o interessasse. Ouvia outros compositores, porém Caetano era o favorito. Às vezes, punha apenas o disco que continha aquela faixa, que, por ser a preferida, repetia exaustivamente. Não havia noite em que não a ouvisse. Vanda - sua mulher - já lhe confessara que não suportava mais escutá-la. E, pelo síndico, já soubera que os vizinhos também partilhavam da mesma opinião. Defendeu-se: ouvia música em volume baixo, portanto, não estava infringindo nenhuma norma do regulamento do edifício. E continuou com o hábito (ou necessidade?).
A constância com que ouvia a música fazia-o, comumente, lembrar-se do que uma irmã lhe contara: uma mulher enlouquecera de tanto ouvir Bolero. Já na ocasião discordara de que fora esse o motivo da loucura. Tinha arraigada a opinião de que a obra de arte não conduz ninguém à loucura. Ao contrário, torna mais lúcidas as pessoas.
O toca-discos solta o estalido que adverte sobre o término da última faixa. Levanta-se e vai recolocar o disco. Antes, resolve servir-se de uma dose de uísque. O televisor do vizinho está informando sobre o currículo de um concorrente às eleições. Saturado, sim, estava da campanha eleitoral. E enojado pelo nível rasteiro em que estava sendo conduzida, os adversários trocando insultos e acusações, os muros da cidade emporcalhados de piche e de expressões indecorosas, os trios elétricos trafegando com um som que ultrapassa a capacidade auditiva das pessoas.
Os versos de Caetano rodavam outra vez. Agora estava sentado sobre uma almofada, o copo ao lado. Até ele chegava o ressonar de Vanda. Invejava-lhe a facilidade para conciliar o sono. Caía na cama e em pouco tempo já dormia. Com ele não era assim. Não foram poucas as noites em que passara insone, buscando todas as posições para dormir - em vão. O médico lhe receitara um sonífero que, no início, produzira efeito. Mas depois de algum tempo, nem com o remédio conseguia dormir. Passou a adicioná-lo ao uísque e só assim obteve algum resultado.
"Eu quero tocar fogo neste apartamento,
Você não acredita".
Genial Caetano, ele pensou. Devia estar numa grande fossa quando escreveu esses versos. Com eles, tornou-se o porta-voz de milhares de irmãos que padeciam de uma angústia invencível. E que, para atenuá-la, recorriam a diversas espécies de terapia: o remédio receitado pelo analista, o álcool, o tóxico, a leitura, o filme, o pranto.
Depois de beber o uísque, sentiu uma súbita vontade de sair. Eram pouco mais de dez horas. Não sentia motivado para a leitura e já escutara música por muito tempo. Coxo, o sono demoraria a chegar. Caminhar seria a melhor maneira de esperá-lo. Deu boa-noite ao vigia, que conversava com dois homens. Andou lentamente pela rua que passa em frente ao edifício. Ainda não havia sido retirada a faixa que aludia à visita do Presidente, ocorrida há dois dias. Lembrou uma vez mais o que um jornal publicara acerca do diálogo do Presidente com o historiador da cidade, estabelecido através de bilhetinhos, por causa da surdez do segundo. Dessa conversa manuscrita, um trecho o deixara chocado - a defesa que o visitante fizera do palavrão. Não que fosse um puritano, nem gostasse de soltar uma palavra obscena de vez em quando. Era a forma grosseira com que foi exposta a necessidade do seu uso e por uma pessoa, cujo cargo o obrigava a portar-se com recato. Pelo menos, diante dos cidadãos.
Havia alguns fregueses no bar do outro lado da rua, onde tocava um frevo rasgado de Moraes Moreira. Chegou ao cruzamento da rua com a que dá acesso à praia. Dirigiu-se para a amurada em frente. Recostado à parede, deitou a vista para os múltiplos colares luminosos. Provindo do mar, o vento brincava com seus cabelos e fazia baixar a temperatura que, durante o dia, já atingia graus elevados naquela época do ano. Resolveu descer até ao mar. À medida que dele se aproximava, o vento aumentava a força e a temperatura diminuía cada vez mais. No caminho, defrontava-se com um ou outro carro, subindo a ladeira. Um homem de barba espessa e cabelos nos ombros o fez parar, pedindo-lhe fogo. Acendeu com a chama do seu cigarro o cigarro do homem, em quem descobriu um adolescente disfarçado pela barba e os cabelos compridos que se agitavam com o vento. Sentiu um odor estranho exalado pelo cigarro daquele quase garoto. Que lhe disse valeu cara e seguiu em frente.
Ao tomar o calçadão, parou um pouco e pôs-se a observar o balanço das ondas. Tirou os chinelos e desceu para a areia. Andou um longo percurso, em que encontrou casais que se amavam sobre o leito arenoso. Desabituado a caminhar, logo se sentiu cansado. Sentou na areia. O vento chicoteava-lhe o corpo, o frio fazia-o tremer, mas não se importou. Um som de vozes amorosas chegava-lhe aos ouvidos. E, de repente, experimentou uma grande sensação de paz interior, que há muitos anos lhe tinha sido roubada. Ali ficou por um tempo indeterminado. Sem pensar em nada, apenas fruindo aquele instante de paz. Não. Ele pensou, sim. Pensou em nunca mais deixar aquele lugar. Em não ter que retornar ao apartamento, ao qual Caetano queria tocar fogo. Em não ter que se aboletar num carro e enfrentar o trânsito e as neuroses dos motoristas. E, depois, emparedar-se no escritório, entrar de novo no carro e emparedar-se também no apartamento. E comer comer comer. Todo dia, todo dia. Toda noite. Tudo tediosamente igual. Como desabafou Caetano.
Conto extraído do meu livro O Tempo Está Dentro De Nós, 1989.

quarta-feira, maio 03, 2006

VELHO NUMA MANHÃ DE DOMINGO

Solitário está o velho na ante-sala da casa.
Seu olhar abrange o pequeno trecho da rua,
paisagem que a retina fixou há muitos anos.
Mas talvez não seja para a rua
nem para os raros transeuntes
que o velho estenda os olhos dispensados de lentes.
Quem sabe se neles não permaneça um resto de brilho
provindo da lembrança de remotos domingos.
E não se sinta sozinho entre a algazarra dos familiares
que o deixaram isolado naquele domingo.



CINEMA - Os 90 anos de Glenn Ford

No último primeiro de maio o ator Glenn Ford chegou aos noventa. Ótimo ator, seu talento não foi bem aproveitado por Hollywood. Li uma vez um artigo de Paulo Francis em que, de pássagem, este se referia a um detalhe na expressão do rosto de Glenn Ford, que só ele sabia fazer. Não são muitos os seus filmes memoráveis, entre os pouco mais de cem que fez, incluindo trabalhos na TV. Seu filme mais famoso é "Gilda", em que atuava ao lado de uma esplendorosa Rita Hayworth. (Ele fez par com Rita em mais 4 filmes.) O mais cultuado, mas não o melhor de sua carreira. Para mim, o melhor é "Os Corruptos", de Fritz Lang. Outros filmes de destaque foram "Desejo Humano", também de Lang, baseado no romance "A Besta Humana", de Émile Zola", que já havia sido transposto para o cinema por
Renoir; "Sementes da Violência" (Richard Brooks), "Como Nasce um Bravo" (Delmer Daves), "Cimarron" (Anthony Mann). Gosto também do thriller "Escravas do Medo", dirigido por Blake Edwards, que se especializou em comédias (foi o diretor de todos os filmes sobre o atrapalhado Inspetor Closeau, na interpretação dlo grande Peter Sellers). Talvez um ou outro mais, de que não me lembro. Glenn Ford fez uma aparição especial no primeiro dos três "Superman" estrelados por Christopher Reeve. Talvez pouca gente saiba que ele não nasceu nos Estados Unidos, mas no Canadá. Aposentou-se em 1991, num filme para a tevê. Seu nome verdadeiro é Gwyllin Samuel Newton Ford.