sexta-feira, fevereiro 11, 2005

A COMPANHIA DOS ANÕES

"Algumas mulheres gostam de anões. Talvez porque tenham a impressão de ter, ao mesmo tempo, um amante e um filho". (Luís Buñuel)
O anão subiu na torre e começou a tocar o sino. Era o anúncio, divulgado toda semana aos habitantes da ilha, da chegada do avião conduzindo turistas. Em seguida, o anão ressurgia, elegantemente vestido, ao lado do proprietário da ilha. Estirada no sofá, a cabeça apoiada num travesseiro, Emília acompanhava a história que se desenrolava no vídeo. Ela nunca deixava de assistir à serie que a televisão exibia semanalmente. Já pelas novelas não manifestava o mesmo interesse. Uma ou outra a atraía durante alguns capítulos. Até o momento em que (a expressão era dela) o autor começava a demonstrar que estava enchendo linguiça. Quando se convencia disso, abandonava a novela. Na verdade, Emília não pertencia àquela categoria de mulheres, para as quais a televisão serve de eficiente terapia. Talvez porque detestasse a prisão doméstica. Saía diariamente: sozinha, quando o marido estava no trabalho; à noite, com ele.
E, naquele dia, quando assistia a mais uma história da série, ficou sabendo que uma companhia de circo iria se apresentar na cidade, com estréia marcada para o dia seguinte. Nenhuma outra notícia teria o poder de torná-la alegre - poder-se-ia acrescentar feliz - quanto aquela. Se à televisão devotava uma quase indiferença, o circo exercia sobre ela um forte fascínio. De tal modo que não lhe bastava assistir a um ou a dois espetáculos. Quando um circo visitava a cidade, ela o frequentava todos os dias. Seu marido intrigava-se com esse gosto excessivo de Emília, por não lhe parecer um fato normal. Tanto mais estranho por ter-lhe um dia revelado que, em criança, nunca fora a um circo. De todo modo, ele acabou se acostumando à ausência de Emília à hora do jantar, durante a temporada de uma companhia de circo na cidade.
Ao findar o seriado, os olhos de Emília ardiam. Sentira ligeira sonolência durante um trecho da história. Ainda deitada, bocejou e abriu os braços, no gesto de espreguiçar-se. Levantou-se e foi para o quarto. Sentou na cama, perto da mesinha de cabeceira. Pousada sobre esta uma foto colorida de uma criança. Emília fitava o rosto rosado do filho, cuja boca se abria num largo sorriso. E, como sempre ocorria quando se punha a contemplar aquele rosto, seus olhos encheram-se de lágrimas. Deitou-se. Instalara-se um silêncio de casa abandonada. E quase se poderia considerar que, naquele dia, os habitantes daquela casa tinham-na abandonado. O marido viajara, as duas empregadas saíram depois do almoço. Sendo uma tarde de sábado, a rua estava mais sossegada do que o habitual. Emília recordou, rapidamente, partes da história a que acabara de assistir. E, como se a memória obedecesse ao fascínio que sobre ela exercia a figura do anão, predominavam as lembranças das cenas em que ele aparecia.
Do seriado, Emília saltou para o circo, que a televisão anunciara mais de uma vez durante os intervalos. Fazia mais de ano que o último circo se apresentara na cidade. À medida que o seu pensamento era dirigido para o circo, que iria estrear no dia seguinte, os olhos foram se esvaziando das lágrimas. A sonolência retornou mais forte, estimulada pela tranquilidade da tarde, que começava a cair. E ainda pensando no circo, Emília adormeceu.
Os dois outros palhaços sofriam com as confusões em que os envolvia o anãozinho. Na tentativa de apanhá-lo, chocavam-se um com o outro e desabavam no chão. E era tarefa difícil pegá-lo, dada a sua agilidade, privilegiada pela diminuta estatura. O anão passava por entre as pernas dos companheiros, saltava por sobre as suas cabeças, quando eles se preparavam para se levantar, depois de uma queda. Infernizava a vida dos dois, provocando gargalhadas na platéia. Emília também acompanhava a diversão dos demais espectadores. Mas não era apenas alegria
o que sentia. Havia também ternura, afeição, talvez amor. Ou paixão. O anãozinho do circo seduzia-o tanto quanto o seu irmão da tevê. Só que, enquanto este nunca poderia fazê-la realizar o desejo de estabelecerem um contato real, aquele do picadeiro pudera ensejar esse contato por que Emília lutou desde o dia da estréia do circo. As gargalhadas continuavam a espocar com as estrepolias feitas pelo "Pontaria". "Pontaria, se eu te agarro, eu te mato, projeto de homem", gritava um dos palhaços. A Emília não interessou conhecer a origem do apelido. Supunha que fosse em razão do olho baixo e semifechado - cacoete próprio dos atiradores, ao mirarem o alvo a ser atingido. E não o chamava assim, mas por Ulisses, seu nome de batismo.
Repetindo a rotina de todas as tardes, Emília aguardava, no carro estacionado em lugar deserto, a chegada de Ulisses. O toca-fitas transmitia músicas românticas. Em dado momento, avistou caminhando, apressadamente, em sua direção, aquela figura de pernas arqueadas e que, à distância, parecia bem menor. Ele foi chegando, abriu, rapidamente, a porta e lhe disse um seco olá. Emília achegou-se para perto dele, beijou-o, em seguida deu marcha ao carro.
Emília soergueu-se na cama e ficou a contemplar Ulisses, que ressonava virado para ela. Parecia mais cansado do que nos outros dias. Logo que terminaram o demorado ato sexual, ele caíra em profundo silêncio, como se pretendesse fugir à conversa que, habitualmente, tinham depois do amor. O cansaço, enfim, o venceu, então virou-se e adormeceu de imediato. O abajur da mesinha continuava aceso. Emília aproximou o corpo do de Ulisses, para examinar-lhe o rosto mais minuciosamente. Fitava aquele rosto, não mais como uma amante, mas movida por um irresistível sentimento maternal. A mão pousou nos cabelos desalinhados e começou a fazer-lhes carícias. O contato da mão nem de leve perturbou o sono de Ulisses, que dormia como uma criança - uma criança a emitir um ronco contínuo e ruidoso. A idéia lhe veio de repente. Com um certo esforço, Emília ergueu um pouco o corpo de Ulisses, para colá-lo ao dela. Conseguiu apoiar a cabeça dele entre os seios. E passou a embalar aquele corpo de criança, que tantas vezes cavalgara sobre o dela, penetrando-a com a potência de um corpo normal. E enquanto o embalava, ia cantando, baixinho, para não atrapalhar o sono dele, antigas canções de ninar, que nunca mais poderia cantar para uma criança nascida do seu ventre. As lágrimas sobrevieram: inevitáveis. Caudalosas, inundaram as faces e os soluços terminaram por sobrepujar as cantigas. Ela deixou o pranto soltar-se, como algo bem-vindo, porque sempre o estivera esperando.
Conto extraído do meu livro "O Tempo Está Dentro de Nós" , edição de CLIMA - Artes Gráficas e Publicidade, Natal, 1989. Pequenas alterações de linguagem foram feitas, ao ser aqui publicado. O conteúdo foi preservado.

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