quarta-feira, abril 12, 2006

PERSONAGENS


Quando trabalhei em Fortaleza, de maio/72 a junho/74, tive como colega José Moura, tratado por Mourinha. Era o contínuo da Seção. De uma fealdade que chamava a atenção: corpo mal-ajambrado, olhos esbugalhados e o nariz torto despencando para a boca. Mas uma figura humana muito interessante, pronta para fazer parte de um texto de ficção. Uma de suas facetas era o de mudar o nome de alguns colegas. Não o fazia com todos, especialmente com os comissionados. Poucos dias depois que comecei a trabalhar na Seção, ele me achou com cara de Romualdo e assim me chamou durante os dois anos em que ali fiquei. Um colega, Esdras, foi por ele "batizado" de Luís. Mas nem sempre era bem-humorado. Tinha, às vezes, atritos com algum colega, sempre por questão de serviço. Eu fui um deles. Passamos uns dias sem nos falar, mas depois voltamos às boas. Duas ou três vezes deixou o birô dele e veio tirar dois dedos de prosa comigo. Numa delas, não me lembro a propósito de quê, começou a falar sobre a ex-esposa. Revelou que mantinham um bom relacionamento, se visitando regularmente. Pelo que depreendi das suas palavras, ainda conservavam, se não amor, um carinho especial um pelo outro. E se era assim, não entendi por que haviam se separado. E perguntei, não podendo conter a curiosidade: "Mourinha, e por que vocês se separaram"? E Mourinha, com um meio-sorriso, respondeu com a maior naturalidade. "Porque não gostava das comidas dela". Pode uma coisa dessa?
Tive outro colega de personalidade muito interessante, esse em Natal. Nestor guardava, parece que na carteira de cédulas, uma carta antiga, para afugentar algum colega que lhe viesse pedir um empréstimo. Mal o coitado terminava de falar, Nestor tirava a carta e o mandava ler. Naquele papel eram arroladas as justificativas para a sua recusa em não emprestar dinheiro. Não sei quais eram, nunca tive acesso à carta. Calvo, de volta de umas férias, apareceu de peruca. Foi uma diversão para todos. E ele contava por que, afinal, resolvera esconder a careca. Mas não usou a peruca por mais de uma semana, talvez nem isso. Um dia chega Nestor sem ela, e, do mesmo modo como procedera ao aparecer com a peruca, deu várias justificativas para deixar de usá-la. Era um fã dos faroestes italianos, na época em que estes estavam em voga. E quase sempre que assistia a um deles, vinha no dia seguinte me contar parte do filme, divertindo-se, às risadas, com as cenas inverossímeis. Adotou um outro nome, de origem espanhola, que não sei de onde foi desencavar: Don Martinez Y Algar. Usava-o quando era apresentado a uma pessoa e quando enviava um documento de serviço para algum colega. E certa vez, ao emitir um cheque, assinou Don Martinez Y Algar, em vez do nome de batismo. Segundo ele, por distração, mas creio que o fez por brincadeira.
Na minha cidade havia um barbeiro chamado Isaías. Como todo barbeiro que se preza, Isaías conversava mais do que o homem da cobra. Além de barbeiro, exercia, por vezes, as funções de leiloeiro nas festas religiosas. E se gabava de ser bom nessa modalidade. Uma vez eu e uns amigos estávamos num banco da praça principal, onde se realizava um leilão. Isaías não tinha sido convidado. Ele chegou perto da gente e começou a fazer críticas ao rival. Ao mesmo tempo, ensinava as regras para ser um bom leiloeiro. Em tudo aquilo havia a ponta de um despeito por ter sido preterido em lugar de outro.
Mas o que eu queria mesmo era falar de um fato , que o papai não se cansava de contar. Uma feita uma romeira entrou com o filho pequeno na barbearia de Isaías. O menino devia estar com o cabelo muito crescido e a mãe, certamente, não queria que ele fosse assim visitar São Francisco de Canindé, como os romeiros chamam o Santo de Assis. Isaías mandou a mulher se sentar e colocou o garoto na cadeira. Mal começou o trabalho, perguntou à mãe: "Que mal pergunte, vosmecê é de onde"? "De Teresina", respondeu a mulher. "De Teresina"? Como se a mulher tivesse dito que morava na lua, Isaías parou, virou-se para ela, com a tesoura na mão. e falou: "É verdade que lá tem uma devassidão danada"? E a mulher: "Meu senhor, eu não sei dessas coisas, não. Sou uma mulher casada, que vivo na minha casa". Isaías retomou o corte de cabelo e entrou noutro assunto.
Três personagens à procura de um ficcionista.

Nenhum comentário: