sexta-feira, setembro 28, 2007

FAHRENHEIT 451




Os créditos são lidos por uma voz em "off". É uma antecipação do tema do filme, que as duas sequências iniciais irão expor. Um rapaz recebe um telefonema anônimo, em que alguém lhe diz para deixar a casa imediatamente, sem nenhuma explicação. Em seguida, uma brigada de bombeiros sai da guarnição com destino à residência do rapaz. O motivo do telefonema e da invasão dos bombeiros é então justificado pela existência de livros no local. Encontrados, entre eles uma edição condensada de "Dom Quixote" (conforme foto acima), eles são levados para fora e ali queimados, sob a presença de cidadãos. Entre estes, um garoto folheia um dos livros, um dos bombeiros lhe lança um olhar de reprovação, o pai (supostamente) do menino, de imediato, tira-lhe o livro das mãos e o atira no meio dos outros. Está-se em um país, numa época de um futuro não determinado, em que a leitura de livros é proibida e a pessoa que os possuir é levada à prisão, enquanto os seus livros vão para a fogueira.

De 1966, este filme de François Truffaut ("Os Incompreendidos", "A Noite Americana") , antes de constituir-se em uma denúncia contra o totalitarismo, é uma declaração de amor ao livro, feita por um cineasta que foi um apaixonado leitor. Mostra a importância, a necessidade, até o prazer da leitura, ao mesmo tempo que investe contra o domínio da televisão sobre os habitantes daquele país. Por sinal que na invasão à residência do rapaz, os livros estão quase todos escondidos em um móvel simulando um aparelho de televisão.

Mas, como em todo regime totalitário, há os resistentes, os que, às escondidas, lutam contra a proibição da leitura. O líder desses combatentes é a jovem Clarisse (Julie Christie). Ela mora perto de um dos incendiários de livros, Montag (Oscar Werner) e, sentindo nele uma pessoa de bons princípios, apesar de sua dedicação àquele intolerante ofício, procura, com habilidade, torná-lo um dos seus. E consegue. Truffaut mostra o início do ingresso de Montag no universo que ele combate numa cena em que, tarde da noite, aproveitando-se do sono pesado da esposa, ele retira de um esconderijo um exemplar do "David Copperfield", de Charles Dickens, e começa a lê-lo. A câmera flagra com nitidez o capítulo inicial, cujo título é justamente "I am born"...

Em entrevista a uma jornalista, Truffaut revela que só aproveitou 60% do livro homônimo do escritor americano Ray Bradbury, lançado em 1953. Os restantes 40% foram criados por ele e Jean-Louis Richard, seu parceiro de roteiro. Uma dessas invenções é o fato de as duas mulheres na vida de Montag, Clarisse e a passiva esposa Linda, serem vividas por Julie Christie. Na sua visão, não funcionaria bem a escolha de outra atriz e com características físicas opostas à de Julie para o papel de Linda. A única diferença entre as duas, no filme, é quanto ao cabelo. Curto, parecido com o de um homem, em Clarisse, longo na esposa de Montag.

Truffaut não o revela, mas acredito que um dos elementos preservados do romance de Bradbury é a existência dos homens-livros. São homens que decoram livros, indo refugiar-se num local distante no país, a salvo das garras dos incendiários, e passam os dias "lendo". Um momento comovente mostra o velho avô, já agonizante, repassando as palavras de um livro para o neto, que as vai repetindo para retê-las na memória. A esse grupo de "leitores" vai se reunir Montag, de posse de uma obra de Edgar Allan Poe. Numa homenagem a Bradbury, um dos homens escolheu o seu "Crônicas Marcianas".

É um belo e emocionante final, cada uma das pessoas dizendo as palavras do livro de sua preferência. Pela memória dos amantes da leitura, as grandes obras da literatura não serão destruídas naquele país.

Rodado na Inglaterra, com atores britânicos, à exceção do austríaco Oskar Werner, que já trabalhara com Truffaut no belíssimo "Jules e Jim", "Fahrenheit 451" (o título refere-se ao grau de combustão ideal para a queima do papel de livro), parece ser um filme subestimado do diretor, e, no entanto, é um dos seus melhores trabalhos.

sábado, setembro 22, 2007

LEMBRANDO SIDNEY MILLER



Este trevo foi concedido a este blogue por uma gentileza do amigo "Eremita", como se assina o editor do blogue eremitério, pela qual sou muito grato.

pouco tempo remexendo em meus discos de vinil, para escolher alguns que queria passar para CD, me deparei com um de Sidney Miller, gravado na Elenco em 1967, cujo título era o próprio nome do compositor. De imediato o separei, para levar com outros ao técnico. Tantos e tantos anos não ouvia esse disco, que nem me lembrava que ele fazia parte do meu acervo. Bem recebido pela crítica, foi o primeiro dos apenas três elepês que ele gravou até morrer em 1980, com apenas 35 anos.

Nascido em 18 de abril de 1945, Sidney Miller foi mais um dos grandes talentos que surgiram na década de 1960, para revitalizar a MPB, após o esvaziamento da Bossa Nova. Como Chico, Caetano, Gil, Edu Lobo, Milton Nascimento, entre outros num nível um pouco abaixo.

Esse disco reúne músicas de grande qualidade, como O Circo, Passa, Passa, Gavião, Marré-De-Cy, Meu Violão, Pede Passagem, A Estrada e o Violeiro e Menina da Agulha. Todas as músicas são interpretadas pelo compositor, sendo que na duas últimas citadas há a participação de Nara Leão, formando um dueto com ele. Vale salientar que A Estrada e o Violeiro ganhou o prêmio de melhor letra no 3o. Festival da Record. (Era a época dos festivais de música popular, promovidos por aquela emissora de televisão, os quais, além de divulgarem o lançamento de autênticas pérolas musicais, serviram ainda como uma espécie de trincheira contra a ditadura militar.)

Num pequeno artigo sobre Sidney Miller no saite Revista Música Brasileira, os autores Fernando Toledo e Áurea Alves observam que "Sidney não era um iconoclasta como Caetano: em termos de música, estaria mais próximo de Chico, fazendo uma ponte entre um novo olhar e a herança musical e poética em seu sangue". De fato, há uma certa semelhança entre os dois, que é mais percebível nos sambas e choros de Sidney. Chico poderá ter mais talento, mas, pelo menos na qualidade da voz, é superado pelo colega e quase coetâneo (há apenas a diferença de um ano entre eles.)

Sidney também compôs para o teatro e o cinema. Suas músicas foram interpretadas por, entre outros, Nara Leão, Clara Nunes, Quarteto em Cy, Caetano, Paulinho da Viola e Dóris Monteiro. É lamentável que tenha morrido jovem, quando ainda tinha tanto a contribuir para a nossa música. E o mais lamentável é que tenha morrido por vontade própria. Por motivos que permanecem obscuros, Sidney Álvaro Miller Filho se matou em 16 de julho de 1980. Repetiu o gesto de Assis Valente, autor do clássico Boas Festas, e de Torquato Neto, seu contemporâneo daquele período de trevas em nosso páis.

A seguir, uma pequena amostra do seu talento: a letra de O Circo, a sua melhor música na minha opinião, pelo menos entre as que conheço dele.

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Vai, vai, vai começar a brincadeira

Tem charanga tocando a noite inteira

Vem, vem, vem ver o circo de verdade

Tem, tem, tem brincadeira e qualidade.

Corre, corre, minha gente

Que é preciso ser esperto

Vai melhor quem vai na frente

Vê melhor quem vê de perto

Mas no meio da folia

Noite alta, céu aberto

Sopra o vento que protesta

Cai no teto, rompe a lona

Pra que a lua de carona

Também possa ver a festa.

Vai, vai, vai, etc.

Bem me lembro o trapezista

Que mortal era o seu salto

Navegando lá no alto

Parecia de brinquedo

Mas fazia tanto medo

Que o Zezinho do trombone

De renome consagrado

Esquecia o próprio nome

E abraçava o microfone

Pra tocar o seu dobrado.

Vai, vai, vai, etc.

Faço versos pro palhaço

Que na vida já foi tudo

Foi soldado, seresteiro

Carpinteiro, vagabundo

Sem juiz e sem juízo

Fez feliz a todo mundo

Mas no fundo não sabia

Que em seu rosto coloria

Todo o encanto do sorriso

Que seu povo não sorria.

Vai, vai, vai, etc.

De chicote e cara feia

Domador fica mais forte

Meia-volta, volta e meia

Meia-vida, meia-morte

Terminado o seu batente

De repente a fera some

Domador que era valente

Noutras feras se consome

Seu amor indiferente

Sua vida e sua fome.

Vai, vai, vai, etc.

Fala o fole da sanfona

Fala a flauta pequenina

Que o melhor vai vir agora

Que desponta a bailarina

Que seu porte é de senhora

Que seu rosto é de menina

Quem chorava já não chora

Quem cantava desafina

Porque a dança só termina

Quando a noite for embora.

Vai, vai, vai terminar a brincadeira

Que a charanga tocou a noite inteira

Morre o circo, renasce na lembrança

Foi-se embora e eu ainda era criança.

sábado, setembro 15, 2007

COISAS DO CEARÁ





O primeiro selinho foi concedido a este blogue por gentileza de Marco Santos, editor do excelente "Antigas Ternuras". O segundo saiu por um equívoco meu. Peço desculpas a Marco pela "intrusão" do "thinking blogger AWARD" e aproveito para agradecer a Bené Chaves, de "O Apanhador de Sonhos", por me orientar a "colar" o selinho.








Composta por Guio de Moraes e interpretada por Luiz Gonzaga, dois pernambucanos, a música "No Ceará Não Tem Disso Não" fez sucesso no início dos anos 1950. A letra fala das queixas de um cearense estabelecido no Rio de Janeiro, então capital do país, de coisas que o incomodam naquele lugar e da sua intenção de voltar para a sua terra. Poque "no Ceará não tem disso não". Na forma de um refrão, essas palavras são repetidas ao longo da letra. Não me lembro de que coisas eram essas que aconteciam no Rio e não no Ceará, na visão do meu conterrâneo (tinha 8 anos quando a música foi lançada, tendo me ficado na memória apenas o refrão) e não me dei ao trabalho de pesquisar a composição, por achar desnecessário para o propósito deste texto. Porque lá no Ceará existem coisas que parecem ser exclusivas daquela terra. Como se diz, ao falar em futebol, que há coisas que só acontecem ao Botafogo.

Ora, imaginem um lugar onde o Sol foi vaiado numa manhã, me parece, da década de 1940. Não é uma invencionice, um produto do imaginário anedótico cearense, mas um fato real. Inspirou, inclusive, uma peça de um teatrólogo de lá. Durante três dias choveu sem parar em Fortaleza, inibindo a aparição do sol. No quarto dia, ao alvorecer, uma pequena multidão se reuniu na Praça do Ferreira, no centro da cidade, esperando que o sol, afinal, desse o ar da sua graça. E quando, depois de três dias, ele surgiu, foi recebido sob uma estrondosa vaia.

No feriado de 7 de setembro estava em Fortaleza. Perto do fim da tarde fui com um amigo à orla marítima, conhecida por Beira-Mar, talvez o point mais frequentado da cidade, repleto de restaurantes e bares, para conversarmos embalados por uma cerveja amiga. E foi no meio da conversa que ele me informou que ali perto de onde estávamos existe uma praça dos estressados e me convidou pra irmos até lá, depois que findássemos o bate-papo.

Pois é, em Fortaleza existe uma praça dos estressados. No duro, no duro, não é uma praça, mas um pequeno local, saindo um pouco do calçadão, com alguns bancos, de frente para um restaurante, a poucos metros da praia. Uma placa grande pendurada num poste indica que ali é a "Praça dos Stressados" (assim grafado), com um esboço de um desenho de uma boca sorrindo, uma frase "caminhe sorrindo" e a informação de que o local é mantido por um grupo de estressados. Conforme o meu amigo, os "stressados" , cujo número vem aumentando dia a dia, se reúnem todas as manhãs ali na "praça", depois de fazerem o Cooper. Chegam até a medir a pressão arterial, decerto com o aparelho respectivo levado por algum deles (provavelmente um médico).

É, tem dessas coisas o Ceará.


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UMA MISTURA QUE NÃO DEU CERTO


"O Labirinto do Fauno" (El Labirinto del Fauno/2006), recém-lançado em DVD, passa-se na Espanha de 1944, quando a Guerra Civil Espanhola já chegara ao fim com a vitória das forças franquistas. Um grupo de guerrilheiros ainda opõe resistência numa certa região do país e para combatê-lo encastela-se no local uma milícia comandada pelo endemoninhado capitão Vidal (Sergi López). O diretor mexicano Guillermo Del Toro, também autor do roteiro dessa co-produção entre a Espanha e seu país, achou por bem não abordar apenas esse foco temático. Talvez por entender que o tema já tivesse sido muito explorado, ou pela pretensão de fazer algo novo, diferente, introduziu no roteiro um conto de fadas, com a presença de um fauno, que mantém um, digamos, relacionamento com a menina Ofélia (Ivana Baquero), enteada do capitão. E o filme alterna cenas da vida real com cenas do conto de fadas vivido pela garota, com a pretensão de mostrar, igualando-os, os horrores da guerra (embora já encerrada) com os da fantasia. A mistura não deu certo. A questão não é a opção do diretor-roteirista, mas a forma por ele proposta. Não é crível a presença de personagens de um conto infantil (no caso do fauno, mitológico) fazendo parte da realidade, como se o fauno e um homem horrendo, sem olhos, fossem humanos tanto quanto os personagens do outro lado de labirinto. (Aliás, a presença de um labirinto naquela região já é uma forçação de barra.) Seria mais verossímil que as situações vividas por Ofélia fossem fruto de sua imaginação estimulada pela excessiva leitura de histórias infantis, ou de um sonho-pesadelo. Não é o que acontece, e o filme chega quase ao ridículo quando mostra o capitão no labirinto, presenciando o encontro entre Ofélia e o personagem sem olhos, que exige que ela lhe dê em sacrifício o irmãozinho recém-nascido que carrega nos braços e com ele quer fugir daquela região. Da forma concebida por del Toro, "O Labirinto do Fauno" está longe de ser o grande filme que ele está convencido de ter realizado, como afirma, jubiloso, nos "Extras" do disco.

domingo, setembro 09, 2007

O PRISIONEIRO

Este conto foi aqui publicado em 12.04.05. Faz parte do meu livro "Não Enterrarei Os Meus Mortos", editado pela Fundação José Augusto, de Natal, em 1980.
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Eu tinha dormido mal na noite anterior. Por sorte era um sábado, assim eu podia recuperar as horas de sono perdidas. Então, pedi à minha mulher, quando ela se levantou, que trancasse a porta e jogasse a chave pela fresta. Pedi também que depois que as crianças tomassem o café, fossem levadas para passear. Ela fazem muito barulho e não devia ser perturbado. Eu ainda não estava dormindo, ouvi nitidamente a chave ser passada e atirada para dentro do quarto. Ainda ouvi algum barulho das crianças e a advertência da minha mulher de que não deviam perturbar o sono de papai. Pouco depois não ouvi mais nada, então adormeci de vez. Já passava das onze quando acordei. Ainda permaneci deitado uns dez minutos, depois me levantei e me encaminhei para o banheiro. De volta ao quarto, troquei de roupa e calcei os sapatos. Eu cantarolava, estava de bom humor, com o sono em dia e um banho reparador. Estava em forma para a cervejada dos sábados, com um grupo de amigos. Já passava das doze, tinha que me apressar, eles já estariam me esperando. Corri para a porta, me abaixei para apanhar a chave e não a achei por ali. Podia ser a pressa, que nos cega os olhos nessas ocasiões. Sofreei a ansiedade e, lentamente, procurei a chave pelo quarto inteiro. Até debaixo dos móveis esquandrinhei. Babau. Pensei: talvez sonhasse que a chave fora atirada pela fresta da porta, como havia pedido à minha mulher. Quem sabe ela não a tivesse guardado, no caso de precisar retirar alguma coisa do quarto? Ia ser isso. Então, chamei minha mulher. Ela custou a me ouvir, mesmo que gritasse a ao mesmo tempo batesse na porta, pois as crianças faziam barulho e, ainda por cima, o televisor estava ligado. Eu lhe perguntei se havia ficado com a chave, porque não a encontrava. Ela respondeu que jogara a chave pela fresta, do jeito que lhe recomendara. Bem, aqui no quarto é que não está, disse um pouco nervoso. Já procurei embaixo da cama, do guarda-roupa e do penteador, já procurei pelo quarto todo e nada. Pois eu fiz do jeito que você mandou, ela tornou a dizer. A gente era capaz de passar o dia nesse puxa-encolhe, eu dizendo que a chave não estava no quarto, ela repetindo que a havia jogado pela fresta. O certo era providenciar para sair dali.
Então eu lhe pedi que experimentasse outra chave. Ela se afastou, com pouco voltou com outras chaves, que passou a meter na fechadura. Nenhuma serviu. Sugeri que tentasse com as chaves do vizinho. Enquanto isso, imaginava uma maneira de sair. Através das duas janelas - a do quarto e a do banheiro - era impossível, por serem cercadas por uma grade de ferro, externamente. A não ser que se derrubasse a grade de uma das janelas, mas isso resultaria numa solução apenas parcial, já que eu conseguiria sair, mas, com a porta fechada, continuaríamos sem manter ligação com o quarto. A minha mulher reapareceu com um molho de chaves, experimentando-as, sem êxito. Já começava a me enervar. Por desencargo de consciência, dei outra busca minuciosa. Em vão. A minha mulher também estava se enervando e ameaçou surrar as crianças, se continuassem a fazer zoada. Lhe pedi que procurasse manter a calma, para não complicar ainda mais a situação. Foi aí que me lembrei do revólver. Ora, por que não tinha pensado nele antes? Com um tiro ou dois, arrebentava a porta, como vi milhões de vezes no cinema. Eu guardava o revólver no meu escritório, numa das gavetas do birô, trancada, fora do alcance das crianças. Pedi à minha mulher que me desse ele através da janela, mas depressa ela apagou o meu fogo, me lembrando que o havia emprestado ao compadre Atílio. É mesmo. O compadre Atílio teve que fazer uma viagem inesperada e me pediu o revólver. Já nem me lembrava mais.
As horas voavam. Os amigos já estavam reunidos em nossa mesa cativa. Há muitos anos nos reuníamos naquele bar, frequentado por pessoas que gostavam de uma boa música. Cantávamos, batíamos belos papos, saíamos com disposição para enfrentar os cinco dias chocos que tínhamos pela frente. Não fosse por esses momentos felizes, aguardados ansiosamente, minha vida e a dos meus amigos (e de muita gente, creio) perderia toda a motivação. Por aí se vê que não devia estar gostando nem um pouquinho da condição de prisioneiro. A mulher e as crianças estavam almoçando. Não tinha um tico de fome, só queria sair dali e continuava a bolar planos de fuga. Não podia nunca supor que, além da minha mulher, a nossa empregada estava preocupada com a minha prisão e até chegara a ter uma idéia, que comunicou a sua patroa. A mocinha pensou logo no Homem de Aço. Esse tal era um tarzan que estava se exibindo na cidade, capaz, segundo a publicidade, de arrastar um jipe desses antigos e partir um bloco de pedra com as mãos, além de outros prodígios de força física. Para a nossa empregadinha, no homem estava a solução, e o pior é que a minha mulher aceitou a sugestão. Foi duro convencê-la do trabalho que seria localizar o Homem de Aço e que, depois de tudo, ele podia achar uma humilhação ser chamado para botar abaixo uma simples porta.
Pouco depois, o meu vizinho apareceu com uma faca e um martelo. Ao chegar em casa, a mulher lhe contara sobre mim. Um seu conhecido tinha ficado uma vez preso num quarto e alguém abrira a porta com o auxílio de uma faca e um martelo. Vamos ver se dá certo com você também, ele me disse. Apenas por polidez, eu lhe pedi que não se incomodasse, mas ele disse que não era incômodo nenhum me ajudar a sair da enrascada e que estávamos no mundo para nos ajudarmos mutuamente. Taí um cara raro hoje em dia. Fiquei envergonhado por não ter me esforçado para que nosso relacionamento nunca tivesse ido além de um bom dia. Talvez me achasse um grandessíssimo besta, enfurnado em casa ao voltar do trabalho, a cara colada nos livros, em vez de fazer amizade com os vizinhos. Tinha toda a razão de ficar lá na casa dele, se divertindo com a minha sorte, e, no entanto, estava ali suando para abrir aquela porta. O som do martele batendo no cabo da faca repercutia no quarto e eu pensava numa maneira de me penitenciar, por ter desprezado a amizade daquele vizinho. Dagora em diante ele seria um dos amigos que se sentariam à nossa mesa aos sábados, à qual só têm acesso as pessoas por nós escolhidas rigorosamente. E nem seria necessário que ele partilhasse de nossos gostos e de nossas idéias, ele só não participaria de nossos encontros se não quisesse.
Outros vizinhos tinham também deixado suas casas e estavam ajudando o homem, na base de sugestões e no revezamento das marteladas. O corredor devia estar cheio de gente. Pelo tom de voz das pessoas, dava para sentir que elas estavam tensas, tanto quanto eu. Quando finalmente a porta abriu-se, ouvi um grito uníssono de alegria, mais ou menos como acontece quando a energia elétrica retorna aos lares à noite. O meu vizinho escancarou a porta e uma rajada de vento invadiu o quarto, como a anunciar a chegada da liberdade. Minha mulher caiu nos meus braços, as crianças me fizeram festas, os vizinhos também me abraçaram. Eu não disse uma palavra, nem esbocei o menor gesto de retribuição àquelas efusões de carinho. Parecia uma estátua, de tão emocionado.
Natal, 1978.