quarta-feira, janeiro 31, 2007

A CHINESINHA

Este conto saiu neste blogue na primeira postagem de 2006, portanto, há mais de um ano. É republicado, não apenas por não dispor de um assunto novo, mas para quem não o tiver lido naquela ocasião. E para os que o leram, poderem fazer uma reavaliação dele.
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Tomei o primeiro longe gole de cerveja, degustando o prazer da bebida bem gelada. Em seguida virei o rosto para a parede, à minha direita, onde estava dependurado um quadro em moldura e envidraçado. A peça, que não parecia (de acordo com os meus modestos conhecimentos de artes plásticas) executada por um verdadeiro artista, representava sete pessoas (quatro homens e três mulheres), cada uma delas exercendo uma função. Um dos homens portava um instrumento musical, outro montava um cavalo, uma mulher segurava uma flor, e assim por diante. Um atrás do outro, formando uma fila indiana. Era um quadro chinês, pois o restaurante era chinês. Havia outro quadro na parede à minha esquerda, embaixo do qual se postava a longa mesa onde era exposta a comida para os clientes se servirem. Mas nem sei dizer o que o quadro representava, pois me desinteressei de olhá-lo.
A chinesinha que me atendeu teria, se muito, dezoito anos, era magrinha, como parecem ser todas as chinesas, pelo menos as jovens. O seio quase inexistente me fez lembrar a expressão "peitinhos de pitomba", de uma música do Chico. Mas bonitinha, com um rabinho-de-cavalo, e se chamava Jini. Havia outra moça, um pouco mais velha, e um homem, esse, sim, gordo, não muito mais alto do que as moças. Devia ser o proprietário. Fiquei por ali só bebendo, pois ia almoçar em casa.
Descobri o restaurante num desses sábados em que com a minha mulher fui a um shopping fazer compras. Depois das compras seguimos para a praça da alimentação, para tomarmos umas duas cervejas. Entramos ali sem saber que o restaurante era chinês. Só o descobrimos quando a chinesinha nos veio atender e também verificarmos a decoração. E não sei por quê (talvez o exótico do local), com uma chinesa de garçonete), achei agradável o ambiente, e sempre que ia ao shopping, aparecia lá para tomar a minha cerveja.
Os ocidentais acham que as pessoas da raça oriental são todas parecidas no físico. Talvez eles achem o mesmo de nós. Bom, o certo é que teve um dia que eu achei que Jini, a chinesinha, era como estar vendo a bela atriz Gong Li. Só que bem mais nova. E um dia falei a ela da semelhança entre as duas. Jini me olhou admirada e não disse nada. Suspeitei que ela não soubesse quem diabo era Gong Li.
Uma vez fui atendido pela sua compatriota. Era também bonitinha, me disse o seu nome, mas não o guardei. Soube que Jini estava adoentada. Doença grave, perguntei. A moça não disse nem sim, nem não. Era atenciosa e mais comunicativa do que Jini. Como a cerveja não estivesse muito gelada, trouxe, sem eu pedir, um balde com cubos de gelo, onde pousou a garrafa. Fiquei por ali, vendo pela milésima vez o quadro, enquanto os primeiros clientes chegavam para almoçar. Dessa vez me deu vontade de comer um pastel.
Voltei alguns dias depois e, de novo, não encontrei Jini. Perguntei à colega se ela tinha melhorado. E, coisa estranha, de novo ela ficou muda. Nem um sim, nem um não. Coisa mais estranha!
Não resisti a perguntar por Jini, na vez seguinte.E o mesmo silêncio da garçonete, mas com uma diferença: além do silêncio, ela esboçou um sorriso, cujo significado não consegui decifrar. A partir daquele dia, desisti de indagar pela chinesinha. Houve uma ocasião, depois de beber três cervejas (habitualmente não passo de duas),, em que senti o impulso de perguntar ao proprietário o que fora feito de Jini. Mas nem cheguei a me levantar. Deixa pra lá, disse pra mim. E embore continue frequentando o local, apreciando a cerveja bem gelada (quando não está a meu gosto, a garconete providencia o balde com gelo), gostando do ambiente, confesso que sinto falta da sósia de Gong Li. Onde ela estará? O que terá sido feito dela?
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Por motivo de viagem do editor, esta página só voltará a ser atualizada no final da próxima semana. Até lá.

sábado, janeiro 27, 2007

AS INVASÕES BÁRBARAS (Les Invasions Barbares/2003)

Este texto sai aqui pela primeira vez, acrescido de pequenas alterações de quando foi publicado no Balaio Porreta (http://www.balaioporreta1986.blogspot.com/), de Moacy Cirne, em março de 2004, quando eu ainda ainda não possuía este blogue.
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É, especialmente, da amizade, um dos valores mais caros na filmografia de Ford (mas num outro contexto), que trata este filme do diretor canadense Denys Arcand; a amizade entre cinco pessoas (três homens e duas mulheres) que resiste ao tempo e à separação ditada pelas circunstâncias da vida. Após muitos anos eles voltam a se reunir, em razão da extrema gravidade da doença de um deles, e percebe-se que não transparece nenhuma arranhadura no relacionamento entre eles, nem mesmo entre o enfermo Remy (Remy Girard) e as duas amigas que, eventualmente, foram suas amantes. Por uns poucos dias os cinco amigos parecem voltar ao tempo de jovens, revisitando o passado, e o fazem utilizando um humor irreverente que confina com o cinismo e o deboche. É uma atitude consciente, tacitamente deliberada como uma fuga à situação do doente.
Há que considerar ainda a amizade, em outro nível, que se inicia entre Remy e a jovem viciada em heroína Nathalie (Marie-Josée Croze), contratada por Sébastien (Stephane Rousseau), filho de Remy para adquirir a droga e também aplicá-la no enfermo, aliviando-o das dores sobre as quais os remédios já não conseguem atuar. Em outro nível, porque, primeiro, é um relacionamento que já nasce condenado à efemeridade. depois, porque envolve duas pessoas separadas por uma enorme diferença de idades, as quais, por fim, estão vivendo situações-limite, mas também diferentes. Ou seja, Remy está se despedindo da vida e, por apegar-se a esta, não se conforma com o fato (embora, como Nathalie o faz ver, não é a sua vida presente que ele não quer perder, mas a sua vida passada); já Nathalie conduz a sua vida como uma forma de buscar a morte, praticando um suicídio lento e doloroso. Mas a atitude dela pode ser também uma inadaptação à vida atual (observe-se como ela ouve com muita atenção Remy, já na casa de um dos amigos, recordar um momento do passado, e o seu ato de jogar no fogo o inseparável celular de Sébastien).
Nessa breve convivência dos dois, Nathalie chega a se tornar confidente de Remy; é a ela, e não aos seus amigos de longa data, que ele faz um desabafo sereno sobre o que sente de irrealizado em sua carreira de professor, por culpa própria e de seus superiores. E, no final, Nathalie se transforma no anjo da morte de Remy, ao lhe aplicar a overdose fatal.
Interessante observar que Nathalie vai ocupar o apartamento de Remy, depois que este morre, local reservado para o encontro dele com as amantes. Ao chegar ali, acompanhada por Sébastien, este lhe faz um assédio, que, a custo, ela repele. Ao terminar o filme, com a imagem de Sébastien e a noiva no avião, seguida da bonita canção, ocorre-nos a pergunta: será que ele e Nathalie se tornarão amantes, e Nathalie, assim, através de Sébastien, repetirá a relação da mãe com Remy?
Com "As Invasões Bárbaras", Denys Arcand fez, talvez o seu melhor filme até aqui, sem que se deixe de apontar a importância de "O Declínio do Império Americano" e "Jesus de Montreal". Dele conhecendo apenas esses três filmes, creio, no entanto, poder incluí-lo entre os diretores mais destacados do cinema de hoje. Que não são muitos, como num passado não muito distante.

terça-feira, janeiro 23, 2007

LYGIA E A ANDORINHA, CLARICE E A CARTOMANTE

Lygia Fagundes Telles despertou, de repente, sentindo uma presença estranha no quarto. Estava em Marília (SP), para um Curso de Literatura na Universidade daquela cidade. Ainda estava escuro, acendeu a luz e viu uma andorinha. Coisa mais estranha a avezinha ali, como entrara ali, se a janela estava fechada. Abriu a janela e tentou enxotá-la, mas a andorinha não queria sairi. Primeiro pousou no lustre, onde demorou algum tempo, em seguida na trave dos pés da cama. Lygia ficou observando-a , suave lhe disse que ela estava livre, podia deixar o quarto, mas a avezinha parecia querer ficar em sua companhia. Até que , depois de um certo tempo, voou em direção a janela e se foi. O dia já estava nascendo e Lygia verificou que não dispunha de muito tempo para chegar à Universidade. Quando lá chegou, uma jovem estudante veio ao seu encontro e lhe disse que acabara de ouvir no rádio que Clarice Lispector falecera na noite passada. Lygia ficou um momento sem fala, depois abraçou a moça e disse eu já sabia, eu já sabia.
Na verdade, o que ela sabia era que a grande amiga de muitos anos estava muito mal, numa informação, por telefone, que lhe dera o crítico Leo Gilson Ribeiro, na véspera de viajar para Marília. Depois do o telefonema, começou a recordar a viagem que fizeram à Colômbia para particparem de um Encontro de Escritores. Recordou um problema durante o vôo, quando, de repente, o avião começou a se desgovernar. Apavorada, Lygia tentou disfarçar (ou distrair) o medo, escondendo o rosto num jornal. Mas o medo não deixou de ser percebido por Clarice, que parecia tranquila, pois riu quando buscou o braço da amiga e apertou-o. E lhe falou: "Fique tranquila porque a minha cartomante já avisou, não vou morrer em nenhum desastre". Ao ouvir o argumento de Clarice, Lygia não pôde conter o riso. "A cartomante, Clarice?" Clarice não disse mais nada e logo em seguida, como num passe de mágica, o vôo voltou ao normal e a viagem transcorreu tranquila até chegarem ao destino.
Lygia relata esses dois fatos no seu livro de crônicas Durante Aquele Estranho Chá (Editora Rocco/2002). título de um texto em que narra o único encontro que teve com Mário de Andrade, ela no frescor e na beleza dos 21 anos e ele já pertinho de morrer. Ainda sobre Clarice, transcreve uma entrevista concedida à amiga para um jornal carioca.
DUAS OU TRÊS COISAS SOBRE "HIROSHIMA, MEU AMOR"
O que mais se destaca em "Hiroshima, Meu Amor", que revi há poucos dias em DVD, é a união perfeita entre o cinema e a literatura. E é por achá-lo muito literário que alguns críticos não gostam dessa obra-prima que Alain Resnais realizou em 1959. Mas se é "literário", "Hiroshima" é também cinema e cinema de alto nível. Inovador. A narrativa mistura presente e passado, às vezes num pisca-pisca na memória da francesa (Emmanuelle Riva), artifício que foi muito utilizado depois de "Hiroshima". (Continua sendo utilizado.) Resnais acertou em cheio quando convidou a escritora Marguerite Duras para escrever o roteiro. As falas são de grande qualidade, que só podiam ser escritas por alguém do talento de Duras. De uma grande beleza, até de uma beleza musical, que encontraram em Emmanuelle uma intérprete ideal para dizê-las. Há musicalidade na voz da atriz, como bem observou o crítico Luís Carlos Merten, em depoimento sobre o filme contido nos "Extras" do disco.
É uma bela e trista história de amor. Mas é também um libelo contra a guerra. Impressionante a cena que abre o filme, Os amantes no ato do amor aparecem como se fossem corpos atingidos pela bomba atirada sobre Hiroshima. Só depois é que os corpos são vistos em condição normal e aí "Hiroshima", no diálogo entre a mulher francesa e o homem japones (Eiji Okada), assume uma forma de documentário, para depois entrar a história de amor entre a jovem francesa e um soldado alemão, durante a ocupação nazista na França. Quero chamar a atenção para o que , a meu ver, é a melhor fala do filme. Num restaurante, os amantes estão numa mesa e alguém põe uma antiga música num toca-discos. Ao ouvir os primeiros acordes, a mulher, quase gritando, num comovente desabafo diz: "Ah, eu fui jovem um dia".
Nestas leves impressões sobre um filme que já foi tão dissecado, analisado, elogiado e atacado, por pessoas bem mais autorizadas do que este beradeiro de Canindé, concluo dizendo que gostei ainda mais de "Hiroshima" nessa revisão. Na minha opinião, o melhor Resnais, embora haja os que prefiram "Ano Passado em Marienbad". Enfim, cada um tem os seus gostos, as suas preferências.

sábado, janeiro 20, 2007

PERDAS E DANOS (DAMAGE/1992)

Esta semana revi Perdas e Danos, de Louis Malle, em DVD. A minha impressão sobre o filme manteve-se inalterada, desde que o vi em vídeo há mais de 10 anos. Em vista disso, divilgo aqui o comentário escrito sobre ele num jornal local, naquela ocasião. Ei-lo, com pequeninas alterações.
Não é difícil, para quem acompanha a carreira de Louis Malle, descobrir o que o atraiu no livro de Josephine Hart. A paixão de um homem de meia-idade (Jeremy Irons), ministro do governo inglês, pela noiva do filho, é uma verdadeira caixa de marimbondos em que ele já mostrou, ao longo de sua filmografia, gostar de mexer. Malle sempre revelou uma queda para o ousado, o polêmico, o chocante, desde Os Amantes , quando, no distante ano de 1958, mostrou uma variante do ato sexual, salvo engano pela primeira vez no cinema, que escandalizou o puritanismo da época.
Em Perdas e Danos , subjacente ao tema da paixão entre sogro e nora, há o do incesto, velho conhecido do cineasta, que o abordou em Sopro do Coração (1970), daquela vez entre a mãe e o filho adolescente. Agora a relação é entre Anna Barton e o irmão, de que o espectador toma conhecimento pelo relato que ela faz a Stephen, o sogro. A propósito de Anna Barton, ela me parece o personagem mais interessante do filme. Trata-se de uma mulher, que, contra a sua vontade, leva à destruição ou à morte os homens que se sentem atraídos por ela. Uma espécie de viúva-negra, o que no filme é reforçado pela sua preferência pela cor preta no uso do vestuário. Ninguém mais ideal do que ela para representar o incognoscível na natureza humana, com a aparência frágil, o jeito calmo e sereno e o rosto triste e cândido. E nenhuma outra atriz poderia representar esse personagem como Juliette Binoche.
Mas no personagem de Stephen, também nele, existe um lado secreto, ocultado por trás da aparência externa. Coabitando com aquele homem frio, seco, formal, há um outro que se revela quando ele não consegue resistir a paixão pela nora. É preciso que o filho morra (o filho que reclama uma vez do temperamento do pai), para que ele libere esse lado escuro de sua personalidade (a cena em que Stephen, despido, desce as escadas ao encontro do filho morto, possui uma clara conotação simbólica).
Eu não gostaria de num filme que oferece tantas coisas boas ao espectador, a começar pelo elenco (embora me pareça equivocada a escolha de Miranda Richardson , apenas por sem jovem demais para fazer a mãe de Martyn/Rupert Graves), precisar apontar alguns defeitos, mas, infelizmente, não me resta outra alternativa. É pena que o roteiro tivesse que recorrer a certas "facilidades", com o endosso da direção, para aliciar o espectador menos exigente, fazendo com que se torne previsível a ação de personagens. Como exemplos: a ênfase com que a câmera focaliza o rosto perscrutador da filha adolescente de Stephen, e o close da chave esquecida no lado de fora da porta do apartamento de Anna, quando Stephen vai ao encontro dela e , em seguida, Martyn. No primeiro caso, o espectador é levado à expectativa de que será a garota a primeira pessoa a desconfiar daquela relação secreta; no segundo, de que Martyn chegará ao apartamento da noiva. São defeitos que, se não chegam a prejudicar o filme, retiram-lhe um pouco da força criativa.

quarta-feira, janeiro 17, 2007

CINECLUBE TIROL


Quando cheguei a Natal em 30 de julho de 1965, o Cineclube Tirol tinha quatro anos de existência. Funcionava no salão paroquial da igreja Santa Teresinha, na Av. Rodrigues Alves, a uns 6 quarteirões do centro. Sabendo por um conterrâneo de que havia um cineclube na cidade, me interessei logo em ingressar nos seus quadros. O aspirante a sócio, ao chegar à sua sede, tinha que preencher um questionário composto de umas 7 perguntas. Ou eram 5? Por aí. Era apenas uma formalidade. Das respostas dadas não dependia o seu ingresso no Cineclube Tirol.
O Cineclube Tirol mantinha, desde 1963, uma sessão de cinema semanal numa das salas exibidoras de Natal. Na minha chegada, a sessão era no Rex, aos sábados pela manhã. Pouco depois foi transferida para o Nordeste, aos domingos. Sempre pela manhã, às nove e meia. As reuniões na entidade dependiam da exibição dessa sessão. Enquanto esta foi no sábado, as reuniões se davam aos domingos pela manhã; quando a sessão passou , em definitivo, para os domingos, as reuniões aconteciam no sábado, à noite.
Nas reuniões debatia-se um filme em exibição na cidade. Talvez mais de um, caso houvesse dois filmes em destaque naquela semana. Cada um dos presentes falava das suas impressões sobre o filme. Quase todos diziam alguma coisa. Uns falavam mais, outros menos, e só um ou outro ficava calado (geralmente os neófitos na entidade, que, por timidez, se limitavam a ouvir os mais experientes soltarem o verbo). Havia poucas divergências entre os cineclubistas, sobretudo se o filme era de grande qualidade, realizado por um cineasta maior. Algumas particularidades sobre determinadas situações - era só. Até onde posso confiar na memória, só me lembro de uma séria divergência entre dois cineclubistas sobre um filme italiano, que se estendeu depois da reunião, quando caminhávamos para o centro. Parece que era A Moça com a Valise, de Valerio Zurlini, com Claudia Cardinale. Mais ou menos na mesma época ocorreu um debate em que eu (pobre de mim) fiquei sozinho contra todos os presentes. Nem uma alma caridosa para ficar do meu lado. Todos tinham gostado do filme. Aí me lembro bem do filme: Lilith, de Robert Rossen, com Warren Beatty e Jean Seberg. (Na década de 1990 revi Lilith e não é que gostei? Embora não o tenha achado excepcional. Eu é que estava errado naquela ocasião.)
Os filmes vinham de Recife. Nos meses de janeiro e fevereiro não havia sessão de cinema, por causa da debandada da maioria dos natalenses para as praias. Mas as reuniões continuavam, salvo engano. E aproveitávamos para escolher os filmes que seriam exibidos a partir de março, até junho (em julho também paravam as sessões). Escolhidos os filmes, um dos cineclubistas, nomeado programador, ia a Recife contratá-los. Alguns não conseguíamos e tinham que ser substituídos por outros. Eram filmes já exibidos na cidade em anos anteriores. Mas, às vezes, tínhamos sorte de contratar um inédito em Natal. Um desses casos foi A Grande Ilusão (Renoir), que vi no Rex poucos dias depois de aqui chegar. As sessões levavam muita gente, principalmente quando passaram para os domingos. Ao sair, o espectador já sabia qual seria o filme do próximo domingo. O cartaz ficava exposto ao lado da bombonière. Depois do filme, corríamos para um bar, para falar dele e de outros assuntos.
Em 1968 eu cheguei à presidência. Numa reunião com os companheiros eleitos e demais sócios presentes foi apresentado e aprovado o projeto de criarmos uma sessão noturna às quintas e sextas. Levamos a proposta à gerência do Cine Poti, que topou o negócio. O filme exibido não era o mesmo da sessão de domingo. Isso começou em julho, com Tempo de Guerra (Godard). Entre muitos outros filmes exibidos, me lembro de A Faca na Água. de Polanski, realizado quando este ainda estava na Polônia. O público soube corresponder à nossa arrojada iniciativa, tornando as duas sessões tão concorridas quanto as de domingo. Apesar disso, elas só duraram até o final daquele ano. O cinema não se interessou em continuá-las no ano seguinte.
Em 1969 o Cineclube deixou o salão paroquial e foi se instalar numa sala do SESC, no centro. E já começara o afastamento de alguns companheiros. Moacy arribara para o Rio em 1967, outros, como Bené, deixaram de comparecer às reuniões. Gilberto Stabili, que era o presidente quando ingressei na entidade, ficou, parece, até 1970, depois se mudou para Recife e de lá para São Paulo, onde ainda vive. Em 71 chegou a minha vez. De toda aquela turma boa (com algumas exceções, naturais em todo grupo), permaneceu apenas Paulo Rocha, chamado carinhosamente de Paulocha, um dos fundadores e eterno tesoureiro.
E hoje o Cineclube Tirol "é apenas uma fotografia na parede. Mas como dói"!

domingo, janeiro 14, 2007

A POESIA DE NAPOLEÃO DE PAIVA SOUSA

Apresento a vocês a poesia do norte-rio-grandense de Alexandria, Napoleão de Paiva Sousa. Médico de profissão, Napoleão (meu vizinho)´, além de poeta, é compositor. Os poemas, aqui publicados, fazem parte do livro Depois Comigo, lançado em novembro passado. Todos os poemas que compõem o livro foram digitados em aparelho celular, com um limite de 160 toques caracteres e depois passados para o papel. Por causa dessa limite, eles não têm título e, em algumas palavras, falta uma letra (como na preposição "de", onde é suprimido o "e") , e, às vezes, a supressão é na pontuação. Antes desse livro, Napoleão publicou outro de poesia, Apenas Chegaram, de 1999. Vamos aos poemas.
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Gosto da água
de mar profundo
dos seus olhos
tocando em
mim/Gosto da
linha de
horizonte do seu
sorriso tímido
tão tímido -
como se
pedindo para
fugir nos azuis.
Para Poliana
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Quem vê esses
olhos assim tão
serenos/ Não
imagina quantos
quartos em festa
tem o seu
coração/
Noites & dias
aventurei-me
pela chave
de um deles/
Luz vermelha.
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Chegou linda
deslumbrante
tirânica quase,
inibindo o mais
ousado
sedutor. Ação (é
como se um
diretor, ali, gritasse)
As mulheres de olho:
Qto tempo durará
essa beleza?
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O teu púbis
dourado ao
alcance do olho
da mão da
boca, brinquedo
pronto a
incendiar-se
umedecer-se de
suores, líquidos,
saliva; onde
o meu grito
banha-se, em
fogo.

quarta-feira, janeiro 10, 2007

UM TIPO DE DOENÇA


Quem viu Cinema Paradiso e não esqueceu esse filme encantadoramente nostálgico deve se lembrar de uma expressão dita por um vizinha da mãe do garoto Totó. A mãe, enfurecida depois de ver a filha menor escapar por um triz de ser queimada pelo fogo que atinge sobras de fitas pertencentes ao irmão, que ela pegara para brincar, parte para surrar o filho. É nesse momento que a vizinha solta a expressão "doença do cinema", para recriminar esse veículo que arrasta para o escurinho daquela sala os habitantes da pequena cidade.
"Doença do cinema"? Existe, sim. Ataca milhões de pessoas no mundo inteiro e, o pior, é incurável. E é interessante observar que esses milhões de "enfermos" estão divididos em duas categorias (os que vêem o cinema como um entretenimento - a maioria - e os que o consideram um produto artístico) e embora sejam diferentes, e até antagônicas, as razões que os fazem sucumbir a essa paixão insuperável, aquelas se igualam exatamente por causa do culto a esta. Ou seja, tanto o intelectual quanto o homem comum são atraídos pela magia do cinema.
Anos-luz mais novo do que o teatro, o cinema roubou deste o lugar na preferência das massas, ao mesmo tempo que se tornou um veículo para a outra espécie de espectadores - aqueles dotados de visão crítica.
O espectador comum é ligado especialmente aos atores e atrizes, enquanto o espectador crítico o é ao diretor, embora não deixem de ser admiradores dos intérpretes. Raríssimos diretores conseguem chamar a atenção do cinéfilo comum, mas não pelo mesmo interesse que despertam no estudioso de cinema. Um Chaplin (por causa do personagem Carlitos), um Ford (por causa dos westerns, principalmente os estrelados por John Wayne), um Hitchcock (por causa do suspense que envolme a trama). Talvez um Tati (por causa do personagem Hulot). Quem mais? Dos vivos, talvez Almodóvar. É claro que me refiro aos grandes cineastas.
Com pouco mais de um século de existência, o cinema segue vivo e ainda firme, embora haha perdido muito do seu vigor criativo (sobretudo o americano, hoje, com algumas exceções, subjugado pela violência, o erotismo e os efeitos especiais), devido ao desaparecimento ou à aposentadoria de grandes mestres, responsáveis por o cinema ter adquirido status artístico.
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AMANHÃ, dia 11, esta casota (como gostam de dizer minhas amigas portuguesas) completará 2 anos de "construção". Não posso deixar de agradecer aos que a têm visitado (especialmente aos mais assíduos), por entender que são eles o responsável principal por este blogue ter chegado até aqui. Um grande abraço a todos.

domingo, janeiro 07, 2007

MANOEL VALE


Uma noite de sábado na sede do Cineclube Tirol um estranho se apresentou a mim se dizendo cunhado de um colega meu de trabalho. Apresentei-o aos demais cineclubistas, depois entreguei-lhe um documento para ser preenchido. Era um questionário ao qual devia responder toda pessoa que queria ingressar no Cineclube Tirol. Durante a reunião, em que sempre comentávamos um filme de destaque em exibição na cidade, ele não ficou calado, dando um ou outro pitaco, demonstando não se intimidar diante dos seus futuros companheiros, mais velhos e experientes. E foi assim que conheci Manoel Vale. Uns dois anos depois, ele tornou-se também meu colega de profissão. Não ficou em Natal, indo trabalhar na longínqua Macapá. Lá permaneceu algum tempo e voltou para Natal, mais por problemas de saúde (com pouco mais de vinte anos começou a ter problemas no coração), já que gostara muito de Macapá, sempre relembrando a sua passagem naquela cidade.
Manoel Vale era um personagem. Nascera com um problema visual, que o tornava feio. Baixo, de magro quando o conheci, ficou um tanto gordo, resultado de muita cerveja e muita comida gordurosa. E ainda fumava. Fazia tudo o que não era recomendável para a sua enfermidade. Não sei se era apenas uma opção de vida (vou aproveitar a vida, enquanto posso), ou se procurava a morte. Talvez uma coisa e outra. Não dava a mínima para a saúde. E tinha um cunhado cardiologista, o mesmo que fora meu colega, que deixou o banco para se dedicar à medicina.
Carregava uma mochila no ombro, contendo livros e, principalmente, elepês. Gostava muito de MPB. Quando recebia o salário, percorria as lojas de discos e comprava uma grande quantidade deles. O dinheiro ia embora em pouco tempo, por causa também das suas visitas ao cabaré de Maria Boa e aos bares, e ele, então, vendia os discos adquiridos, só conservando os dos compositores e cantores que mais amava. Um amigo comum, que o acompanhava a Maria Boa, contava que Manoel oferecia livros às raparigas e chegava a recitar para algumas delas os seus poemas. Aliás, ele sempre andava com poemas dentro da mochila, mostrando às pessoas. Não eram de boa feitura. Inteligente, sensível, Manoel, no entanto, tinha pouco talento poético. Sua preferência era pela poesia política (Neruda era um dos seus poetas preferidos) e sabe-se que esse tipo de poesia, tanto quanto a de cunho social, exige de quem a faz um equilíbrio e um controle emocionais que não deixem a poesia virar um panfleto. E Manoel era um passional. Mas chegou a publicar os seus poemas. Um livro magrinho, cujo título parece ser "Viver a Vida". Não tenho bem certeza. Entre inumeráveis amigos e conhecidos a quem dedicou o livro, sou um deles. Ainda o conservo. Só que não sei onde achá-lo, escondido no meio de tantos e tantos livros volumosos.
Naqueles anos sofríamos os horrores de uma ditadura. Manoel era um apaixonado contestador do regime vigente, seja através da maioria dos seus poemas, seja nas conversas. Expunha-se muito e talvez não tenha sentido os efeitos de sua contestação pelo fato de não ser levado muito a sério em tudo o que fazia. Não só no banco, mas fora dele, havia pessoas que riam do comportamento de Manoel, do seu hábito quase diário de mostrar um poema escrito na véspera, até a pessoas que não manjavam um mínimo de poesia, da sua maneira de vestir (como já se aposentara por invalidez, não precisava usar o vestuário exigido para trabalhar) e até do seu defeito visual. Ele não percebia a maldade dessas pessoas, ou, se percebia, não ligava a mínima. Um comentário maldoso e falso sobre Manoel era que tinha uma enorme frustração: não ter sido preso. Via amigos e conhecidos sofrendo nas prisões e ele livre. E pelo banco circulava uma anedota sobre o suposto desejo dele de seguir o infortúnio dos amigos. Contava-se que Manoel, já em desespero, resolveu um dia passar pela calçada de um quartel no centro da cidade (onde onde funciona o Memorial Luís da Câmara Cascudo). Ao passar em frente a um soldado, segurando um fuzil, Manoel disse bem alto, para ser ouvido também por outros milicos que estivessem por perto: "Viva o Comunismo"! Disse e parou, esperando a reação do soldado. Como este se manteve mudo, ele repetiu, com o mesmo tom de voz: "Viva o Comunismo"! E continuou parado, olhando desafiador para o homem. Foi então que o guarda olhou para um lado, olhou para o outro e disse "Viva"! Baixinho. A anedota era contada em meio a risadas.
1984 era um recém-nascido quando cheguei ao banco para mais um dia de trabalho. E logo soube que o coração de Manoel Vale tinha parado na noite anterior, enquanto ele dormia. Fazia pouco mais de um mês que completara trinta e três anos.

terça-feira, janeiro 02, 2007

BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE ANGÚSTIA


Em 2006, "Angústia", de Graciliano Ramos, inteirou 70 anos. A poucos dias de encerrar o ano, li uma vez mais esse terceiro romance do escritor alagoano. Um grande livro, sem dúvida. É considerado por muitos leitores e críticos como o maior de Graciliano. Modestamente, discordo. Essa nova leitura fez com que reafirmasse a minha preferência por "São Bernardo" e, em segundo plano, "Vidas Secas". E conforta-me saber que um crítico da estatura de Antonio Candido não se inclui nessee grupo. Nem como uma obra-prima, AC o considera. Ele chega a dizer no primoroso ensaio sobre a obra de Graciliano, intitulado "Ficção e Confissão" (inserido na edição de "São Bernardo" da Livraria Martins Editora/1972) que "há nele partes gordurosas e corruptíveis [o grifo é meu], ausentes em "São Bernardo e "Vidas Secas". Mestre Candido, no entanto, não especifica essas "partes gordurosas e corruptíveis". Arrisco-me à hipótese da presença de algumas situações, como, por exemplo, o momento em que Luís da Silva esbarra na rua em uma mulher grávida, incidente que ocorre poucas páginas antes de ele descobrir a gravidez de Marina; ou quando Luís da Silva está no quarto com a jovem prostituta e, ao meter a mão no bolso, dá com a caixa onde estão a aliança e o relógio destinados a Marina. Mas as restrições do crítico não indicam que ele não veja grandes qualidades em "Angústia". Nada disso. Além de considerar Luís da Silva como o personagem mais dramático da moderna literatura brasileira, escreve, a certa altura: "Defeituoso no conjunto ["Angústia"] , contém trechos que só podem ser qualificados de admiráveis".
Luís da Silva - um personagem que fica para sempre na lembrança do leitor. E que merece uma análise de um estudioso da Psicanálise. Antonio Candido observa que ele se sente um homem sujo, com a consequente obsessão pela água, tanto que , para o crítico, o banheiro do quintal de sua casa representa um papel importante no livro. Eu acrescentaria que essa conciência de sujeira física não se relaciona apenas à sua pessoa. Luís da Silva sente nojo também dos outros. Num certo momento, ele confessa ter "horror às apresentações, aos cumprimentos, em que é necessário apertar a mão que não sei onde andou, a mão que meteu os dedos no nariz, ou mexeu nas coxas de qualquer Marina". Mais até pelo fato de lhe ter roubado Marino, a sua aversão por Julião Tavares o é pela figura deste. O seu ódio pelo rival torna-se uma coisa obsessiva. E, em consequência, a corda é um objeto que gruda no seu pensamento. Tão intensa essa obsessão que a corda pode ter a sua forma assumida pelo jornal que Julião deixa enrolado na mesa do bar, pela gravata deste, pelo cano dágua que passa pelo seu quarto. Seus ouvidos são continuamente perturbados por ruídos de diversas espécies. E quando comete o crime, instala-se nele a paranóia. Na sua mente enferma, o homem que enche dornas e a mulher que lava garrafas, duas figuras humildes que ele vê diariamente, podem estar ali para espioná-lo. O mendigo que bate à sua porta pode ser um policial disfarçado.
As últimas páginas, em que, febril, Luís da Silva é tomado pelo delírio, é um trecho admirável, certamente entre os que Antonio Candido elegeria em "Angústia" .