quarta-feira, abril 05, 2006

ACHADO POÉTICO = Conto de Bartolomeu Correia de Melo (RN)

Afinal, se a vida se resolve/a poesia acaba (Hildeberto Barbosa Filho)

DIA desses, nos fundos da venda de Simão Curioso - mistura de bodega, oficina elétrica, botica de ervas e sebo malsortido - seu Leonel do Cartório, escrevente e poeta bissexto, cascavilhava prateleiras, atrás dalguma leitura. Mexia noutros livros quando, sem-que-nem-mas, aquele despencou. E ali restou, escambichado no assoalho, num abandono de fêmea entregue, mostrando a lombada encardida: TIGIPIÓ. Sabia daquela palavra, mas não assim escrita, somente cantada. Cantada numa gostosa marchinha, evocação dos blocos de longes carnavais, já quase aquietada nos confins da memória. Saudade dos idos tempos de estudos fora- de- casa,
haja quarent'anos... Queria que fosse tejipió - fala de índio gosta de jota - soando quase teje pior. Nome mesmo de troça suburbana, com sotaque recifense, bem chiado nos plurais: Pirilamposh de Tejipió. Dizer vaga-lumes pegava melhor, mas eram aqueles carnavais parnasianos... Navegando nos quantos lembrares, soletrava aquele pedaço de cantiga: "... os Corações Futuristas/Bobos em Folia/Pirilampos de Tejipió..."
E disso lhe chegava a lembrança - como tangida por vagos clarins, detrás duma cortina de confetes - uma cena sem data. Figura de muluta lazarina frevando no frege do corsol. Maneira e ligeira, trejeteitos de serpentina; requebros picando lantejoulas, como vestida de vaga-lumes. Bonita que nem flor de magnólia. Quiçá, algum dia, assim mesmo avistada na Rua da Aurora ou da Saudade...
Apanhou tal livro. Desemcapado, empardecido, coisa assim de quarta ou quinta mão. Edição antiga em papel barato; ainda de quando prefácio era proêmio. Herman Lima, autor cearense - gente mais rezadeira que foliona. Contos regionais premiados pela Academia... (roído de traça... de Letras. Na folha-de-rosto, em tinta-de-pena, com desjeitoso capricho, estava escrito: Terezinha X. da Silva / Recife, 19333. Adiante uma epígrafe ensinava: "Tigipió: frutinha agreste, pardusca e roliça, adocicada, mas ofensiva.podendo causar intensa embriaguez."
Voltou-lhe a passista, talvez nunca deveras avistada, numa incerta e movediça relembrança. Nos negaceios da dança, reviu-lhe a doçura trigueira, no jeitinho gracioso - quase venenoso - de sorrir e requebrar. Embora papa-jerimum, acudiu-lhe um nem-sei-que de pernambucanidade, feito arrupio escorrendo no tutano do espinhaço. Aquele bem-sentir de terr e povo - havido por nascença ou farnezim de simpatia. Coisa d' alma que chega, assim esquisita, arrupiando qual sopro de pifre, beliscando malencolias, qual acorde de pau-e-corda, a espritar os sentires, batendo fundo que nem toque de maracatu.
E a modinha reteimando no juízo: "...Pedro Dourado, Camelo de Ouro e Bebé/os queridos Batutas da Boa Vista/e os Turunas de São José..."
No aqui-acolá do livro, tinham rabiscado a lápis: Têca. Apelido bem cabido em cabrocha serelepe, raceada com cabinda e caeté. Noutras paisagens, nordeste arriba, tal nome perde esse dom. Fica mais pra cabocla fornida, quartos de jia e peitos de cabaça; olhar de espreita e sorriso de espera na cara de lua cheia. Com destreza para bilros e tino para temperos, mas sem ginga no passo nem frevura no sangue. Daí logo se engraçou na redondez da letrinha destraquejada. A cada três ou quatro folhas - decerto marcando paradas de na leitura - assentada na margem, lá estava: Têca. Pelo visto, coisa lida no enquanto doutras tarefas. Caixeira, copeira ou modista? Teria também sido ali deixado por sinal de marcação, aquele fiozinho de cabelo cacheado? Folheava, mais vendo que lendo. E se rindo de algumas notinhas curtas, na mesma caligrafia. Comentos singelos, pouco letradas, mas bem deleitosos. Belesa assim escrita, paxão assim também. Rabiscos de ligeiras contas, contando modestas despesas. Retalho de papel-de-carta com trecho de soneto copiado.
"E aceite, assim sem juras, esse amor/que apenas dura, intenso qual poema/enquanto passa, frágil como flor."
Num porém de ciumeira descabida, achou o terceto bisonho; praqueles tempos, até que meio indecente.
Pensares tornaram a revoar esquisitices. Tanto que, de novo e mais de pertinho, como que avistou a dita moça. Agora, sem fantasia, nem ruge ou batom, apartada e esquecida da folia. Imaginada na tardinha duma praça antiga, talvez esperando bonde. Corpo arrimado no tronco dum goitizeiro, pezinho despido em riba doutro calçado, sem dança nem lantejoulas, ainda por demais vistosa. Toda entretida, mexia sem dengo os beicinhos carnudos, na leitura do mesmo livro - Tigipió. Encantado nessa estranha presença, como em brando desvario, até sentia a brisa cheirosa a goiti ternurando nos cabelos dela. Reatinou-se e seguiu folheando. Com agrado, curiosava outras coisinhas. Achou pétala seca de rosa, mordiscada por dentes miúdos; notou manchinha de choro pingada em página mais penosa, além doutras pequenas deixas. Na folha final, um coraçãozinho desenhado; sem enfeites nem floreios, vazio de letra ou flecha. Como assim, livre e leve, falto de dores e ardores, também fosse o coração de Teca.
Nisso, bateu-lhe uma danada vontade de poesia. Um verso ainda bambo inchava o peito, já outro comichava no juízo. Aí, mais pelo ficado encanto dela, que mesmo por qualquer outra valia, enfim comprou tal livro. Num avexame ressabiado, mouco pras perguntas de Simão, nem esperou embrulho ou troco. Assim, meio que zonzo e maneiro, logo se botou pra casa. Andava anzolado, driblando os passante, abraçando o livro no peito, como escondesse segredo ou vergonha. Ladeira abaixo, encandeado nas cores da manhã, assobiava a musiquinha dos velhos blocos recifenses.
"...Príncipe dos Príncipes brilhou/Lira da Noite também vibrou/E o Bloco da Saudade/assim recordo aquilo que passou."
Rimas esquivas rodopiano na cabeça, adivinhava sonhares jamais acarinhados. Romoía um mesmo par de versos melindrosos, alma angustiada nas rebuscas da poesia. E contam que, derna disso, somente risca e rabisca. Pois nunca mais lhe acudiu qualquer versejo que assim baste pra dizer desse sofrido anseio. Diz-que se queixa que tais penares somente beiram insosso gozo, sem nunca acharem desafogo nem contento.
Vai daí que, no caso de algum dia, num sebo qualquer da vida, alguem como você, chegado à poesia, folheando um velho livro, lembrar coisas de antigos carnavais... Esconjure a tentação; não compre!
Pois periga serem amavios de musa parda, deusinha brega chamada Têca; dona do condão da desinquieta e fugidia inspiração... Tome tento nos malencantos de olhares que brilham como lantejoulas, sorrisos manhosos qual volteios de serpentina; promessa de afagos que arrupiam que nem clarins de frevo, suspiros cheirosos a lança-perfume...
E se recuide dos adocicados beijos, que trazem gosto - talvez efeito - de tejipió.
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Conto extraído livro Estórias Quase Cruas, Edições Bagaço, Recife/2002.

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