Óleo sobre madeira
Picasso (1903)
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Em toda cidade existem aquelas figuras que fazem o divertimento das crianças mais velhas e dos adultos movidos pela maldade. São, em geral, vindas das classes baixas, e o motivo que as as fazem vítimas dos outros é quase sempre um apelido que carregam desde a infância e com o qual nunca se conformaram. Mas entre esses pobres coitados há aqueles em que o móvel da brincadeira não é o apelido. É que em tais indivíduos há algo anormal, que se percebe num instante que eles não giram bem, e esse componente dá azo às brincadeiras que sofrem.
Nos meus primeiros anos em Natal conheci um desses tipos. A natureza não o favorecera. Pequenino, um tanto gordo, zarolho, e, para completar, carregava uma corcunda, quase como a do Quasímodo do Victor Hugo. O seu problema era com relação ao dia da semana. Assim: digamos que fosse uma segunda-feira. Quando ele passava, alguém às suas costas dizia, hoje é terça. Ele parava, se virava e dizia, na voz fanhosa, ora terça, hoje é segunda. Se o malvado insistisse que era terça, ele também insistia que era segunda, que terça seria no dia seguinte. Se a pessoa dissesse que era domingo, o coitado replicava na bucha, ora domingo, domingo foi ontem, hoje é segunda. Ele continuava a caminhada e mais adiante lá vinha outro para alterar o dia da semana e o coitado a dizer o dia correto.
Voltando ao apelido. Em Natal havia o Garapa, que não cheguei a conhecer, mas ouvi falar dele. Esse era agressivo, se o brincalhão não fugisse ou se escondesse, era certo levar uma bordoada de um pedaço de pau que ele portava. Houve uma vez em que vinham dois rapazes e, de repente, deram de cara com o Garapa. Eram dos que mexiam com o pobre homem, mas às suas costas, escondidos. Mas daquela vez ficaram os três frente a frente. Então, ao passarem pelo Garapa, um disse "água" e o outro acrescentou "açúcar". Apressaram o passo, mas Garapa os alcançou e então disse, brandindo o pedaço de pau: "Misturem, felas da puta. Misturem que eu quero ver".
Já cego Raimundo não tinha apelido, nem era alvo de brincadeiras, além de ser estimado pelas pessoas. Aparecia toda tarde no banco onde eu trabalhava e lá demorava um bocado de tempo. Vivia de vender bilhetes de loteria, mas dos funcionários poucos os compravam, preferiam lhe dar um dinheirinho. Media em torno de 1,50m, usava um chapeuzinho e não tinha guia. Poucas pessoas conheci tão alegres, tão bem humoradas, tão brincalhonas. Sua risada cheia, ruidosa, era a de alguém que vivia a melhor das vidas. Brincava com a própria deficiência visual. Quando lhe perguntavam se conhecia alguém, ele respondia "de vista". No passado fizera parte de um conjunto musical composto só de cegos. Tocava gaita. Uma gaita bonita que um colega meu lhe trouxera de uma viagem ao exterior. Por sinal, que uma das maiores emoções que senti na vida foi um dia em que indo a uma seção resolver um assunto, encontrei-o executando "Barril de Chope". Ao final, todos os presentes o aplaudiram.
Morreu aí pelo início dos anos 1980. Já deixara de aparecer no banco, pois a nova direção da agência proibira a presença de pessoas que nao fossem lá a não ser para negócios. Mas antes de morrer, cheguei a vê-lo algumas vezes andando ligeirinho, com o toquetoque da bengala. Falava com ele, que há muito tempo me reconhecia pela voz. E sempre eu saía satisfeito do nosso encontro.
Ah, sim, gostava de uma caninha e chegava ao banco já com algumas na cabeça.
Um comentário:
Meu querido Francisco
Gostei muito do seu texto por estar muiro bem escrito,como é habitual, e por me fazer lembrar o que há muitos anos eu esquecera: essa figuras que eram mitivo de galhofa, especialmente entre a garotada.
Coitados, muitos deles eram bem dignos de pena, mas as crianças não se condoem facilmente.
Mas o que é estranho é que, por qualquer fenómeno que não estou vendo qual seja, esses indivíduos, motivo de chacota geral, desapareceram.
Pela minha parte, digo: ainda bem! Nunca gostei, mesmo em garota, de assistir a cenas dessas.
Um beijinho carinhoso
Mariazita
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