quarta-feira, maio 24, 2006

O PROFESSOR ANTUNES



Era muito calmo. Faço alusão a isso, por ser assim como um ponto de referência obrigatório quando se falava nele. O professor Antunes é muito calmo - diziam. Ou: o professor Antunes é uma tranquilidade. Não, ele não era calmo. Quer dizer, sua vida não era calma. Conforme um diário que ele escrevia, descoberto quando a polícia lhe vasculhou a casa. Agora, aparentemente, ele era calmo. Externamente. Daí todo mundo considerá-lo um homem tranquilo. O que era mesmo: comunicativo. Cumprimentava a todos e estava sempre rodeado de pessoas. Garotões - geralmente. Gostava de cerveja. Todas as tardes, ao sair do colégio, enfiava-se no Glacial, de onde só saía para dormir. Diziam que nunca deixou os companheiros pagar. Ninguém desconfiava - era tido como um bom. Às vezes besta - o insulto pior que alguém mais maldoso lhe lançava. E ao que parece sabia beber, pois nunca se comentou que saísse do bar cambaleando.
Professor Antunes sempre me intrigou. Não entendia como um homem ainda moço, bonito, me parecendo inteligente (a descoberta do diário confirmou isso), tinha ido se internar em nossa cidadezinha. Para mim, aquele homem escondia um segredo. E quando aconteceram as mortes daqueles rapazes, só do professor Antunes desconfiei. Mas não revelei a ninguém, mesmo porque não seria levado a sério.
Admirava-o Creio que fui o único que o compreendeu. A cidade inteira condenou aquele homem, que até um mês antes era o seu ídolo. Vi ele ser insultado por pessoas que só faltavam beijar o chão em quee pisava. Ele foi menos o assassino e mais o homossexual desnudado por todos. Ser um homossexual: a nossa cidadezinha não o perdoou. Fosse somente o matador daqueles rapazes, talvez estivesse livre, certamente numa outra cidadezinha. Ele preferia as cidades pequenas, onde havia comunicabilidade entre as pessoas e se estava livre de toda espécie de poluição.
No diário há um período relativamente longo, dedicado às diferenças de comportamento humano entre uma cidade grande e uma cidade pequena. O professor Antunes gostava de conversar com as pessoas - já disse que era muito comunicativo. Detestava a cidade grande. Entre outras coisas, pela dificuldade de relacionamento entre as pessoas. E, no entanto, numa cidade grande, ele poderia manter aquelas "relações proibidas", sem precisar assassinar os parceiros. Ele os matava para que não revelassem o seu pecado. Esse o único motivo dos crimes. Já vinha de outras cidades, onde cometera assassinatos. A sorte, então, o favorecera e saíra delas sem nenhum risco, levando somente o peso na consciência. Talvez por isso bebesse tanto. Só estava sóbrio na hora das aulas.
Coitado do professor Antunes. A sorte não o acompanhou à minha cidade. Ninguém suspeitou dele quando três rapazes apareceram mortos, num período de dois meses. Por azar, o quarto rapaz foi encontrado ainda com vida e a tempo de pronunciar o nome do professor Antunes. Não fosse pela polícia ,que decidiu investigar, ele nunca teria sido preso. Os meus conterrâneos aceitariam a idéia mais absurda, menos a de que o professor Antunes fosse o autor das mortes. Só se convenceram quando o diário foi descoberto. Jornais da capital publicaram trechos daquelas páginas íntimas. Desnudado ante a população, ele desabou estrondoso do posto a que foi elevado. Foi enviado para o presídio da capital, a polícia temeu que fosse trucidado se ficasse na cadeia da cidade. Lá foi julgado e condenado.
Agora, um fato curioso. O tempo se encarregou de amortecer a fúria de vingança dos meus conterrâneos. É verdade que ainda há os que o odeiam, além dos familiares das vítimas, em cujos corações o ódio jamais cansará. Mas nas rodinhas que se formam nos bares, nas esquinas, na pracinha, há sempre uma palavra elogiosa ao professor Antunes. Desde que não esteja presente um parente dos assassinados. Falam-lhe da bondade e da inteligência e não se conformam com a sua condição de homossexual, sendo tão bonito. Alguns chegam até a duvidar de que ele tenha praticado aquelas mortes tão brutais. Porque - enfatizam sempre, o professor Antunes era calmo, muito calmo.
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Este conto (escrito em Natal, no Natal de 1977), faz parte do meu livro Não Enterrarei os Meus Mortos (1980).

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