terça-feira, fevereiro 22, 2005

IMPULSO



"Me diga uma coisa. Em todos os anos que exerce a profissão, o senhor nunca sentiu um impulso de cortar a garganta de um cliente"?
Como se a pergunta tivesse sido feita a mim, interrompi a leitura da revista e me virei para o lado de onde soara a voz. Ocupava uma cadeira num cantinho apertado que se situava entre a parede fronteira à porta do salão e a cadeira do barbeiro. Fora a única cadeira livre que encontrei ao chegar ao salão. Era um sábado de manhã, o dia em que as barbearias ficam superpovoadas, por causa daqueles clientes - a grande maioria - que não podem frequentá-las nos outros dias da semana. Aquele sábado não era diferente, com muitos clientes espalhados pelo salão, uns conversando, outros lendo, enquanto os barbeiros apressavam-se para acabar um corte de cabelo, a fim de poderem iniciar o do freguês que esperava a sua vez.
Aquela estranha pergunta fora feita pelo cliente que estava próximo a mim. O barbeiro pareceu-me ter ficado perturbado com a pergunta - provavelmente a ouvia pela primeira vez em todos os seus anos de profissão - pois interrompeu o trabalho , e, com a tesoura na mão, respondeu (ou melhor, perguntou ao cliente) : "Doutor, por que o senhor me faz uma pergunta dessa?" Já o cliente, um senhor que devia estar beirando os sessenta anos, que perdera mais da metade do cabelo do alto da cabeça e tinha o dos lados embranquecido, não apresentou a mínima reação de desconforto, quem sabe não já tivesse feito a mesma pergunta a outros barbeiros? Disse ele: "Digamos assim. Um dia em que o senhor esteja sofrendo um tipo de problema. Uma dívida que não tenha dinheiro bastante para saldá-la. Uma caso de doença grave na sua família. Enfim, um problema que deixa qualquer um preocupado. Aí acontece do senhor pegar nesse dia um desses clientes exigentes, que passam o tempo todo a dar ordens ao barbeiro, orientando-o como ele deve cortar o cabelo, reclamando que um lado tem muito cabelo, que o outro tem de menos, e isso sem usar um mínimo de delicadeza, nada de por favor, o senhor podia cortar um pouco mais aí, e outras coisas mais. Enfim, um desses chatos de carteirinha. Pois bem. Nem por um segundo, nesses anos todos em que o senhor trabalha nesse ofício, não passou pela sua cabeça o pensamento de degolar um tipo desses?" "Não, doutor. Graças a Deus, nunca tive esse tipo de pensamento. É certo que muitas vezes vim trabalhar tendo algum problema. Mas o freguês, o que é que ele tem a ver com o problema por que estou passando?" "Mas o senhor não acha que quando a pessoa está tendo um problema grave, fica facilmente irritada com as pessoas que vivem em volta dela, chegando muitas vezes até a ser agressiva?" "É verdade. Eu realmente já cheguei a me aborrecer com algum freguês mais exigente, mas nem sequer fiz com que ele percebesse. E já peguei freguês que ficou o tempo todo me ordenando como eu devia cortar o cabelo dele e quando terminei, certo que ele estava satisfeito, que trouxe o espelho para ele ver o corte, ele ainda achou defeito e eu tive que continuar para que o corte ficasse do jeito que ele queria."
Tinha ficado tão interessado pela conversa entre aqueles dois, ao ponto de abandonar a leitura da revista. Mas havia uma razão para isso. Desde que comecei a frequentar os salões de barbearia, levado pelos próprios pés, vejo o barbeiro como um indivíduo que diariamente é tentado pelo desejo de matar. Essa tentação é estimulada por um lado pelos instrumentos de que ele se serve, e do outro pelo cliente, ao oferecer o pescoço a quem está com uma navalha e uma tesoura. Assim, ouvindo aquela pergunta, presumi que encontrara alguém que partilhava da minha idéia e desviei a atenção para a conversa.
E para maior satisfação, descobri no meio dela um detalhe engraçado no tratamento reverente utilizado por cada um dos homens em relação ao outro: o barbeiro tratando o cliente por "doutor", o cliente chamando o barbeiro de "senhor". Os dois deviam estar se encontrando pela primeira vez para se tratarem daquela forma, já que eram mais ou menos da mesma idade. O barbeiro mostrava um rosto mais envelhecido, os cabelos estavam inteiramente brancos, embora ainda bastos, ao contrário dos cabelos do outro.
Ocorreu uma pausa na conversa, enquanto o barbeiro se afastou em direção à mesinha, para pegar o massageador elétrico. Olhei para o cliente, ele tinha encurvado a cabeça, como se examinasse os pedaços de cabelo que sujavam o lençol. De repente virou-se para mim, como se sentisse que era observado, com o ar de quem estivesse meditando. Não me fez nenhum cumprimento e desviou os olhos de mim. Quando o barbeiro voltou, de massageador na mão, ele lhe disse:
"O senhor sabe que há muitos anos assisti um filme em que um barbeiro cortava a garganta de um freguês? E aí havia um motivo relevante. É que o barbeiro descobrira que o freguês era amante de sua mulher. E agora deixe eu lhe fazer outra pergunta. Se por infelicidade, o senhor fosse vítima de adultério e chegasse um dia a ter sentado nesta cadeira o amante de sua esposa. O senhor sabendo que era ele, será que o senhor teria controle sobre si mesmo, ou faria o mesmo que fez o barbeiro do filme?"
Quando o cliente fez aquela pergunta, olhei para o barbeiro. Ele ficara calado, então notei - notei que seu rosto sofrera uma alteração. Subitamente assumira uma expressão constrangida, mas que, assim pensei, não seria a mesma se a pergunta do cliente aludisse a, por exemplo, uma morte de um parente bem próximo do barbeiro. Já o cliente deve ter suposto que o barbeiro não ouvira a pergunta por causa do barulho que fazia o massageador, pois voltou a fazê-la, dessa vez virando um pouco o rosto para o lado do outro.
"Hem, mestre (pela primeira vez variava a forma de tratamento) , se o senhor chegasse um dia a ter sentado nesta cadeira o amante de sua esposa, o senhor sabendo que era ele, será que faria o mesmo que o barbeiro do filme?"
Eu continuava com os olhos fixos no barbeiro, que, dessa vez respondeu de uma maneira que evidenciava a sua intenção de encerrar o assunto. "Doutor, eu não quero responder a essa pergunta."
Disse essas palavras em um tom tão incisivo que chamou a atenção das pessoas que estavam mais próximas. O barbeiro, cuja cadeira ficava imediatamente vizinha, chegou a interromper o trabalho e ficou olhando para seu colega. Imitando-o, o seu cliente interrompeu a leitura do jornal e virou-se. Foi então que o cliente curioso cometeu uma imprudência. Em vez de encerrar a conversa, o que fez foi insistir no prosseguimento dela. Até me surpreendeu a sua atitude de remoer uma questão que não agradava ao barbeiro, que não queria satisfazer-lhe a curiosidade. Porque até então ele me dera a impressão de ser um homem de esmerada educação, que tratava com distinção as pessoas, inclusive as que lhe eram inferiores na escala social. Pois, de repente, ele destruía o conceito que tinha a seu respeito, quando desrespeitou o direito do barbeiro de evitar aquele assunto. Virando-se para o barbeiro, ele falou, e, para desmentir ainda mais a impressão que me passara, de maneira chula e num tom de voz provocativo: "Pois eu digo o que o senhor faria. O senhor não ia perder a chance de degolar o puto que trepava com a sua esposa".
Se não estivesse olhando atentamente para o barbeiro, não o teria apanhado em todos os detalhes do seu gesto, tão rápido foi ele. Afastou a tesoura do cabelo do cliente e, colocando as duas lâminas em cruz, desceu-a para o pescoço do homem e cravou-a na garganta. O cliente só teve tempo de soltar um grito estentóreo, a cabeça tombou para um lado e o sangue começou a jorrar do pescoço. De repente, o salão se transformou numa confusão de vozes, todo mundo falando ao mesmo tempo, e já uma pequena multidão se acercava do morto. Logo em seguida ao grito do homem, o barbeiro vizinho pegou o colega pelos ombros e, sacudindo-lhe o corpo, disse tu é doido, homem. Enquanto o outro replicou, olhando para o homem que acabara de matar: "Ele não devia ter falado aquilo".
E o seu rosto tinha um ar sereno, não expressava revolta ou indignação, como se ele estivesse consciente de que praticara um ato de justiça.
(Conto integrante do meu livro "Clarita", Editora Blocos, Rio de Janeiro, 1993, aqui publicado com algumas alterações na linguagem.)

Nenhum comentário: