domingo, setembro 17, 2006

O RIVAL

Ia envolvendo os adversários, um remoinho investindo para o gol. Difícil contê-lo - os pés pareciam imantar a bola, que só conseguia fugir deles quando aplicavam falta no garoto. Recurso inútil. Com a potência, que não se imaginava em pernas tão secas, a falta, cobrada por ele, quase sempre resultava em gol. Ele ia se livrando dos pontapés, deixando os adversários para trás, em mais uma brilhante jogada daquele menino, já ídolo da cidade. Foi quando surgiu à sua frente aquele magricela sardento, forasteiro, naquele dia estreando. Neco requebrou rápido o corpo para a esquerda e, ainda mais rápido, passou a bola para o lado direito e assim deixar o garoto perdido, como os outros. Jogada infalível, que os marcadores já conheciam, mesmo assim eram eram sempre burlados. Só que não teve êxito com o estranho. Vivaz e muito ágil, acompanhou a retirada de Neco pela direita, roubou-lhe a bola, driblou-o e saiu jogando. Neco nunca poderia imaginar que o estranho (logo ele) interrompesse a sua jogada, empregando um recurso daqueles. Sua primeira reação foi de pasmo, sem ânimo para perseguir o garoto. A seguir, a certeza da obrigação de lhe dar o troco. Aguardou que ele estivesse com a bola, para tirá-la e aplicar-lhe um drible humilhante. Foi ao seu encontro, mas o menino não perdeu a bola e ainda realizou duas jogadas, que atraíram a atenção de jogadores e assistentes. Tinha passado da conta, pondo no ridículo por duas vezes, e num curto espaço de tempo, o craque da cidade. Neco descontrolou-se, atacou-o a pontapés, prostrando-o no chão. O magrelo se levantou pronto para revidar, os dois chegaram a se agarrar, mas logo foram apartados. Neco espoletado abandonou o campo. Não pensou em outra coisa o resto do dia. Arquitetava diferentes espécies de jogadas, para realizar sobre o forasteiro no dia seguinte. Executou algumas com êxito, mas em muitas outras o adversário foi melhor. Não se aborreceu, senão intimamente, por ouvir elogios ao sardento. E foi se lhe infiltrando devagarinho o medo de perder o monopólio da bola. Decidiu que teriam que atuar do mesmo lado. Justificou a exigência lembrando aquele incidente e, aparentemente, não ligou para as insinuações maldosas.
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Agora eram dois craques do mesmo lado - coitados dos adversários. A cidade foi que lucrou, ganhando aquele outro Neco. Mas o medo de Neco instalou-se definitivo e com o medo o despeito. Quando Adelmar marcava um gol, era o único a não abraçá-lo. Não retribuía os passes que lhe dava Adelmar, que o deixavam em posição privilegiada para golear. Neco ficava prendendo a bola ou passava-a para outro companheiro. Adelmar não demorou a perceber o boicote e a empregá-lo também. Tornaram-se, então, dois jogadores que sabiam se entender com a bola, mas não sabiam se entender. Fora do campo, mantinham-se afastados o mais possível, se acontecia se encontrarem, não iam além de um olá seco, formal.
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Neco recebeu a notícia embasbacado. Se na tarde anterior Adelmar tinha jogado brilhante, como sempre, parece que até mais. Marcara um gol, driblando todo mundo, inclusive o goleiro. De noite o vira na pracinha, conversando animado. Quase não acreditava no que lhe contavam. "Se não tá acreditando, Neco, vamos lá na casa dele".
A mãe de Adelmar não consentiu que vissem o filho. Estava aflita e foi ríspida com os garotos. A irmã, mais calma, explicou que ele estava muito febril, não era aconselhável que lhe entrassem no quarto, naquele momento. Viessem à notinha, talvez ele estivesse melhor. Se Deus quisesse.
A partir daí, Neco começou a pensar na morte de Adelmar. O pasmo inicial dando lugar a uma alegria, que se empenhava em disfarçar. Em presença dos amigos - sozinho, ficava num estado de euforia, ao ponto de quase manifestar-se numa gargalhada.
À noite passou pela casa de Adelmar. Encontrou os amigos sentados no meio-fio, não tinham tido permissão para entrar. Estavam sofrendo com o estado de Adelmar, que talvez não completasse aquela noite. As vozes aflitas atravessavam a porta e janelas fechadas e chegavam cochichadas aos ouvidos dos meninos. Alguém sugeriu saírem, sempre não podiam ver Adelmar. Os demais concordaram, seguiram para a pracinha. A conversa foi só sobre Adelmar, mas driblando a sua enfermidade. Preferiam relembrar suas jogadas maravilhosas, os dribles desconcertantes, a lindeza dos gols. Neco não dava uma palavra, e, no íntimo, se revoltava com os amigos, por incensarem o rival. Com pouco se retirou. Precisava se afastar daqueles amigos que pareciam não lhe reconhecer mais as qualidades de jogador, só faziam louvação para aquele cara de ferrugem. Era bem feito que o forasteiro, vindo de tão longe para roubar-lhe a supremacia da bola, morresse e morresse logo naquela noite. Ele teria que voltar a ser o maior da cidade.
Ao despertar, pensou logo em Adelmar. Nessa alutra, já devia ter morrido. Pulou alegre da rede, asseou-se rápido, engoliu o café. Queria ter a certeza. Saiu rápido, como quando buscava o caminho do gol. Na pracinha, encontrou os amigos, nos rostos o anúncio do fim do rival. Só faltava confirmá-lo com palavras. "Adelmar morreu"? "Não agoura não, Neco". "Quer dizer que melhorou"? "Tá na mesma. Mas ainda há esperança".
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Muita gente na casa de Adelmar. Na rede, a mãe de choro solto, cercada pelas amigas. O choro era acompanhado de gritos e de frases de desespero. Chegava a desviar para si a atenção ao corpo do filho estirado no caixão. As pessoas entravam no quarto, para se revezarem no consolo à coitada, traziam-lhe café e sedativos, que ela atirava longe. Outras se comprimiam à porta e havia as que se retiravam, sem coragem de presenciar a dor da mulher.
Quando Neco chegou, o corpo de Adelmar não estava sendo velado por ninguém. Examinou primeiro o rosto sardento, chupado pela doença. Depois as mãos cruzadas, nos dedos enleado um terço. Finalmente as flores que cobriam os sapatos. Circunvagou os olhos pela sala, a ver se havia alguém observando-o. Todos atentos ao histerismo da mulher. Neco afastou as flores, descalçou os sapatos e as meias, escondeu-os sob as flores. Olhou para os pés descarnados, tocou-os e depressa recuou a mão: frígidos. Mas em seguida tocou-os de novo e dessa vez os apalpou demoradamente e não se conteve em apertá-los nos dedos crispados pelo ódio há muito tempo acumulado. Quando largou os pés, veio o desejo de extravasar a sua felicidade. Como se estivesse sozinho na casa, explodiu numa longa gargalhada, sem despregar os olhos daqueles pés, e tornou-se uma zoadeira só o seu desabafo e o chororô da mulher.
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Conto extraído do meu livro Não Enterrarei os Meus Mortos

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