domingo, julho 30, 2006

FORMIGA CRIANDO ASAS


O espelho reflete o rosto subitamente meditativo de Jussara. Ele é expressivo em sua beleza arranhada pelas marcas que, mais que o tempo, lhe gravaram as asperezas do cotidiano. E para disfarçá-las, ela estivera até há pouco fazendo aplicação de cosméticos. Estendido na cama, o vestido que irá usar. Os sapatos ao pé da cama. No espelho, os olhos gatescos se destacam entre a espessa maquilagem do rosto. Ouve o choro do cacula, mas não se preocupa. Coisas de criança. Mas há bem pouco tempo ela correria de onde estivesse para consolar o filho. Nas madrugadas, já não se levanta para verificar se os filhos estão agasalhados e se têm o pijama umedecido. Quando vai ao vaso, não mais consulta o relógio por ver o lugar do marido ainda vazio. Bem que ela se transformara com a entrada de Humberto em sua vida. Humberto-meteoro, e que a ajudou, sem querer, a lutar contra a antivida que levava.
O fracasso em que redundara o seu casamento: tinha consciência disso, muito antes de Humberto aparecer. Na verdade, Marcílio não demorou para se revelar que a queria como um objeto de inestimável valor utilitário, podendo servir inclusive ao seu apetite sexual, nas noites em que não encontrasse outra parceira. Sofria com essa relação de senhor-escrava que existia no seu casamento, mas preferira a resignação à revolta. A revolta era guardada no coração e apenas levemente comunicada a Vera, a amiga com quem às vezes se abria. A amiga compartiu do drama que viveu ao conhecer Humberto, indecisa entre cair-lhe nos braços, ou permanecer leal a um homem que não a honrava, nem aos filhos. Alívio de suas dores conugais, nâo pôde, no entanto, ajudá-la a se decidir. Tu tens que decidir por você mesma, repetia Vera todas as vezes em que lhe pedia uma opinião. E pensar muito, acrescentava.
E ela não fez outra coisa. Foram dias e dias de tensão, de noites insones, em que se sentiu mais só e mais frágil. Humberto ligando pra ela a toda hora, para cobrar uma resposta favorável a sua proposta, a apreensão em que a deixavam os telefonemas, o pavor de que Marcílio se inteirasse do caso. Uma noite o marido resolve ficar em casa (não deve ter conseguido uma nova parceira) e vai procurá-la. Filha, vamos fazer um amorzinho, diz como uma ordem, nunca um convite. A escrava se deixa penetrar pelo seu senhor. Saciado, ele lhe vira as costas e logo depois ouve-se o ronco de quem tem a consciência de uma criança. Violentada (uma vez mais) em sua sensibilidade, Jussara deita-se com a insônia. No dia seguinte, vai ao encontro de Humberto.
É bruscamente interrompida pela aparição do caçula, que vem se queixar do irmão. Ela lhe faz um leve afago e promete castigar o faltoso quando voltar. Agora ele deve se retirar para mãeinha trocar de roupa. "Eu quero ir com mãeinha". "Mãeinha vai pro médico. Não pode levar você". "Ah, eu quero ir. Eu quero ir, mãeinha". "Não pode, filhinho. Outro dia eu lhe levo. Olha, fica aqui quietinho, sem dar trabalho a Ismênia, que eu vou trazer um presente jóia pra você. Tá certo? Agora saia pra mãeinha mudar de roupa".
Jussara toca a nudez que o espelho lhe revela. Sente um certo prazer em tatear o corpo despido - território fértil que Humberto palmilhara com a sede de curiosidade do explorador. Humberto-descobridor. Humberto-meteoro. (Humberto-mágico.)
Jussara dirigiu-se para a sala de cima. Tomou uma poltrona da última fileira, que estava vazia. Podiam-se contar as pessoas que ocupavam as demais fileiras. Esperou pouco tempo para que a sessão começasse. Logo depois de as luzes apagarem, viu um vulto apontar. Veio em sua direção e sentou-se a seu lado. Pousou-lhe a mão no ombro. Em seguida os rostos se colaram. Beijaram-se. Daí a uma meia hora ele deixou o cinema. Jussara esperou quinze minutos e saiu.
Três quadras adiante a porta de um carro tragou-a.
*********************************************
Conto extraído do meu livro Um Dia... Os Mesmos Dias (1983).

quarta-feira, julho 26, 2006

O MÉDICO E O MONSTRO, GUARNIERI


1) Esta versão da obra de Robert Louis Stevenson, datada de 1931 ( os dicionários de cinema de Rubens Ewald Filho e do francês Jean Tulard a colocam como sendo de 1932, mas nos créditos do filme consta o ano de 1931) , realizada por Rouben Mamoulian, diretor de origem georgiana radicado em Hollywood, foi lançada , há uns dois anos, num DVD duplo, que tem no outro lado a versão do mesmo filme de 1941, dirigida por Victor Fleming (E o Vento Levou ) . O fato de o mesmo disco conter duas versões do livro de Stevenson oferece-nos a oportunidade de fazer uma comparação entre ambas. Isso feito, sai ganhando o filme de 1931, e essa superioridade deve-se à criatividade da direção de Rouben Mamoulian, que apresenta alguns achados de linguagem. Dois, pelo menos, chamam a atenção. 1) A cena em que o Dr. Jekill, ao caminhar em direção à casa da namorada, a fim de pedi-la em casamento, pára num parque e fica a observar um passarinho pousado numa árvore. É impressionante a mudança de comportamento do médico, jubiloso com a presença do passarinho (o que o leva a recitar um trecho de um poema) , e logo em seguida, quando a avezinha é devorada por um gato, assoma a sua satisfação pelo ato criminoso, legitimada com a sua transformação no horrendo e perverso Mister Hyde. 2) Na cena da transformação de Hyde em Jekill, na presença de um amigo, um plano mostra a vela já bem menor e com uma grande quantidade de cera derramada no castiçal, e então a câmera se afasta e a vela assume a aparência de uma cruz, colocada entre os dois homens.
Também digna de nota a agilidade na passagem de uma cena para outra, ao mostrar no mesmo quadro a cena que está terminando e a outra que se inicia. Um ponto negativo do filme talvez esteja em alguns excessos na interpretação (no geral, boa) de Fredric March. (Já Spencer Tracy me parece melhor na outra versão, e esse detalhe deve ser o único ítem em que o filme de Fleming pode superar o de Mamoulian.) Enfim, uma boa surpresa para quem não conhecia esse filme, o que vem comprovar que o diretor Mamoulian foi um destaque naqueles anos de ouro de Hollywood, ao realizar filmes como "Ama-me Esta Noite", "O Cântico dos Cânticos", entre outros. Fez cerca de vinte filmes, encerrando a carreira com menos de 60 anos, com o bem-sucedido "Meias de Seda" (1957), uma versal musical de "Ninotcka", de Lubitsch.
2) Era grande admirador de Gianfrancesco Guarnieri, esse italiano de Milão, que aqui chegou com três anos de idade. Admirava o seu trabalho como ator e como dramaturgo. Nessa segunda faceta de seu talento, Guarnieri foi o primeiro teatrólogo a levar o operário a subir ao palco em "Eles Não Usam Black-Tie", obra que marcou o teatro brasileiro na década de 1950. Talvez seja a sua peça mais cultuada, mas ele escreveu outras de grande nível, como "Um Grito Parado no Ar", para citar apenas uma. Foi também autor de letras para músicas, como "Upa, Neguinho!", em parceria com Edu lobo, imortalizada na voz de Elis Regina.
Infelizmente, trabalhou pouco no cinema. Dez filmes, apenas. Estreou em "O Grande Momento", de Roberto Santos (1958) , um excelente filme, influenciado pelo Neo-Realismo. Quando "Eles Não Usam Black-Tie" foi adaptada (e muito bem) para a tela por Leon Hirzsman, Guarnieri, que também atuara na peça, atuou também no filme. Só que em papéis diferentes. Mais de vinte anos depois, ele não poderia mais interpretar o jovem fura-greve, cabendo-lhe o papel de pai deste, tendo como esposa Fernanda Montenegro. Guarnieri morreu poucos dias depois de Raul Cortez. E tinham quase a mesma idade. Duas perdas inestimáveis para a arte brasileira.

domingo, julho 23, 2006

UM TEXTO DE HORÁCIO PAIVA

Já apresentei aqui o meu amigo Horácio Paiva como poeta. Hoje é a vez do prosador. Trata-se de um comovente texto de Horácio sobre o seu amigo, o também poeta GILBERTO AVELINO, no transcurso do quarto aniversário da morte deste, ocorrida em 21.07.02.
***************************
GILBERTO, NO CORAÇÃO
Contava-me o meu irmão Daltro que o poeta Esmeraldo Siqueira, seu professor no velho Atheneu, costumava dizer que nunca lhe faltavam interlocutores para uma boa conversa. Quando precisava de sua companhia, naqueles instantes mais necessários ao alimento da alma - que busca respostas no conhecimento e na afirmação filosófica, religiosa, ou estética - ia à sua biblioteca e, diante da plêiade de autores consagrados, escolhia um deles, "puxava-o pela orelha", e lia-o avidamente no silêncio do seu recolhimento.
Com Gilberto Avelino posso dizer que o meu diálogo continua mesmo após a sua morte. Não apenas na agradável e emocionada de sua obra lírica, mas também - sobretudo - no arranjo da memória, no hábil e sentimental exercício da evocação e manuseio diário das lembranças, colocando-as em movimento, removendo-lhes o pó do tempo, polindo-as constantemente para preservar-lhes a atualidade, a pureza da vida.
É que
"a saudade bate no peito
como armadilha
no coração
remove o pó do tempo
aquece
como um frêmito de sol as veias
geladas do passado".
Às vezes quero oferecer-lhe alguma coisa, ou escutar, por exemplo, a sua opinião sobre algum poema que escrevo. E a memória aquecida me dá essa resposta.
Às vezes trago-lhe a lembrança lírica de remotas passagens de sua própria infância, que, com prazer, me contava. E então o vejo criança, à noite, já deitado em sua rede, mas ainda sem dormir, e, assim, o ouço dizer à sua mãe:
- "Mamãe, quero água". E a imagem terna da mãe, que se levanta, pega o canequinho de alumínio, enche-o com a água fria da quartinha - pousada à janela, para melhor assimilar a frieza da noite - e dá-lhe de beber.
Ou ainda poderia oferecer-lhe a singularidade de suas visões proféticas, como nos três curiosos exemplos, a seguir narrados.
Em recente artigo, Ticiano Duarte, nosso amigo comum - e que hoje ocupa , na Academia Norte-riograndense de Letras, a cadeira que fora do poeta - conta de sua reconciliação com Gilberto, ainda na juventude, a partir de um sonho dele, Gilberto sonhara com o pai, já falecido, de Ticiano, e aquele o recomenda procurar o grande amigo e reconciliar-se com ele. Cumpriu o
sonho, dando continuidade à longa amizade.
Na mesma semana de sua morte, Gilberto sonhou com o meu pai, (já falecido à época) a quem muito estimava e admirava, e a quem seguira politicamente em Macau. Dizia-lhe o meu pai que precisava de sua presença, de sua assessoria, para tratar de assunto que requeria urgência. Era uma premonição. Não se evidenciava a certeza, e Gilberto contou-me repetidamente esse sonho, embora sem ares de tragédia e de forma até divertida.
Profetizou esses belos versos, retirados de seu último livro publicado em vida, "Os Tercetos e um Canto às Vozes do Mar", e que compõem o último poema dos Tercetos .
"Amada Amiga, não devo dizer-te agora,
entende a voz dos ventos. Chama-me o mar.
Embarcar irei. A madrugada, a vaga
é tranquila. Digo-te, perenizo os instantes.
Nas tuas lembranças, pois, sempre aportarei.
Ao mar. É o caminho, a minha saga e sina".
Eis que ressurge Gilberto! E, afinal, há um poema que quero, agora, oferecer-lhe, intitulado "Gilberto Avelino". Não é meu. Veio-me pelo poeta e caro amigo Diógenes da Cunha Lima. O seu autor, João Batista Pinto, descendente de Martins Ferreira, um dos fundadores de Macau, conseguiu, em elaborada síntese, em belo resultado estético, ao evocar a imagem de nosso querido Gilberto:
"Foste o sol e o sal
Na planície salina.
O vento que varreu os sonhos,
A sombra clara e amena,
A brisa morna e azul,
O espectro da luz do Alagamar".
E mais oferenda maior seria, enfim, a hora de relembrar a sua declaração de amor a Macau, nesses versos inesquecíveis:
"Esta é a terra que amo.
De rio em preamar sereno,
onde, entre ferrugens e sombras,
descansam âncoras e navegam
fantasmas de barcos cinzentos".
NOTA - Os primeiros versos, que aparecem neste texto, são do próprio Horácio.

quarta-feira, julho 19, 2006

VOCÊ SE LEMBRA DO SEU PRIMEIRO FILME?

O cineasta francês Jean Renoir (1894-1979) tinha oito anos quando teve o seu primeiro contato com o cinema. Foi numa manhã de domingo, quando, no internato em que ele estudava, apareceu um homem com um cinematógrafo, para , no local, promover uma sessão de cinema. Segundo relata no livro Exercícios sobre Cinema (Nova Fronteira/1990), foi a partir daquele dia que ele começou a amar o cinema. E acrescenta que nunca esqueceu o programa apresentado naquele remoto domingo e que "daria tudo para poder revê-lo".
Entre 1992 e 1993, num período de uns seis meses, mantive uma coluna semanal sobre cinema num jornal de Natal. Num dado momento, resolvi fazer entrevistas com alguns cinéfilos da cidade. Bené Chaves, editor do blogue O Apanhador de Sonhos, foi um dos escolhidos, creio que encabeçando a lista, se não me engano. Eram feitas sete perguntas. Um delas puxava pela memória do cinéfilo, querendo saber qual o primeiro filme que ele vira. Para minha surpresa, todos eles (se a memória não estiver me pregando uma peça) se lembravam da primeira vez que se viram diante de uma tela. Claro que se lembravam vagamente, mas se lembravam, e alguns chegaram a informar que tinham sido levados por um determinado parente. Se digo que fiquei surpreso é porque eu não consigo me lembrar do meu primeiro filme. Sem dúvida que o vi no cinema da minha cidade. E que foi ou um seriado, ou um faroeste daqueles que, nos Estados Unidos, são chamados de westerns Z , ( Durango Kid e similares) , pois esses gêneros de filmes dominavam a programação do Cine Canindé. Mas qual foi ele, não tenho a mínima idéia. E você, caro amigo, cara amiga, que me dão a honra de visitar este espaço, se lembra do seu primeiro filme?
****************************************
O FENÔMENO MANOEL DE OLIVEIRA
Em dezembro próximo o cineasta português Manoel de Oliveira completará 98 anos. Já seria um feito para ele estar chegando aos cem anos, se estivesse recolhido em casa, doente e inativo. Mas, em vez disso, Oliveira, com essa idade, continua trabalhando. Há pouco tempo concluiu Belle Toujours, uma sequência de Belle de Jour, de Buñuel. E já esta filmando Os Invisíveis. E o mais importante é o nível de qualidade que mantém em seus filmes. No ano passado vi O Cinema Falado (2003) , o seu melnor filme dos apenas quatro dele que conheço. Manoel de Oliveira estreou no cinema em 1931. São, portanto, 75 anos de carreira. Sem medo de errar, digo que é um caso único no cinema. Tenho para mim que o bom velhinho vai morrer num set de filmagens, o que, para ele, seria a morte ideal. Eta, velho macho!
********************************
LUTO NA ARTE DE INTERPRETAR
A arte de interpretar no Brasil está de luto. Ontem, à noite, morreu o ator Raul Cortez. Ele foi um dos nossos gtandes intérpretes, atuando no cinema (em menor número), teatro e televisão. No cinema , me lembro dele em "O Caso dos Irmãos Naves", um bom filme de Luís Sérgio Person, já falecido. Acho que foi o seu único filme que vi . Não conheço "Lavoura Arcaica" (ao que parece, seu útlimo trabalho no cinema), mas , quem o viu, diz que ele, como quase sempre, está muito bem. Tinha 73 anos.

sábado, julho 15, 2006

E LA NAVE VA (1983)


Nesse que é seu último grande filme, Fellini reverencia o cinema em sua forma de fabricante da imaginação, da ilusão, da ficção. "E la Nave
Va" foi todo rodado em estúdio e Fellini faz questão de tornar o espectador ciente de sua opção, quando, antes da cena final, abre para o espectador o set de filmagem, pondo à mostra os equipamentos utilizados. (Já numa cena do filme, ele sugere a realização de "E la Nave Va" em estúdio, através de um personagem que, ao comtemplar o sol se pondo, diz que este parece não ser real.) Uma reverência que pode soar irônica, pois feita por um cineasta de um país que foi o primeiro a fazer as filmagens saírem dos estúdios e ganharem as ruas. Essa homenagem ao cinema em sua fase juvenil se faz nos primeiros minutos de "E la Nave Va": o preto-e-branco é usado , assim como a falta de som, com a inserção de subtítulos. Não falta, inclusive, a imitação de um personagem cômico (talvez Carlitos, sem o bigodinho), feita por um personagem. Só quando os passageiros sobem a escada do navio é que a cor se instala, junta com o som.
Já no interior da nave, ficamos sabendo o objetivo daquela viagem, realizada em 1914, quando a Primeira Guerra Mundial ja fora deflagrada. Os passageiros estão acompanhando as cinzas da cantora lírica Edmea Tetua (Janet Szuman), que serão depositadas numa ilha onde ela nasceu. Ou seja, a viagem é como se fosse um enterro da cantora, que, não fosse a sua vontade, teria se realizado num cemitério. Quem nos deixa a par disso é Orlando (Freddie Jones), um jornalista, que assume a condição de alter ego de Fellini. É ele que nos apresenta os demais personagens, fornecendo informações, verdadeiras, ou não, sobre suas personalidades, defeitos, esquisitices, etc etc. É quando nos deparamos com o Fellini de sempre, em uma das premissas básicas do seu universo temático; ou seja, o desfile de personagens os mais exóticos, extravagantes e bizarros saídos da mente de um cineasta. O maior deles é um rinoceronte, que exala um odor fétido. Não se sabe o significado da presença do animal. E é trabalho inútil procurá-lo, do mesmo modo que o fazer com a presença de certos elementos nos filmes de Buñuel Não deve passar de uma brincadeira de Fellini. O que pode ser confirmado na última fala do filme. Com o ar de quem vai fazer uma importante revelação, a mão tapando um lado da boca, como se prevenindo para não ser escutado por alguém, o jornalista afirma que, segundo dizem, o rinoceronte "dá um leite formidável".
É o Fellini irônico, irreverente, iconoclasta, às vezes, cruel, às vezes beirando o vulgar, de outros tantos carnavais. Mas há uma exceção: a jovem Dorothy, de beleza suave e tranquila, o rosto de anjo, que nos remete à lembrança daquela garota de "A Doce Vida".
NOTA - E a programação cinematográfica dos dois shoppings de Natal continua uma titica. A do Midway , então, é sem comentários. Há uns meses o gerente, ou algo parecido, da rede de cinemas daquele shopping informou que estava sendo programada a exibição de filmes de arte numa das salas de exibição. Pelo visto, ficou só na promessa. E ainda há quem nos reprove quando vamos nos socorrer das vídeolocadoras. Será que esses caras estão sabendo que os espectadores de filmes em DVD (são daos estatísticos) estão superando, em muito, mas em muito mesmo, os dos que vão ao cinema? Ah, que saudades da década de de 196o!

quarta-feira, julho 12, 2006

UM CONTISTA DO CEARÁ


Hoje abro este espaço para o contista cearense PEDRO RODRIGUES SALGUEIRO. Um dos valores mais expressivos do conto cearense, surgidos nos anos 1990, PRS publicou os livros "O Peso do Morto" (1995), "O Espantalho "1996), "Brincar com Armas" (2000) e "Dos Valores do Inimigo" (2005). Participou de antologias, e vários dos seus contos foram publicados em revistas do país. O conto aqui publicado foi extraído do livro "Brincar com Armas". prefaciado por Rachel de Queiroz, Manda ver, Pedrão
####################################
AUSÊNCIA
Desde que a mulher morreu, ele pouco sai do quarto - tornando-se difícil até a limpeza feita às escondidas pela filha mais nova, que aproveita a hora das refeições para enfiar-se na penumbra do velho quarto do casal e espaná-lo rapidamente, tendo o cuidado de não retirar nada do lugar.
Quando a esposa era viva, eles pouco se falavam: um resmungo aqui, outro acolá. Fazia anos que não conversavam, como se houvessem esgotado todos os assuntos, e davam a impressão de um ligeiro rancor (mais presente nos olhos e no balançar de cabeça, usados no lugar das palavras).
Sempre dividiram a sombra larga do benjamim da calçada, sentados nas antigas cadeiras de balanço. Durante o dia entretinham-se com os afazeres de casa - ela catava o feijão na cozinha, depois terminava o almoço, aproveitando enquanto as panelas estavam no fogão para varrer de novo a casa; ele espantava os meninos que roubavam goiabas no quintal, aguava as roseiras novamente, resmungando sempre os mesmos insultos aos demônios que teimavam em pular o muro - e somente de tardezinha sentavam-se à calçada, obedecendo a um hábito antigo, de quando os filhos ainda não eram casados e moravam todos em casa.
Nem à noite, quando se recolhiam ao quarto no fundo do corredor, ouvia-se alguma conversa entre eles. Agora. porém, que ela morrera, ele adquiriu uma tristeza imensa - comportando-se como se houvesse morrido também. Não sai do cômodo escuro, nem quando a filha mais velha aparece depois de longa ausência. O tabuleiro de damas continua empoeirado em cima do armário, as pedras gastas minuciosamente arrumadas num saquinho ao lado; o almanaque velho, que ele sempre consultava para saber a posição da lua e o santo do dia, hoje permanece esquecido na sala de jantar; e até as cadeiras de balanço foram relegadas a um canto da sala.
A filha mais nova ainda aproveita a hora do almoço e do jantar para uma ligeira arrumação, e sai às pressas quando ouve o roçar leve da caneca de alumínio no beiço do pote, não sem antes repor o velho penico de ágata no seu canto certo, embaixo da cama. Depois ele então recolhe-se, para só aparecer depois de um novo chamado vindo da cozinha.
.

domingo, julho 09, 2006

A NUDEZ DE SOPHIA


A atriz Sophia Loren foi a escolhida para aparecer na capa do Calendário Pirelli, quando este está completando, em 2006, quarenta anos de circulação A notícia vinha acompanhada da informação de que Sophia tinha posado sem roupa. Mas logo veio o desmentido, não sei se do editor do famoso Calendário, ou do agente da atriz: ela vai aparecer usando uma lingerie preta e envolta em um lençol. Não li a primeira notícia. Se tivesse lido, não teria acreditado. O motivo? Ora, se Sophia, quando jovem, nunca posou nua para uma revista, e, no cinema, apenas mostrou as mamas em "Duas Noites com Cleópatra", quando ainda era uma ilustre desconhecida, não seria agora, perto de completar 72 anos, que iria exibir suas partes íntimas. E sou levado a acreditar que o convite para posar nua nem tenha lhe sido feito, se não por respeito à idade de Sophia, mas pela certeza de que ela não iria aceitá-lo. Nem por todo o dinheiro do Banco da Itália. E fã ardoroso da atriz, desde quando a vi pela primeira vez no cinema, em "A Mulher do Rio" , fico feliz em saber que, já na casa dos 70, ela é a escolhida para a capa da quadragésima edição do Calendário Pirelli, desbancando mulheres com idade para serem suas filhas ou até netas. Grande Sophia! Vou também, hoje, te prestar a minha homenagem, torcendo para que a Seleção do teu país conquiste o título da Copa do Mundo. Apesar de ser também fã do mágico futebol do francês Zinedine Zidane.
#######################################
Agora vou dizer uma palavrinha sobre um colega de Sophia, ambos nascidos em 21 de setembro. Esta semana revi "Flores Partidas" e "Encontros e Desencontros". Continuo gostando desses 2 filmes, que, por coincidência, são estrelados por Bill Murray. É curioso como esse ator que começou a carreira fazendo comédias (a única exceção no período, me parece, foi "O Fio da Navalha"), tornou-se um ator dramático de forte expressividade,, como o atestam os seus últimos trabalhos. Nos dois filmes, Murray exibe, na maior parte das vezes, um ar "blasé", aliado a uma expressão irônica, os quais, na medida em que assumem uma postura crítica diante da vida e de certas pessoas, demonstram nele um grau de inteligência e sensibilidade que o tornam um dos grandes atores do atual cinema americano.

quarta-feira, julho 05, 2006

O MANUSCRITO DO PRÍNCIPE ( Il Manoscritto del Principe/2000)



O Príncipe é Giuseppe Tomasi di Lampedusa. O manuscrito é do seu livro Il Gattopardo. Publicado depois de ele morto, o livro alcançou grande sucesso de crítica, e, adaptado para o cinema por Visconti, converteu-se em uma das obras-primas do cineasta italiano. Apesar do título, o filme coloca em plano inferior o trabalho do Príncipe no romancc: apenas alguns trechos são lidos por ele e o jovem Marco Pace (Paolo Briguglia),, que descobre o manuscrito em uma das visitas ao Príncipe (Michel Bouquet) , além da informação deste a Guido Lanza (Giorgio Lapano) que o original foi recusado por uma editora. O verdadeiro propósito de "O Manuscrito do Príncipe" é o de narrar a relação entre o Príncipe e os dois jovens, Marco e Guido. E no bojo dessa relação a disputa entre os para ser o preferido da atenção do Príncipe, o homem mais importante da região da Sicília, não apenas pela linhagem nobre (ainda que em fase de decadência), mas pela vasta cultura de que é dotado. Apesar de o Príncipe se oferecer a Marco para lhe dar lições sobre a língua e literatura inglesas, fica evidente que ele dedica mais atenção a Guido, e a razão talvez esteja no fato de ambos pertencerem à mesma classe. A atitude do Príncipe, embora não afete a amizade dos dois jovens, provoca, no entanto, uma ciumeira, um sentimento de inveja em Marco. O filme não o explica, mas aí talvez esteja o motivo por que, ao partir da cidade, Marco desfaz a relação com Guido. E evita encontrar-se com o ex-amigo, quando este vai procurá-lo em Roma, muitos anos depois, quando eles já estão caminhando para a velhice. O último plano do filme parece confirmar a suspeita. Depois de ler a carta que Guido introduz por baixo da porta do apartamento de Marco, vemos este ao piano. A câmera caminha até a estante, onde em uma prateleira está afixada uma foto dos três. O Principe , entre eles, está com os olhos fixos em Guido, enquanto a expressão de Marco é de quem se sente preterido pela atenção (ou a amizade) do Príncipe.
Mesmo concentrando-se na relação entre três pessoas, o filme, como não poderia deixar de ser, revela traços da personalidade do Príncipe, mostra o seu cotidiano e o convívio formal com a Princesa Alessanda Wolf, a "Licy". Vivida por Jeanne Moreau, ela se dedica à Medicina, recebendo os pacientes na própria casa.
Outro aspecto obscuro no roteiro envolve a mãe de Marco. Ela parece uma pessoa doente, nas poucas vezes em que aparece, mas fica-se sem saber qual é o tipo da enfermidade e, consequentemente, a causa da sua morte. Arrisco a hipótese de se tratar de um problema
psíquico, baseado nas condições em que ela é vista. (Numa cena , ela é encontrada na rua pelo filho, em meio a uma forte chuva, dando a impressão de estar desorientada.) E ela quase não fala. Recebe o Príncipe, na única vez em que este vai visitar Marco, com apatia, sem demonstrar um mínimo de efusão por uma visita tão ilustte. Apesar disso e da causa do rompimento entre os dois amigos, não acho que o filme sofra um prejuízo no seu resultado final.
"O Manuscrito do Príncipe" é dirigido pelo desconhecido Roberto Andò, nascido em 1959. Na sua biografia consta que ele foi assistente de direção de Fellini, Francesco Rosi, Cimino e Coppola. Curiosamente, o seu estilo lembra o de Visconti, sem, é claro, o brilho do mestre. Isso se evidencia na forma de alguns enquadramentos, no ritmo lento e numa certa elegância. E, como Visconti, Andò é também diretor teatral. Um detalhe: a produção é de Giuseppe Tornatore, o diretor do belo "Cinema Paradiso".

domingo, julho 02, 2006

DUAS CRÔNICAS DE BERILO WANDERLEY.


Berilo Wanderley (1934-1979) foi o melhor cronista do Rio Grande do Norte. No mês em que se completa mais um aniversário de sua morte prematura, este blogue presta-lhe uma homenagem, com a publicação de duas crônicas, retiradas do seu livro póstumo "Revista da Cidade" ( EDUFRN/1994). BW foi também um brilhante crítico de cinema. Em vida, publicou o livro de poesia "Telhado de Sonho".
CHEIRO DE CHUVA
As madrugadas jão estão mais frias e as manhãs nos assaltam com um céu cinzento entrando pela janela. No pombal, os pombos amanhecem inquietos e festivos e o macho faz prosa arredondada de namorador em torno de sua fêmea. Há sinais de chuva pelo ar. As largas folhas das bananeiras acordam orvalhadas e os bogaris, a um canto do jardim, tomam jeito de véu de noiva, leves e rendados. Aspira-se um cheiro de chuva que, antes de vir, manda recados com boas notícias, que chegam através das plantas e das aves.
E as mulheres se tornam amantes mais ternas e atentas aos apelos dos seus homens, e nos gestos e na fala põem alguma coisa que as revela como aptas para as surpresas sempre renovadas do amor. Jeito de mulher acarinhar o homem traz prenúncio de inverno e só os maus amantes, ou aqueles homens dados ao capricho estranho de não gostar de mulher, ignoram esta verdade límpida.
Madrugadinha. Céu pesado de nuvens. Olha ali um bem-te-vi- me saudando lá daquele galho do pé de azeitona-da-terra!
A LUA
Um amigo nos chama a atenção para a lua, que ainda não tínhamos notado, mas que já andava, há quase uma semana, sobre os telhados da nossa cidade. Malditas obrigações que nos fazem esquecer uma lua! Mas, ontem, procuramos vê-la. Estava detrás de u'a mangueira e já vai muito grande e muito vermelha, o que é sinal que está a caminho do quarto minguante, ou de outro qualquer.
Lua por detrás de mangueira dá o que pensar. Parece que tem mais encanto do que se apresentando no alto do céu, completamente nua, despudorada. Também u'a mulher sem roupa, se esgueirando matreira por detrás de uma folhagem, chama a atenção dos nossos olhos mais do que se aparecesse sem mistérios, no meio da rua, cruazinha. É a mesma coisa. Lua escondida por detrás de mato é como mulher, idem, idem.
Outra beleza de lua escondida é a renda que ela forma pelo chão. A areia parece uma toalha estendida, toda rendada, feita de linha branca, de linha que desce em fios, das folhas das árvores, das palhas do coqueiro lá de frente.
Ai se não fosse essa lua! Tem razão em dizer isso o velho Drummond. Se não fosse essa lua, como é que os seresteiros de nossa cidade se iam arranjar, para sair de noite pelas janelas afora, entoando loas às donzelas e à lua, que é também donzela, embora nua?
E os namorados, que conversas teriam, sem uma lua assim, numa noite assim? E os poetas, os bissextos e os de todos os dias, os novos e os do parnaso, sempre contemporâneos?
Ah, se não fosse essa lua! Sintamos e gozemos este luar, mesmo sem casa de chá e sem agosto.