Aos 84 anos, quando parecia já acabado para o cinema, Alain Resnais consegue surpreender com um filme que perturba o espectador e ao mesmo tempo o estimula à reflexão. Adaptado de uma peça teatral que tem o mesmo título do filme em português, Resnais nos apresenta a seis pessoas (três homens e três mulheres) solitárias (mesmo quando envolvidas num relacionamento amoroso, como Dan/Lambert Wilson e Nicole/Laura Montale) , perdidas, em busca de algo que dê um valor significativo a suas vidas, sempre confinadas em ambientes fechados (não há em todo o filme uma única cena externa) , como isoladas do mundo lá fora. Mas não têm êxito na sua busca quase desesperada. Nem mesmo um apartamento que a satisfaça Nicole consegue. Ela vive com Dan, um ex-militar à cata de um emprego, num apartamento de hotel, em cujo bar ele se embebeda todas as noites.
E há a neve. Incessante, vista dos interiores, ela acentua o fardo que aquelas pessoas carregam. A neve funciona também como um elemento de ligação entre as cenas. E já perto do fim, na conversa entre Lionel (Pierre Arditi) e Charlotte (Sabine Azéma) , no apartamento de Lionel, a neve parece estar junto deles, como se ali tivesse penetrado, mercê de um notável efeito técnico, que ainda torna a cena visualmente bela.
É talvez o maior momento do filme, porque além da presença do elemento técnico-estético, naquela conversa Lionel revela um pouco do seu passado; aliás, o único personagem a fazê-lo, já que se se sabe que Dan deixara a carreira militar, o motivo não é explicitado. Além de sabermos que Lionel era dominado pela mãe, uma mulher de temperamento forte, que chegou a expulsar de casa o marido, ocorre algo mais sobre ele: ao falar de um amigo de juventude, com quem aparece numa foto emoldurada que a câmera focaliza rapidamente, deixa a impressão de ser um homossexual.
Esses "corações" , amargurados pela frustração dos desejos, se cruzam no desenrolar da história. Nicole tem mais de um contato com o corretor imobiliário Thierry (André Dussolier) , que trabalha com Charlotte, por quem se sente fortemente atraído. Debruçada sobre a Bíblia, quando não tem cliente para atender, mas alimentando desejos lascivos, Charlotte se chega a Lionel, que a leva para, à noite, tratar do pai enfermo, um velho rabugento e desbocado, do qual só se ouve a voz. E um pouco por causa do seu desejo, e um pouco para se vingar do velho, ela o faz ir parar no hospital. Dan, por sua vez, tem um rápido envolvimento com Gaelle (Isabelle Carré) , irmã de Thierry, mas com idade para ser sua filha. Ela sai à noite com a desculpa de que vai se reunir com amigas, mas, na verdade, vai se encontrar com algum homem, a quem atraiu por um anúncio de jornal.
Se não fica bem próximo dos maiores filmes de Resnais, "Medos Privados em Lugares Públicos" é muito bom, possivelmente o melhor do cineasta desde "Meu Tio da América" (1980) . Que bom seria que ele parasse agora, rematando de forma digna uma bela carreira. No entanto, já está preparando outro.
2 comentários:
Oi Francisco,
vejo que você entende muito bem do assunto. Bom ter pessoas que sabem fazer uma crítica, como essa que você faz.
Um abraço
Jacinta
Muito boa a sua resenha, amigo Sobreira. Eu vi este filme no ano passado, quando passou no cinema. Gostei. Achei bastante teatral (e não sabia que originalmente era uma peça). Os conflitos são tratados com muita sensibilidade. O espectador se envolve e começa a torcer por um final feliz. Mas definitivamente ninguém se frustra com o final que o Resnais deu ao seu belo filme.
Mudando de assunto: tem uma lembrança pro amigo lá no Antigas Ternuras. Quando for possível, apareça lá. Carpe Diem. Aproveite o dia e a vida.
Postar um comentário