quarta-feira, maio 31, 2006

CONTO DE BARTOLOMEU CORREIA DE MELO

Outra vez este espaço é ocupado, para enriquecimento dele, com a ficção do contista e poeta potiguar Bartolomeu Correia de Melo. A exemplo do anterior, o conto hoje publicado faz parte do livro Estórias Quase Cruas (Edições Bagaço, Recife/2002).
ESTÓRIA PRAIEIRA
Na noite tão preta, como carvão,
a gente falava de assombração!... (Ascenso Ferreira)
MARÉ enchente. Boca-de-noite ventosa, sem lua pra espiar. Alpendre de palha, chão de areia, penca de netos brincando de anel. Ela, vindo de dentro, trazia a luz, botando com agrado cada bênção pedida. E, quando se dispôs a fazer renda, logo lhe pediram alguma estória.
Encovando a magrez das bochechas, acendeu cachimbo na lamparina. Demorosa, ajudada em curtos gemidos, a velha se acocorou diante da almofada. E pôs-se, ainda risonha, ajeitando linhas e alfinetes, como arrumasse antigos lembrares.
Na vez do mexericar dos bilros, de pronto que minguou o converseiro gasguito. E aquele frangido contente do rosto foi-se foi-se desmanchando enquanto falava:
"Rezam as crenças que, com céu limpo e maré cheia, na lua-nova de agosto, coisas desconformes acontecem. No meiar da noite, algum cachorro praiero começa uivando malagouros... Com pouco, cruzeiro do céu vermelhece, como cinco brasas atiçadas. Cerração temporã, ninguém sabe donde vinda, apaga as estrelas restantes. E friagem trevosa engole o sossego da praia. Maresia se torna entojada, que nem catinga fria de defunto. Mais e mais, a toada do mar vai semelhando fundo queixume, como se lhe doesse a quebração... Vento sueste encorpa gemidos que lembram fanhas cantorias de incelença. Ali-acolá, vozes de galo se espicham, ecoando como gritos de socorro. Então, assim misturados por algum malencanto, tais escutares vão-se virando em latomia de chorosa multidão. E aí...
Naquilo, ventinho tranquilo amofinou o lume. No empardecer decorrido, fala dela suspensa, quase ninguém respirava. Mas a chama logo endireitou, aquietando a aflição dos entreolhares. Agravando a fala, a rendeira seguiu contando:
"Diz-que, nessa hora, fosforejando no aceiro das ondas, passa a Procissão dos Afogados - coisa por demais medonha! Enorme rebanho de almas penadas, cada qual recarpindo piores desditas. Malassombro de triste feiúra, por muitos apenas ouvido, mas somente avistado pelos bem-merecidos. Ainda assim, aquilo enxergado, ninguém nunca conta a ninguém, mode castigo de morte agoniada."
Peteleco dos bilros desapressando, enquanto os dizeres avexavam os pensares.
"No quando de tal aparição, pedida com fé e coragem, qualquer boa-graça será alcançada. Porém, aquele cristão vidente que, nalguma careta verdosa e inchada, enxergue finado conhecido, se obriga a cumprir piedoso preceito. De pronto, pra riba daquela visagem, avoar punhado de areia seca, gritando a jaculatória que, em vida, o infeliz mais devotava. Isso feito, sem dali arredar-se, ajoelhado em sincera vontade, se deve esperar o sinal. E carece de conhecer qual seja tal aviso..."
De repente, molhando na língua do fura-bolo, mais que ligeira, pegou no cuspe a pulga que lhe mordia a canela. Com gosto, trincou a danada na unha, sem perda do fio da estória.
"Na manhecença, encalha na praia um peixe-anjo - bicho bonito e bendito - dando conta daquela salvação. Pois que esse peixe, enterrado com segredo em campo-santo, voga pelo repouso daquele corpo nunca achado. Se bem que, em tal ação caridosa, não resta vez pra nenhum pedido interesseiro. Pois, qualquer pensamento ambicioso será punido por queda em malpenar sem cura; doideira desinquieta que nem as ondas do mar."
- E quando não sabendo da reza? - um maiorzinho se enxeriu de perguntar.
"Sendo assim, em lugar de peixe-anjo, aparece baiacu-espinho - bicho feioso e reimoso - adivinhão de malefícios. Então, diz-que periga daquela pobre alma tomar encosto no cristão vivente, lhe aparecendo em sonho ou sombra, recitando a devida oração. E disso sobejam esquisitas malestórias... - logo atalhou, feita sisuda - Assunto esse, desadequado pra quem de pouca noção!...
Ela sustou os bilros e cuspinhou de lado, que nem botasse ponto final nos contares. Meneando a cabeça, olhava pras bandas do mar. Naquilo parecia soletrando verdades escritas além da escuridão. Tirou friso do cabelo, atiçou o cachimbo e tornou, muito a sério:
"Águas cujos poderam não tiram sedes nem lavam pecados... Sei disso por sabença de minha avó. Quem nelas morre afogado, nelas tendo sepultura, delas nunca aparta seus penares!... - toava malagourosa. Pois que resta sujeito pra sempre a vaguear, pelo sem-fim das praias, nessa agoniada romaria. Mundo arriba, mundo abaixo, chorando a espera incerta dalgum justo que o valha e desobrige dessa eterna desventura..."
No derredor, meninada guardava silêncio escabreado. Nesse quando, ela arrematou:
"Nas ondas, ninguém se afoite, por brinquedo ou vão capricho, fazendo pouco do mar. Em troca de tolerância, quem dele tira sustento lhe presta respeito e resguardo. Quanto a vancês, mijões de rede, abraç das oiças e cuidem num bom conselho! Pois menino malouvido, que pecou por teimosia, também passa em tal cortejo; catingoso e empalemado, roído pelos siris, berrando por pai e mãe. Podem debochar de caduquice, mesmo assim, sempre redigo: "Água, minha gente, não tem zelo nem cabelo!..."
Trocando alfinetes, chupou do cachimbo as derradeiras fumaças. Na calada do alpendre, dava para ouvir o espipocar do sarro. Detrás das baforadas, em cada olhar abismado, avaliou o alcance da estória. E reocupou-se entrançando bilros, como no aguardo dalguma indagação. Mas, nada de nada, ninguém que duvidou. Bem quietinhos, espiavam pros confins da noite; arrupiados nas cócegas do vento, maginando porquês nos resmungos do mar.
Noutras lonjuras, cachorro botou-se a latir penoso.

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