quarta-feira, junho 04, 2008

AS TARDES DE DOMINGO FORAM FEITAS PARA LEMBRANÇAS?

Foto tirada de olhares.aeiou.pt


O domingo se arrasta monótono e quente. Estirado na rede, conservo o hálito do vinho e do peixe saboreados no almoço. A televisão está ligada no Santo Sílvio. O rádio do vizinho transmite um jogo de futebol. Não sinto ânimo para fazer coisa alguma. Apenas ficar deitado, ouvindo os ruídos de uma tarde de domingo. No jornal da manhã li a notícia da morte de um colega de escola. E não sei explicar por que a morte de Pirrita não me saiu da cabeça.Talvez pela forma trágica de que morreu: num tiroteio com a polícia. Seu nome e retrato freqüentavam quase diariamente as páginas policiais. Até que lhe chegou o fim violento. Deve ter sido por isso que lamentei tanto a sua morte, já que, no colégio, nem chegamos a ser amigos. Tornara-se traficante de drogas e era caçado há muito tempo pela lei.
Porque, por exemplo, quando morreu o Doca Cunha eu senti - menino e senti. Mas Doca Cunha foi um dos heróis da minha infância, por seu destemor. Um bravo que se acabou por uma bala traiçoeira do Zé Feitosa, ao meio-dia de um domingo. Estava numa mercearia do mercado público, onde, uma vez, agredira um cunhado. Contam que a irmã lhe rogara uma praga, de que ele teria o seu fim naquele mesmo local.
Uma morte que por muito tempo vivificou em minha memória e em meu coração. O mesmo, acho, aconteceu aos meus amigos. Ela era um assunto predominante em nossos papos.E afirmava-se - alguns quase chegando a jurar - que o seu filho Amauri lhe vingaria a morte quando se tornasse adulto. Que maus profetas! Amauri, rapaz, tornou-se assassino, não do matador do pai, mas do próprio irmão.
Já era adulto quando Seu Edmundo morreu. Conheci-o já corroído pela bebida, mas ainda um bonito homem. Acompanhei, penalizado, a progressiva decadência física e moral de um homem respeitado e querido. De uma viagem que fiz em sua companhia nunca me esqueci. Foi há tanto tempo, eu era garoto, mas me lembro bem dele, bêbado, importunando o motorista e ironizando a história de um livrinho que trazia comigo. Era bem chato quando bebia. Numa manhã, na fazenda de um amigo, contava uma história quando o coração parou.
Toinho Jacinto o vi um dia desses. Mal vestido, fedendo a álcool, cantando uma putinha. Uma caricatura do Toinho saudável, elegante nas proporções de sua condição financeira e da nossa cidadezinha. Toinho, o craque de futebol que jogava de uma maneira que dava gosto ver. Não compreendíamos por que nunca foi atraído para um time da capital. Hoje me parece mais fácil entender a razão: naquela época abundavam os grandes jogadores, ao contrário do que ocorre atualmente. Talvez ele até hoje ignore que nos tenha propiciado momentos de felicidade, no dia em que participou de uma pelada com a minha turma.
O momento não estimula a ação. Sem vontade de deixar a rede, sequer para ir ao banheiro, só me resta relembrar as figuras que me enriqueceram a infância. Ah! o velhinho Vitorino. Um homem sempre bem humorado, apesar de a vida o ter tratado com desprezo. Parece-me que o estou vendo de rosto escancarado para alardear a amabilidade e a simpatia de Juscelino e compondo uma carranca com que arremedava a sisudez de Juarez. E reproduzindo os sons dos instrumentos da bandinha de música. Ao morrer, terá sido velado com a mesma abnegação com que velava os corpos dos indigentes? Penso que não. Pior para os que nunca puderam apreender a sua beleza espiritual. Mas meu avô, também da linhagem dos simples, descobriu-lhe a riqueza humana logo no primeiro contato entre os dois. Tendo acontecido ser apresentado pela mamãe, na mesma ocasião, a um figurão da cidade, confessou à filha que gostara bem mais do humilde Vitorino.
Era sargento. Hoje não sei a sua patente. Por isso continuarei a chamá-lo de Sargento Adauto. Revi-o um outro dia. Velho, quase surdo, mas ainda conservando o vozeirão aprimorado nas instruções aos recrutas. Um soldado em quem a vivência na caserna não embotou os princípios de urbanidade, nem o enquadrou na disciplina que rege o relacionamento entre superiores e subalternos. Dele não posso esquecer (viva mil anos) arrancando-me a tempo de ser pisado pelas rodas de um carro. Correra do papo com os amigos - uma reunião na calçada do hotel - para me salvar da morte buzinante.
O rádio do vizinho solta um grito de gol. Não ouço euforia no homem. Talvez o gol seja do time adversário; talvez o vizinho não seja dado a rompantes de alegria. Até a mim chega a risada televisiva do Sílvio. Não recobrei o ânimo. O vinho e o peixe ainda pesam. Não só eles: a rede também. Como se todos os meus heróis tivessem se deitado comigo.
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Conto do meu livro "Um Dia... os Mesmos Dias" (1983) , publicado aqui com pequenas alterações na linguagem original.


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