quarta-feira, setembro 20, 2006

GENTE BOA DE RECORDAR


Talvez seja a idade. É, deve ser. Com frequência, geralmente deitado à espera de o sono chegar, passam pela minha memória pessoas que conheci na minha infância e juventude. Mas só gosto de me lembrar de pessoas boas. Se as más, às vezes, aparecem, não me detenho em recordá-las, para não sofrer de novo algum mal que me causaram. E, para minha sorte, estas já viraram pó. As boas, é claro, também, mas, ao relembrá-las, é como se, de repente, por um passe de mágica, elas voltassem a viver.
Uma das pessoas que sempre me "visitam" é o velhinho Vitorino, cuja figura povoou a minha infância. Pretinho, baixinho, muito pobre, era um homem bem-humorado, com quem valia a pena conviver. O meu pai gostava muito dele. Como esquecê-lo imitando para aquele menino que eu fui o som de um trombone? Ou de expressar no rosto, feito um ator, a diferença entre Juscelino Kubitschek e Juarez Távora, candidatos a Presidente nas eleições de 1955? Ao se referir a Juarez, ele fechava a cara, expunha uma carranca; já com Juscelino se abria num sorriso imenso. E meu pai, sempre que falava no velhinho Vitorino, exaltava-lhe uma qualidade: quando morria alguém da sua condição social, fosse amigo dele, ou não, ele passava parte da noite velando-lhe o corpo. Beleza de pessoa. Coloquei-o num antigo conto, numa pequena homenagem a um grande homem.
Quando cheguei a Natal, conheci o cego Raimundo. Ia quase diariamente ao banco e era sempre recebido festivamente por grande parte dos funcionários. Baixinho, menor talvez do que Vitorino, Raimundo não tinha guia, se movimentando com o auxílio de uma bengala. Às vezes, trazia a gaita (fizera parte, no passado, de um grupo musical formado só de cegos) . Uma das maiores emoções que tive em minha vida foi ouvi-lo uma vez executando a música "Barril de Chope". Falando de chope, cego Raimundo era chegado a uma birita. Tinha vez que chegava até nós naquele estado em que não se devia riscar um fósforo perto dele... Parecia se divertir com a sua falta de visão. "Eu quero é cegar, se o que estou dizendo não é verdade" , era uma das suas tiradas costumeiras. E quando lhe perguntavam se ele conhecia alguém, vinha rápido a resposta: "de vista". Na verdade, identificava as pessoas pela voz. Também o incluí como personagem, mas num romance policial.
E me lembro de Eros. Sim, era esse o nome de um colega. Uma das suas brincadeiras era "dar um papel" para certos colegas, tendo em vista o biótipo deles. Como sabia que eu gostava de cinema (ele também gostava, e, inteligente e sensível, possuía certa visão crítica, embora não conhecesse a técnica e a linguagem cinematográficas) , chegava pra mim e, apontando para um colega, me perguntava qual o papel destinado para ele. Eu confessava a minha incapacidade para a escolha. Ele dava um risinho maroto e mencionava o tipo de personagem destinado àquele funcionário. E quase sempre acertava.
Outra de suas brincadeiras. Ele vivia dizendo que ia fazer uma excursão de navio. Até aí tudo bem. Tanta gente (eu incluído) tem o sonho de um dia viajar de navio. Só que no caso de Eros, a viagem jamais poderia se realizar, as cidades a serem visitadas não eram banhadas pelo mar: Caicó, Campina Grande, Macaíba, por exemplo, para ficar só entre as do Nordeste.
Uma vez pediu carona a um colega para uma festa na AABB, alegando que o seu carro estava na oficina. O colega prontamente o atendeu e pediu informações sobre a localização da casa. Com as instruções na cabeça, à noite foi apanhar Eros. Ao chegar lá, encontrou-o já na calçada com a esposa, morrendo de rir. É que ele morava a poucos passos da AABB. Morreu de um ataque cardíaco, causado pelo esforço empenhado para salvar a filha pequena de se afogar no mar. Tinha pouco mais de quarenta anos.
Vitorino, Raimundo, Eros, pessoas que tornaram a vida mais fácil de ser suportada para quem com eles conviveu.

Nenhum comentário: