Retrato da escritora quando jovem.
in Google.
Retrato da escritora quando jovem.
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Me lembro dela sentada toda noite na calçada. Nunca sozinha. Um filho, uma filha a acompanhavam. E duas ou três vizinhas vinham conversar com ela, entre elas Dona Julinha, mulher de César Campos, o homem mais rico de Canindé. Meu pai que ficava lá pra dentro, às vezes aparecia, geralmente quando uma dessas amigas da mamãe estava presente, mas não se sentava, ficava recostado ao muro baixo que separava a calçada da casa. Permanecia ali até pouco mais das nove e meia, pois a luz apagava às dez e meia e ela tinha que puxar o terço e fazer os últimos preparativos antes de a casa mergulhar na escuridão. Me lembro dela lá nos fundos da casa pintando o cabelo. Extremamente religiosa, frequentando a igreja diariamente, minha mãe era muito vaidosa. O papai mexia vez por outra com o cabelo tingido da esposa: "ô cabelinhoo tão pretinho". Ela não gostava da brincadeira.
Tenho muitas outras lembranças dela. Fumando cachimbo, também lá para os fundos da casa, pedalando na Singer, rezando no oratório cheio de pequenas imagens de santos e santas, cantando benditos. E em certas noites, passando Asseptol nos meus pés feridos nas peladas de futebol. Enquanto aplicava o líquido, ficava me recriminando pelo meu "vício", às vezes, ameaçando de contá-lo ao papai. E quando o remédio ardia e eu reclamava da dor, ela dizia "é pra doer mesmo, vá jogar bola, vá". Quando arrumava a minha mala, na véspera de eu viajar para assumir o meu emprego num banco, interrompeu, de repente, a tarefa e, virando-se pra mim, disse: "meu filho, eu queria lhe fazer um pedido". Devo ter dito pois não, mamãe, e ela falou: "não se case logo, não". Ainda ia fazer 20 anos e só fui casar com quase 29. Não vou falsear a verdade, dizendo que só casei com essa idade para atender ao seu pedido, prefiro achar que isso só tenha ocorrido porque demorei a encontrar a mulher que escolhi para esposa. Seja esse o motivo, de qualquer modo satisfiz a vontade da mamãe.
Casou aos quinze anos. Nascida há exatos cem anos em Juazeiro do Norte, onde pontificava o padim Ciço, foi morar em Canindé, muito distante da sua terra. Teve 11 filhos. O primogênito, uma mulher (Adeilde), morreu com poucos meses de nascido. Filhos que vieram em intervalos curtos. Entre o primeiro e o último um espaço de 22 anos.
Dona Neném, chamada Antônia, tinha umas coisas engraçadas. Se algo que estava procurando demorasse a ser localizado, começava a dizer "dou-te, Cão, pelo amor de Deus". Na minha curiosidade de menino (que não arrefeceu no adulto), um dia lhe perguntei o porquê daquelas palavras. Ainda hoje me faz rir a explicação dela: sendo o demônio inimigo de Deus, iria devolver o objeto que, supostamente, teria surrupiado. Ah, Dona Neném.
Em várias vezes a ouvi dizer a algum dos seus filhos: "você pensa que o Céu é perto"? Não me lembro direito por que dizia aquilo. Parece que era quando queríamos uma coisa que ela achava muito difícil de conseguir. Ou, talvez, algum ato mau que tivéssemos praticado, que poderia dificultar a nossa ida para o Céu.
Seus ídolos musicais eram Luiz Gonzaga e Carlos Galhardo - dois cantores tão diferentes entre si, na voz e no repertório. Mas ela gostava um pouco mais do segundo, presumo que por ser um homem bonito. Houve até um fato divertido sobre a admiração da mamãe por Carlos Galhardo. Um dia ela disse que se o cantor fosse a Canindé, mataria um peru para lhe oferecer um almoço. O papai, que sabia ser irônico, e movido, quem sabe, por uma ponta de ciúme, passou a chamar o ídolo da esposa de "o homem do peru". Sempre que o nome do cantor era mencionado, lá vinha o "velho" dizendo, "ah, sim, o homem do peru que Neném quer dar um almoço pra ele". Mas Galhardo não pôde provar esse famoso peru, jamais apareceu na nossa cidade. Apresentou-se algumas vezes em Fortaleza, que não fica distante de nossa cidade, e não sei por que mamãe não foi conhecê-lo. Ah, Dona Neném.
Queria me fazer padre, e, se a memória não estiver me traindo, o seu desejo não se realizou por interferência do papai. A ideia também não me atraía nem um pouco.
Na última vez em que estive com mamãe, encontrei-a já muito doente. Não me reconheceu, passava a maior parte do tempo deitada numa rede armada perto do seu oratório, ela que fora uma mulher trabalhadora, tão disposta. Quando fui me despedir dela, me olhou sem dizer nada. Uns 2 meses depois recebi a notícia da sua morte. (Aliás na década de 1980, ocorreram 3 mortes na minha família. O papai em 1981, a Sônia, a mais nova das minhas irmãs, que, com menos de 50 anos, faleceu de uma doença misteriosa, que não foi diagnosticada, em 1986, e a mamãe em 1988.) Na companhia de 3 irmãos (os outros 3 não puderam comparecer) e das duas irmãs,enterrei-a.
Desde então não fui mais a Canindé.