domingo, abril 25, 2010

"As Corujas" - Conto de Moreira Campos (*)



Ele conversa muito consigo mesmo, repete-se, os olhos no chão e metido no dólmã de brim listrado, os pés redondos nas alpercatas. Resmunga, insistente. Fecha as janelas do velho necrotério. Apanha os pedaços de lona e, com eles, cobre os mortos sobre a lousa. Deixa-lhes apenas os pés de fora. A mulher sem chinelas, com sangue coagulado entre os dedos abertos; as grandes botas gastas e de cadarços do alemão andarilho, que amanheceu morto no oitão do armazém da praia, onde se alojara: o enorme saco e o livro de impressões, folheado por muitos dedos, foram recolhidos à delegacia. É preciso cobrir os mortos, proteger-lhes as cabeças. As corujas descem pela clarabóia. Têm voo brando, impressentido, num cair de asas leves, como num sopro de morte. De repente, dá-se conta de sua presença, das asas de pluma sem ruído. Alteiam-se e pousam sobre o peito dos mortos, arranhando-lhes os olhos parados, que fulgem na noite, divididos no meio.
- Xô, praga!
Os pedaços de lona ficam dobrados a um canto da sala escura, e ele os puxa sempre, curtos, deixando à mostra os pés inertes. Indispensável fazê-lo; depois fechar a luz triste da lâmpada, que desce pelo fio longo com teias de aranha. O facho da lâmpada de pilhas ainda percorre o teto de travejamento antigo. Crescem e oscilam as sombras: as botas de cadarço do alemão contra a parede - umas botas de muitas viagens. As corujas rasgam mortalha a noite toda na copa das altas árvores do terreno. O facho de luz tenta a densidade das folhas, corre cinzentos telhados, passa pela torre da capela, detém, ao longe, na janela de vidro do nosocômio. Em qualquer parte, na noite, estarão as corujas. Elas rasgam mortalha, agourentas, cortam o silêncio, sacudindo a vigília dos doentes. Recolhem-se, de dia, ao sótão da capela, onde pegam os ratos, que guincham nas suas garras. Necessário subir ao sótão, desfazer-lhes os ninhos. Falará com Irmã Jacinta, diretora do nosocômio, quando ela vier para a ala dos indigentes, ativa, tilintando as chaves no bolso do hábito. Ela mandará que Antero, jardineiro, trepe ao sótão. Ele é moço e divertido. Torcerá o pescoço das corujas, com os cabelos cheios de teia de aranha, e as atirará ao pátio do alto da torre, pilheriando com as enfermeiras. É preciso exterminar as malditas, que rasgam mortalha na noite, enquanto o facho de luz as procura na sombra densa das árvores:
- Xô, praga!
Resmunga, conversa sozinho, repete-se. Torna a experimentar as trancas das janelas, teima em ajeitar os pedaços de lona, que modelam saliências rígidas. O pedaço de lono do alemão ficou curto como uma camisa: têm presença apenas as botas. Resmunga. Se pudesse, ele próprio poria uma teia de arame na clarabóia. Já falou a Dr. Joca, que ele trata por você, porque foram criados juntos, e um xinga o outro. O bisturi do Joca corta sem pressa, profissionalmente. Luvas ensaguentadas, bigode branco amarelecido pelo fumo, ele apanha o cigarro com a boca no cinzeiro sobre o peitoril da janela. Secciona pedaços:
- Leva o balde.
O velho o recolhe, e conversa consigo mesmo, o corpo atarracado mal contido no dólmã de mescla.
Quando o homem que chegou do interior e se hospedou no quarto da pensão veio fazer velório ao corpo descarnado do filho, ele lhe deu a lâmpada de pilhas e o advertiu para as corujas. Elas desciam pela clarabóia, mesmo com a luz da lâmpada. Era preciso manter as velas acesas nos castiçais. Só assim as desgraçadas não vinham: temiam queimar as asas nas chamas. Ficavam rasgando mortalha no alto das velhas árvores ou na torre da capela. Sem a presença das velas, elas surgem sempre, impressentidas, como num sopro de mort: alteiam-se leves, pousam sobre o peito dos mortos e com o bico arranham-lhes os olhos, que fulgem parados e indefesos na noite.

(*) O cearense José Maria MOREIRA CAMPOS (1914-1994) é considerado um dos melhores contistas brasileiros. Alguns de seus contos estão traduzidos para o inglês, o francês, o italiano, o espanhol e o alemão. Publicou sete livros de contos: Vidas Marginais (1949), Portas Fechadas (1957), As Vozes do Morto (1963), O Puxador de Terço (1969), Os Doze Parafusos (1978), A Grande Mosca no Copo de Leite (1985) e Dizem que os Cães Veem Coisas (1987). E o livro de poesia, Momentos, de 1976.

- Este conto faz parte da coletânea Contos Escolhidos de Moreira Campos, edição da Imprensa Universitária da Universidade Federal do Ceará, 1971.



domingo, abril 18, 2010

CINE CANINDÉ

Foto de uma sessão do Cine Canindé.
Fonte: kanindecultural.jmdo.com/



Ficava na praça da Basílica (o nome legítimo da praça não lembro, mas era por essa denominação que ela era conhecida). Do lado esquerdo, a duas casas da esquina, onde ficava o bar do Seu Zuil, administrado pelo irmão Nenen. Cine Canindé. Ali começou o meu amor pelo cinema, vendo seriados, banguebangues, Jim das Selvas (com o ex-Tarzan Johnny Weissmuller) e outros gêneros de filme. E me deparei, nas sessões de quarta (ou quinta), sábado e domingo com alguns espectadores curiosos. Uns chatos, como aquele que via o filme lendo as legendas em voz audível , nem sempre usando a pronúncia certa das palavras, como quando dizia dolares. Havia a senhora que morava na casa vizinha e entrava no cinema com o soar do gongo, conduzindo uma cadeira. Alguns que sempre ocupavam a mesma cadeira. E vez por outra um menino tinha visto o filme em Fortaleza, e, ao revê-lo no nosso cinemazinho (provavelmente como uma forma de gabolice por ter conhecido um cinema da capital), antecipava o que ia acontecer numa cena.
Nos créditos da maioria dos filmes aparecia o nome de João Branco, como o responsável pelas legendas. Esse nome era uma garantia para os meninos da boa qualidade do filme. Ah, a ingenuidade, a inocência infantis que os adultos perdem e, por vezes, lhes fazem tanta falta!
A figura mais curiosa, no entanto, do Cine Canindé era o seu proprietário, César Campos. O homem mais rico da cidade. Além do cinema, possuía a melhor loja de Canindé, um posto de gasolina, um bar-restaurante, fazenda, imóveis. Antes de começar a sessão, ficava na escada que dava acesso à sala de projeção. Sozinho, olhando para frente, talvez pensando em negócios. Numa hora invariável da manhã, vinha caminhando da loja até sua casa, que ficava depois da nossa, para almoçar. Caminhava pelo meio da rua, sem cumprimentar ninguém. Talvez um ou outro conhecido, com um leve balançar de cabeça. As pessoas o tinham por orgulhoso, mas hoje creio que não o era. Esquisitão, sim. Ou tímido.
Sua parca comunicabilidade causou, nos primeiros tempos de casado, um sério incômodo em Dona Julinha. Ela chegou a se queixar a um irmão e sócio de César na loja, pedindo-lhe ajuda. (Chico Campos era um antípoda de César. Comunicativo, espirituoso e de uma cortante ironia para com os desafetos.) Chico atendeu ao pedido da cunhada e parece que, depois da conversa que tiveram, o comportamento de César com a esposa melhorou.
Mas, apesar do seu jeitão, César tinha alguns amigos, entre os quais o meu pai, que sempre falava bem dele (no futuro ocorreria um estremecimento nas relações entre os dois, acho que por questão de negócios), até revelando uma faceta insuspeitada do seu temperamento: o senso de humor. Ele tinha um amigo que nascera aqui em Natal, mas chegara a Canindé vindo de outra cidade do Ceará, com o qual ia toda tarde tomar cerveja no bar do Maciel. Sempre a uma determinada hora, como ocorria quando vinha para casa almoçar.
Enquanto morei em Canindé, nunca recebi um cumprimento dele. Tudo bem, era uma criança e se César não cumprimentava a maioria dos habitantes adultos, não iria fazê-lo com uma criança, ainda que fosse filha de um dos seus poucos amigos. Mas o Chico, por exemplo, me cumprimentava e muitos outros homens também.
Mas uma noite, eu já estudando em Fortaleza, entrei numa farmácia, e qual não foi o meu espanto ao encontrar ali o César. Usava um terno (branco, se não me engano), e talvez tivesse vindo de um cinema. Ou indo. Estava recostado ao balcão, esperando Dona Julinha ser atendida. Ao me ver, balançou a cabeça e esboçou um sorriso.

domingo, abril 11, 2010

A MULHER QUE PASSA

Foto: via Google


A janela do quarto está aberta, não muito, e pela fresta sopra um ventinho agradável, e ele sente prazer no ventinho tocando o seu corpo, refrescando-se após um dia de forte calor. A rua lá em baixa está deserta e silenciosa. Um carro trafega lento, sem ruído, como se respeitasse aquele silêncio. Passa muito da meia noite. Estivera lendo por muito tempo, sentiu a vista cansada e pôs o livro de volta à estante. Sem sono, foi para a janela. Sentado com um radinho, o vigia de uma clínica médica é o único habitante da rua.
Vez ou outra ele se demora a observar a luzinha de uma antena, trepada no morro, brincando de acender e apagar, acender e apagar. A espaços meio longos, um carro passa pela outra rua.
De repente, lembrou-se da mulher. Fora pela manhã, no centro da cidade. Encontrara um amigo, sentado em um banco. Começaram a conversar. Os assuntos costumeiros de quando se encontravam: cinema, literatura, um pouco de futebol, e - como um intruso, cuja presença se quer evitar, mas não se consegue - a situação política. Depois apareceu um amigo comum, que não quis sentar. Estava apressado, pouco ficou, foi embora junto com o bonezinho de uma marca comercial. O outro amigo, que duas vezes já olhara o relógio, o deixou quase em seguida.
Sozinho, estendeu os braços no encosto do banco e sem nada em que pensar, pôs-se a observar as pessoas que passavam, quase todas com pressa. Às suas costas o barulho de ônibus e carros. Em dado momento virou o rosto para a direita. Diferentemente da maioria dos transeuntes, uma mulher caminhava em passos lentos, como se estivesse passeando. Talvez por querer se concentrar em alguma coisa, permaneceu nessa posição, observando a mulher vindo em sua direção. E foi então que ocorreu o inesperado. Ao chegar perto dele, a mulher o olhou. Não como quem olha por um segundo para uma pessoa e logo desvia o rosto. O olhar da mulher foi um pouco demorado (pareceu-lhe até que ela tenha parado, mas, talvez, fosse mais um desejo seu que isso tivesse acontecido). Demorado e penetrante. E ele sustentou a firmeza daquele olhar, não desviando o seu. Chegou a cogitar de abrir um sorriso, mas se conteve. Afinal ela virou o rosto e seguiu a caminhada, sempre em lentidão. Vendo-a se afastar, disse para si mesmo, se ela se virar, eu vou ao seu encontro. Mas a mulher seguiu em frente. E o seu pensamento passou a se concentrar naquela estranha. Uma mulher não muito nova, uns trinta e cinco anos, um pouco mais, um pouco gorda, mas o corpo bem-feito, o rosto bonito, a pele alva, cheia de cor - e aquele olhar verde (azul?) que lhe ofereceu.
Permaneceu por muito tempo ali. Não sabia por que, mas tinha a certeza de que a mulher voltaria, de novo o olharia daquela maneira, e ele a convidaria a sentar. Conversariam e depois iriam almoçar. Ficou por muito tempo esperando por ela, em vão. Afinal, levantou-se e foi para um bar próximo tomar uma cerveja, para aliviar-se do calor.
Olha para a calçada da clínica e só vê a cadeira do vigia. Deve ter entrado para ir ao banheiro. Naquele momento a rua está inteiramente deserta. Continua sem sono, mas resolve ir se deitar. E, rápido, lhe vem a esperança de, se dormir, a mulher lhe aparecerá em sonho, pois sente que não a encontrará outra vez .

domingo, abril 04, 2010

RASHOMON (1950)



Para lembrar os 100 anos do nascimento do diretor Akira Kurosawa (1910/1998), em 23 de março, estou publicando, com pequenas alterações, um artigo sobre Rashomon, que saiu neste blogue já há algum tempo. Ei-lo.


De forma admirável, Rashomon expõe e analisa a fragilidade moral do ser humano, quando posto diante de uma situação que exige a coragem de assumir a verdade de um fato. No incidente envolvendo a esposa, o marido e o bandido, durante um passeio do casal pela floresta, vê-se que quando essas pessoas prestam depoimento à autoridade policial, cada uma o faz apresentando uma versão diferente do fato, visando a não se comprometer. Impossível saber qual é a verdadeira, pois cada um dos depoentes falseia o ocorrido, para tirar proveito dele. Nem na versão do marido morto pode-se confiar, porque ela é divulgada por intermédio de uma pessoa viva - um medium. Ou seja, alguém suscetível às fraquezas do ser humano.
Rashomon, assim, seria uma obra totalmente cética em relação à natureza humana, ao revelar que o homem carece da disposição de assumir a verdade sobre uma ocorrência em que estiver envolvido. Se digo "seria" é porque, depois de revelar os depoimentos, o filme, no final, faz um sinal otimista, um sinal de esperança na recuperação do homem. E nada melhor que esse aceno seja feito pelo lenhador, que, mesmo já com muitos filhos, resolve adotar o recém-nascido deixado pela mãe num imóvel desabitado, do qual um vagabundo roubara os panos que o cobriam. É bom dizer, aliás, que esse final otimista foi elaborado por Kurosawa e seu corroterista Shinobu Hashimoto. Ele inexiste nos dois contos (do escritor Ryonosuke Akutagawa, que cometeu suicídio aos 35 anos) em que o filme se baseia. Com 40 anos na época, Kurosawa ainda podia ter ilusões em relação ao homem. Se o filme fosse feito muitos anos depois, tenho cá minhas dúvidas que ele o encerrasse dessa maneira.
Saindo do aspecto temático, Rashomon se apresenta como uma mais do que bem-sucedida combinação de fatores que o tornam um filme extraordinário. As imagens das cenas na floresta não contêm apenas a beleza plástica, como aquela em que o sol aparece por entre as árvores. Além da beleza plástica, elas fazem inserir um elemento poético, aliado a um quê de onirismo: o marido conduzindo pela rédea o cavalo, em que a mulher, usando um chapéu e um véu brancos, está montada.
A música de Fumio Hayasaka, que, segundo o crítico Antônio Moniz Vianna, é inspirada em muitas passagens do Bolero, de Ravel, é outro ponto a destacar, sobretudo quando acompanhada pelo toque de tambores.
No tocante ao comportamento do elenco, cabe uma menção especial o desempenho dos três atores centrais. A atuação extrovertida de Toshiro Mifune (que, este ano, estaria completando 90 anos), no papel do bandido, a qual privilegia os gestos exuberantes e o gargalhar constante, contrapõe-se à de Masayuki Mori (o marido). É uma interpretação trabalhada muito mais na expressão facial, compondo uma máscara muda e gélida, que pode exprimir a ironia e o desprezo em relação à mulher. Quando a esta, é vivida por Machiko Kio, cujo momento alto se dá quando ela leva as mãos crispadas aos olhos, para não ver a expressão de desdém do marido. Uma imagem em que se casam a beleza visual do close e a dramaticidade da interpretação.
Ganhador do Festival de Veneza e do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro (ambos os prêmios em 1951), Rashomon abriu as portas do Ocidente para Akira Kurosawa, que, com os filmes seguintes, consolidou o seu nome como um dos maiores diretores do cinema.


MEUS KUROSAWA PREFERIDOS

Rashomon (1950)
Viver (1952)
Dersu Uzala (1975)
Kagemusha (1980)
Os Sete Samurais (1954)
Sonhos de Kurosawa (1990
Homem Mau Dorme Bem (1960)
Ran (1985)