terça-feira, abril 28, 2009

A MULHER, SEGUNDO RACHEL DE QUEIROZ

Retrato da escritora quando jovem.

in Google.



Há muitos anos li numa revista uma frase atribuída à escritora Rachel de Queiroz, que me deixou funda impressão. Não me lembro exatamente das palavras, tanto tempo decorrido, mas elas expressavam a satisfação, o júbilo de Rachel de pertencer ao sexo feminino, pois isso a impossibilitava de ter que casar com uma mulher. Como não era uma entrevista, só uma frase, talvez no meio de frases de outros autores, não era revelado o motivo da hostilidade de Rachel às companheiras de sexo. E com a experiência adquirida no decorrer dos anos, de que a imprensa escrita nas entrevistas coloca frases que uma pessoa (geralmente famosa) não disse, ou não disse exatamente o que sai impresso, cheguei a pôr em dúvida a autenticidade das palavras da escritora cearense.
Ocorreu, então, que há poucos dias vi a reprise de uma longa entrevista que Rachel concedeu ao canal da Câmara, ou do Senado. Não deve ter sido muito tempo antes da sua morte, pois já estava um bocado velha, mas revelando uma grande memória e não menos lucidez. Peguei o programa já pela metade, mas ouvi ainda Rachel falar de José Lins do Rego, do Padre Cícero e do Marechal Castelo Branco, que era seu parente, entre outras personalidades. Perto do final, o entrevistador deve ter lhe perguntado algo sobre a mulher (preciso esclarecer que a entrevista seguia o modelo criado por Fernando Faro no programo "Ensaio", da TV Cultura, no qual não se vê o entrevistador, nem se lhe ouve a voz). E aí Rachel pegou pesado. Disse que as suas amizades eram com homens e usou umas três palavras fortes contra a mulher, das quais só me lembro de uma, que era "traiçoeira". "A mulher é muito traiçoeira", afirmou.
Ah, então era mesmo dela aquela frase antiga, falei para mim mesmo. E fiquei como se não tivesse ouvido aquela opinião sobre a mulher, partida de outra mulher. Olhei para a minha esposa, ao meu lado, não percebi nela a mínima reação. Porque é comum uma mulher falar mal de outra, o mesmo acontece com o homem. Isso ocorre muito entre as atrizes, as cantoras (Nara Leão, por exemplo, chegou a revelar publicamente sua antipatia por Elis Regina). Mas nunca ouvi, ou li, nenhuma delas manifestar uma ojeriza contra a mulher em geral. E não cabe dizer que Rachel estava querendo chocar, ou atrair para ela os holofotes. Há décadas já se consagrara como escritora, não precisaria usar de artifícios como esse. Além disso, ela era conhecida por sua franqueza, por dizer o que pensava, por não ter papas na língua. O que se pode, talvez, especular, é que Rachel, na juventude, tenha tido experiências traumáticas no relacionamento com mulheres. Pode ter ocorrido isso. Ou não?

segunda-feira, abril 20, 2009

DONA NENÉM (1909-1988)

Nesta foto, minha mãe estava a poucos dias de fazer 62 anos.

Me lembro dela sentada toda noite na calçada. Nunca sozinha. Um filho, uma filha a acompanhavam. E duas ou três vizinhas vinham conversar com ela, entre elas Dona Julinha, mulher de César Campos, o homem mais rico de Canindé. Meu pai que ficava lá pra dentro, às vezes aparecia, geralmente quando uma dessas amigas da mamãe estava presente, mas não se sentava, ficava recostado ao muro baixo que separava a calçada da casa. Permanecia ali até pouco mais das nove e meia, pois a luz apagava às dez e meia e ela tinha que puxar o terço e fazer os últimos preparativos antes de a casa mergulhar na escuridão. Me lembro dela lá nos fundos da casa pintando o cabelo. Extremamente religiosa, frequentando a igreja diariamente, minha mãe era muito vaidosa. O papai mexia vez por outra com o cabelo tingido da esposa: "ô cabelinhoo tão pretinho". Ela não gostava da brincadeira.

Tenho muitas outras lembranças dela. Fumando cachimbo, também lá para os fundos da casa, pedalando na Singer, rezando no oratório cheio de pequenas imagens de santos e santas, cantando benditos. E em certas noites, passando Asseptol nos meus pés feridos nas peladas de futebol. Enquanto aplicava o líquido, ficava me recriminando pelo meu "vício", às vezes, ameaçando de contá-lo ao papai. E quando o remédio ardia e eu reclamava da dor, ela dizia "é pra doer mesmo, vá jogar bola, vá". Quando arrumava a minha mala, na véspera de eu viajar para assumir o meu emprego num banco, interrompeu, de repente, a tarefa e, virando-se pra mim, disse: "meu filho, eu queria lhe fazer um pedido". Devo ter dito pois não, mamãe, e ela falou: "não se case logo, não". Ainda ia fazer 20 anos e só fui casar com quase 29. Não vou falsear a verdade, dizendo que só casei com essa idade para atender ao seu pedido, prefiro achar que isso só tenha ocorrido porque demorei a encontrar a mulher que escolhi para esposa. Seja esse o motivo, de qualquer modo satisfiz a vontade da mamãe.

Casou aos quinze anos. Nascida há exatos cem anos em Juazeiro do Norte, onde pontificava o padim Ciço, foi morar em Canindé, muito distante da sua terra. Teve 11 filhos. O primogênito, uma mulher (Adeilde), morreu com poucos meses de nascido. Filhos que vieram em intervalos curtos. Entre o primeiro e o último um espaço de 22 anos.

Dona Neném, chamada Antônia, tinha umas coisas engraçadas. Se algo que estava procurando demorasse a ser localizado, começava a dizer "dou-te, Cão, pelo amor de Deus". Na minha curiosidade de menino (que não arrefeceu no adulto), um dia lhe perguntei o porquê daquelas palavras. Ainda hoje me faz rir a explicação dela: sendo o demônio inimigo de Deus, iria devolver o objeto que, supostamente, teria surrupiado. Ah, Dona Neném.

Em várias vezes a ouvi dizer a algum dos seus filhos: "você pensa que o Céu é perto"? Não me lembro direito por que dizia aquilo. Parece que era quando queríamos uma coisa que ela achava muito difícil de conseguir. Ou, talvez, algum ato mau que tivéssemos praticado, que poderia dificultar a nossa ida para o Céu.

Seus ídolos musicais eram Luiz Gonzaga e Carlos Galhardo - dois cantores tão diferentes entre si, na voz e no repertório. Mas ela gostava um pouco mais do segundo, presumo que por ser um homem bonito. Houve até um fato divertido sobre a admiração da mamãe por Carlos Galhardo. Um dia ela disse que se o cantor fosse a Canindé, mataria um peru para lhe oferecer um almoço. O papai, que sabia ser irônico, e movido, quem sabe, por uma ponta de ciúme, passou a chamar o ídolo da esposa de "o homem do peru". Sempre que o nome do cantor era mencionado, lá vinha o "velho" dizendo, "ah, sim, o homem do peru que Neném quer dar um almoço pra ele". Mas Galhardo não pôde provar esse famoso peru, jamais apareceu na nossa cidade. Apresentou-se algumas vezes em Fortaleza, que não fica distante de nossa cidade, e não sei por que mamãe não foi conhecê-lo. Ah, Dona Neném.

Queria me fazer padre, e, se a memória não estiver me traindo, o seu desejo não se realizou por interferência do papai. A ideia também não me atraía nem um pouco.

Na última vez em que estive com mamãe, encontrei-a já muito doente. Não me reconheceu, passava a maior parte do tempo deitada numa rede armada perto do seu oratório, ela que fora uma mulher trabalhadora, tão disposta. Quando fui me despedir dela, me olhou sem dizer nada. Uns 2 meses depois recebi a notícia da sua morte. (Aliás na década de 1980, ocorreram 3 mortes na minha família. O papai em 1981, a Sônia, a mais nova das minhas irmãs, que, com menos de 50 anos, faleceu de uma doença misteriosa, que não foi diagnosticada, em 1986, e a mamãe em 1988.) Na companhia de 3 irmãos (os outros 3 não puderam comparecer) e das duas irmãs,enterrei-a.

Desde então não fui mais a Canindé.

terça-feira, abril 14, 2009

PÁSSAROS CATIVOS




Com os filhos não fora tão difícil, apesar das reclamações deles, às vezes tendo a mãe como intermediária. Já com os netos não estava conseguindo. Eram três os netos, o mais velho já quase chegando à adolescência, filhos de sua única filha. Desde que vira aquelas três gaiolas, com um pássaro dentro de cada uma, que tentara convencê-los de que o pássaro não pode ficar aprisionado, fora do seu habitat natural, mas os netos não lhe deram ouvidos. Tentara o apoio dos pais, a filha até que demonstrou interesse em ajudá-lo, mas o genro, um homem bom, mas sem um mínimo de sensibilidade para certas coisas, achava aquilo muito natural. Ora, Seu Luiz, todo menino gosta de criar passarinho em gaiola. O senhor quando era menino, deve ter tido os seus. Reagiu com certa veemência, dizendo que o seu pai não permitia essa crueldade com os pássaros. Mas o senhor bem que tinha vontade, ou não? Preferiu se calar.
E passou a frequentar cada vez menos aquela casa. Queria muito bem à filha, queria muito bem aos netos, os primeiros que tivera, e os únicos que moravam na mesma cidade. Mas se sentia incomodado quando chegava lá e via as três gaiolas enfileiradas com aqueles pássaros mudos, que lhe pareciam tristes na sua condição de prisioneiros.
Numa noite de insônia, chegou-lhe, de repente, a lembrança de um poema de Olavo Bilac, que lera na juventude e que lhe calara fundo na mente e no coração. E o título veio de imediato: "O Pássaro Cativo". Fez um enorme esforço para se lembrar de alguns versos, em vão; a memória, no entanto, preservara a lembrança de que era um poema destinado às crianças, no qual o tema era o crime de tornar um pássaro cativo em uma gaiola. Não se levantou de um salto para procurar o poema porque sabia que não o tinha, mas no dia seguinte, depois do café, telefonou para um seu amigo desde os tempos de jovens. Perguntou-lhe se lembrava do poema e se o tinha. A memória do amigo não retivera sequer o título e estava convicto que não o tinha. Mas vou pesquisar na Internet e, encontrando-o, ou não, ligo pra você. Telefonou ainda cedo da noite. Descobrira, sem trabalho, o poema, e, à medida que o lia, os versos foram se lhe tornando familiares e a emoção tomou conta dele. Conversaram um bom tempo sobre o poema, e, antes de se despedirem, combinaram que Seu Luiz iria à casa dele na manhã do dia seguinte.
Lá chegando, o amigo já estava com o poema impresso. Seu Luiz leu o título e ficou em silêncio, segurando o papel, como se tivesse recuperado um objeto raro e precioso que lhe fora tirado há muitos anos. Depois, como se acostumara a fazer, leu o poema em voz alta, e, tal como o amigo, não pôde conter a emoção, que se intensificou na parte em que o poeta dá voz ao pássaro cativo para se dirigir à criança que o aprisionara. Ao terminar, perguntou ao amigo se ele podia tirar mais três cópias, para dá-las aos netos.
No outro dia, um domingo, foi à casa da filha. Como sempre, a visão das três gaiolas causou-lhe mal estar, mas ocorreu algo estranho: sentiu, ao mesmo tempo, uma ponta de esperança de que um dia elas poderiam ser jogadas fora. Juntou-se com os três netos no quarto deles e lhes pediu muita atenção ao que iria ler-lhes. Outra vez a emoção lhe tomou conta. Terminada a leitura, agora respaldado pela força do poema, alertou-os mais uma vez para a maldade que estavam praticando. Em seguida, entregou a cada neto uma cópia do poema, recomendando a eles que o lessem uma vez ou outra, sem se desfazer jamais daquele papel.
O tempo foi voando, voando, a cada vez que Seu Luiz ia visitar os netos, perguntava pelo poema, se o liam de vez em quando, se não o tinham rasgado. Lê-lo é provável que não o fizessem, mas, pelo menos, o conservavam, como faziam questão de mostrar ao avô.
Até que chegou o dia de mais um aniversário de Seu Luiz. A manhã já ia adiantada, quando os netos irromperam em sua casa para lhe dar os parabéns. Cada um com a sua gaiola, os três disseram, vovô, viemos trazer o nosso presente. Vendo o "presente", o avô ficou tão irritado que pela primeira vez foi grosseiro com os netos. Vocês estão me faltando com o respeito. Saiam já daqui. Ora, fazerem isso com o seu velho avô. Aí o mais velho falou, não é o que o senhor está pensando, vovô Luiz. Vamos para aquela janela. Ainda aborrecido, acompanhou os meninos. Chegaram à janela, que se abria para um largo e extenso terreno baldio. Olhe só, vovô, continuou o mais velho. Pousou a gaiola no parapeito, abriu-lhe a portinha, pegou o pássaro com mãos cuidadosas e soltou-o para a imensidão do espaço. Em seguida foi a vez do segundo neto abrir a portinha, retirar com o mesmo cuidado o pássaro e soltá-lo. Por fim, o mais novo imitou a ação dos outros. Pronto, vovô, este é o nosso presente para o senhor, falou como sempre o mais velho dos netos. Seu Luiz estava recostado num canto do parapeito, olhando para fora e sem dizer palavra. Assim ficou por uns três minutos. Os netos o olhavam atentamente. Foi então que viram, em dado momento, o avô puxar um lenço do bolso e levá-lo aos olhos.


- Este texto foi baseado numa história, por ele vivenciada, que me contou o meu amigo João Wilson Mendes Melo, escritor potiguar e professor aposentado da UFRN.

terça-feira, abril 07, 2009

A EMBRIAGUEZ DO SUCESSO (Sweet Smell of Success/1957)




Lançado agora em DVD, "A Embriaguez do Sucesso" conserva o impacto e o vigor da crítica ao tipo de jornalismo sensacionalista, 52 anos depois de chegar ao cinema. A personificação maior desse lado sujo da imprensa é J.J. Hunsecker (Burt Lancaster), definido por um colega como "um homem com escrúpulos de um porquinho da índia e princípios de um mafioso". Um homem poderoso, por causa da coluna que escreve e apresenta na televisão, que é consumida por milhões de pessoas, com ligações com a política e a polícia. E se J.J. simboliza o poder, a fama e o prestígio conquistados pelo tipo de jornalismo que pratica, Sidney Falco (Tony Curtis), igualmente inescrupuloso, representa a ambição de chegar ao topo do sucesso do outro. Publicitário de profissão, Sidney é, na prática, um assessor de J.J, o homem encarregado de fornecer matéria para a coluna.
Dois personagens "antipáticos", perversos, que manipulam, chantageiam pessoas. J.J. faz chantagem até mesmo com Sidney, deixando por muitos dias de publicar as notícias que este lhe fornece, porque Sidney ainda não conseguira uma forma de desfazer o namoro da irmã de J.J, Susie (Susan Harrison) com Steve (Marty Milner), guitarrista de um conjunto de "jazz". A obstinação (que chega à obsessão) com que o colunista persegue esse objetivo, buscando separar o casal, não configura uma preocupação com a condição social e profissional do rapaz, isso não é percebido em nenhum momento do filme. Na verdade o que se percebe é uma atração dele pela irmã, com quem mora, que é sugerida em duas cenas: uma, quando J.J. entreabre a porta do quarto dela e, como um "voyeur", a observa dormindo; e a outra, já quase no final, quando, de sua janela, ele a olha caminhando em direção ao hospital, onde está internado Steve. A expressão dele é de quem sofreu uma perda.
Steve aparece como uma espécie de "mocinho" em oposição ao "vilão" J.J. e seus acumpliciados. Confronta-se com Sidney em mais de uma ocasião - na boate, a quem acusa de o estar espionando, e no escritório do publicitário os dois quase chegam a se atracar, depois de uma calorosa discussão. E no seu único encontro com J.J. no auditório da televisão, tem a coragem de desafiá-lo, ao questionar o seu poder, o seu prestígio. Pela primeira vez afrontado na sua privilegiada condição pessoal e profissional, o ego de J.J. sofre um abalo e o leva a tomar uma decisão drástica: obriga Sidney, em troca de este substituí-lo na redação da coluna no período em que pretende viajar com a irmã, a combinar com um conhecido truculento policial a eliminação de Steve.
O fato de não se saber se Steve escapará da morte (ao contrário de Sidney, que é morto pelo policial e o seu parceiro, a mando de J.J., como resultado de uma situação que reforça a percepção da atração do irmão pela irmã) é mais um trunfo do filme, ao não mostrar o encontro dos namorados no hospital, fazendo-o escapar do risco de um final feliz que poderia causar danos à proposta do filme.
A direção de Alexander Mackendrick, o mesmo de "Quinteto da Morte" (1955), é admirável, inclusive por poder revelar que Tony Curtis possuía potencial como ator e não era apenas um rosto bonito. Sua atuação é tão boa quanto a de Burt Lancaster e talvez a supere em um ou outro momento. E depois desse filme, Curtis reafirmou a posse de recursos interpretativos, até para a comédia, na qual brilhou em filmes como, por exemplo, "Quanto Mais Quente Melhor", de Wilder.
* * * * * * * * * * * *

NOTA - Realizado em preto e branco, "A Embriaguez do Sucesso" foi colorizado na transposição para DVD. Isso causou um grande prejuízo à fotografia de James Wong Howe, "o mestre do claro-escuro", conforme o chamou Antônio Moniz Vianna em sua crítica quando o filme foi lançado. Trata-se de um crime contra a integralidade de uma obra, cujos autores deveriam ser punidos.