sábado, abril 30, 2005

NÃO ENTERRAREI OS MEUS MORTOS



Tinhas operado os olhos. Eu ia ver as novidades na livraria, como faço todos os sábados, quando te avistei na outra calçada. Incontinenti, atravessei a rua, tomei a calçada e fui ao teu encalço. Estavas com pressa, o teu andar nervoso, os braços balançando, como se praticasses um exercício corporal. Te achei engraçado e pensei em fazer uma brincadeira. Ao chegar perto de ti, prendi-te os braços. Te viraste entre assustado e irritado, mas, ao me veres, teu rosto se alegrou e nos demos um grande abraço. Te felicitei pelo êxito da operação, começamos a conversar sobre os assuntos habituais no início dos nossos encontros, depois sugeri entrarmos num bar, para prolongarmos o papo. Até parece qie estavas esperando o convite - aceitaste-o de pronto. Fomos para um bar sossegado, lá ficamos uma tarde inteira.
Como falaste naquela tarde! A bem dizer, um monólogo. Eu te ouvia deslumbrado. Começavas a descobrir o mundo, ao modo da criança que vai tomando consciência das coisas que a rodeiam. E a descoberta te fazia feliz. Falaste das cores do dia, da beleza das pessoas. Afirmaste que agora conhecias os livros pelos teus olhos, sem ser preciso que a tua sobrinha te emprestasse os olhos dela. E isso para ti era duplamente grafificante, Mais de uma vez ficaste receoso de estares bancando o chato, só falando de ti, mas não te ouvia apenas por delicadeza, mas porque participava da tua felicidade. Não me cansaste. Com prazer ouvia as tuas palavras, que falavam das belezas das coisas e das pessoas. Como aquela mulher na sala de espera de teu médico, cuja beleza quase te deixou hipnotizado. E a tua emoção quando falaste sobre o cinema! Naquela semana tinhas conhecido Bergman e Antonioni, e a descoberta desses dois artistas maiores te deixou feliz. Mas o teu maior desejo era conheceres Carlitos - o pai de todos nós. (Meses depois um cinema local promoveu um festival de Chaplin e então disseste que já podias morrer.) Depois foste apresentado a Fellini, Welles, Losey, Buñuel e tantos outros que conferiram uma dimensão artística ao cinema.
Passei uma tarde inesquecível naquele sábado. Nunca mais tivemos um encontro como aquele. Nos vimos algumas vezes, geralmente aos sábados na livraria. No começo ainda te chamava para beber, mas, como sempre recusavas, de uma forma delicada, deixei de te convidar. Nunca me disseste: mas estou certo que querias recuperar o tempo perdido pela privação da tua visão. Os teus olhos tinham ainda tanta beleza a te revelar, não podias te esconder tardes inteiras num bar. Foram rápidos os nossos encontros, estavas sempre com pressa. Mas ainda falávamos de literatura, cinema, música e, às vezes, de política. Voltavas para casa, enquanto ia me reunir com outros amigos.
E num desses sábados entrei no Glacial, à procura de amigos, quando te encontrei sozinho numa mesa. Não eram ainda doze horas e já tinhas bebido muito. Não estavas nada bem, vi logo pelo teu olhar. Fazia dois anos que tínhamos bebido naquele mesmo bar. Mas não foste o mesmo daquele longínquo sábado. Naquela vez não ousei interromper, por um instante que fosse, as tuas palavras deslumbradas diante do mundo que se abria a teus olhos. Te ouvi embevecido, feliz por conhecer alguém sensível e inteligente como tu. Mas dessa outra vez, vendo-te deprimido, tão chocado diante do que teus olhos tinham visto até então, não pude deixar de intervir para te levantar o espírito. Infelizmente, não o consegui. A tua imagem era a de um nauseado. E confessaste: teus olhos, que haviam te mostrado a beleza, tinham também te revelado a fealdade. Testemunhaste: a hipocrisia, a violência, a fome, a miséria, a opressão, o egoísmo, a subserviência, a delação. Claro, não ignoravas nada disso, quando teus olhos viviam fechados, mas, ao conquistarem a luz, presenciaste muitas dessas mazelas bem de perto. E isso te chocou, por seres lúcido e tão sensível. Confessaste: não havias perdido a capacidade para admirar a beleza, mas sofrias quando te deparavas com uma obra de arte que punha à mostra as chagas do nosso cotidiano. Sabias (como sabias!) que a arte não deve escamotear a realidade e, no entanto, sofrias quando ela não se abstinha. Ah, meu amigo, estavas deprimido demais! E como é horrível ver alguém de quem a gente gosta nesse estado e não se poder melhorar-lhe o ânimo. Eu bem que tentei te convencer que a vida é assim mesmo, que não vale a pena levá-la muito a sério. Porque hã os momentos bons, verdade que cada vez mais raros, que nos ajudam a suportá-la. Os sensíveis, como tu e eu, são os mártires da vida, mas, em compensação, são gratificados de uma forma que é negada aos demais mortais. Fui impotente e não me posso perdoar. Saí do bar arrasado. E apreensivo pelo teu estado.
Fui a tua casa no dia seguinte, mas não quiseste me receber. No outro dia trabalhei muito e não pude te visitar, mas telefonei e não quiseste me atender. Julguei que fosse uma crise passageora. Mas na terça tua sobrinha me telefonou para dizer que havias dado um tiro no coração. Bati o fone e soltei um grito que ainda ecoa nos meus ouvidos. Um grito como aquele que encerra Teorema, filme que tanto nos emocionou. Lembras? E lembras daquela crônica de Clarice (a santa Clarice, como a chamavas) sobre um amigo que havia morrido? No final, ela afirmava que não tinha ido enterrá-lo, porque nem todos morrem. Alguém deve ter dito a mesma coisa, quando ela morreu. Por isso, meu amigo, não fui ao cemitério.
Natal (1976)
(Do livro Não Enterrarei os Meus Mortos, 1980)

terça-feira, abril 26, 2005

ENTREVISTA SOBRE LITERATURA DA LÍNGUA PORTUGUESA

Indicado primeiramente por Manoel Carlos (www.agrestino.blogger.com.br), em seguida pela Bisbilhoteira (http://bisbilhotices.blogger.com.br), e, por fim, pelo amigo Moacy Cirne, do Balaio Vermelho, aqui estou disposto a responder a uma pequena entrevista sobre Literatura da Língua Portuguesa, o que faço com prazer. Mas, antes de começar, acho necessário esclarecer que nas primeira, segunda e quinta perguntas optei por citar apenas livros (e autores) da Literatura de Língua Portuguesa, por entender que estou atendendo o que foi solicitado. Na terceira e quarta questões, como se verá, não pude evitar a citação de autores estrangeiros. Dito isso, mãos à obra.
- Não podendo sair do Fahrenheit 451, que livro quererias ser?
- Dom Casmurro, de Machado de Assis.
- De alguma vez ficaste apanhadinho por um personagem de ficção?
- Poderia citar vários personagens que nunca me saíram da mente (nem do coração) , dos mais diversos autores espalhados pelo mundo todo. Para citar apenas um: Paulo Honório ( São Bernardo) , de São Graciliano Ramos .
- Qual foi o último livro que compraste?
- Encontro em Samarra, do escritor americano John O' Hara (1905-1970), que traz uma introdução de John Updike. Esse romance, ambientado numa pequena cidade dos Estados Unidos, marcou a estréia de O' Hara e, ao ser lançado em 1934, foi elogiado por Scott Fitzgerald e Ernest Hemingway. Ótimo livro.
- Que livro estás a ler?
- Estou relendo Contos, de Hemingway. Aliás, já faz algum tempo que estou mais relendo do que lendo.
- Que livros (5) levarias para uma ilha deserta?
- Jamais iria para uma ilha deserta. E nem sei se no mundo superpovoado de hoje ainda exista alguma ilha deserta. No entanto, gostaria de citar, não apenas 5, mas vários livros que acho indispensáveis conservar, a cuja leitura volto com alguma frequência, sempre com um renovado prazere fazendo novas descobertas. Ei-los. De Machado de Assis: Dom Casmurro, Memórias Póstumas de Brás Cubas e uma seleção dos seus melhores contos; de Graciliano Ramos: São Bernardo, Vidas Secas e Infância; Os Maias, de Eça de Queirós; Fogo Morto, de José Lins do Rego; Mar Morto, de Jorge Amado; A Morte da Porta-Estandarde e Outras Histórias, de Aníbal Machado; Os Ratos, de Dyonélio Machado; Dados Biográficos do Finado Marcelino, de Herberto Sales; Os Cavalinhos de Platiplanto, de José J. Veiga. Que mais? Ah, sim: uma seleção dos melhores contos de Luiz Vilela e de Rubem Fonseca. E ainda uma seleção dos melhores poemas de Drummond, Bandeira, Pessoa, Quintana e Carlos Pena Filho. Há ainda alguns outros, mas paro por aqui, para não alongar mais a lista.
- A quem vais passar este testemunho e por quê?
- A ninguém. As pessoas que poderia indicar já o foram por Manoel e creio que todas atenderam o seu convite.

sábado, abril 23, 2005

LUIS BUÑUEL

Nascido com o século vinte, o espanhol Luis Buñuel foi um cineasta dos mais importantes. E o mais singular, segundo a opinião do crítico Moniz Vianna, formulada na década de 1960, para quem Bunuel não iria deixar herdeiros (eu incluiria aí Fellini) . Adesista de primeira hora do movimento surrealista e um dos seus principais nomes, Buñuel, na verdade, se manteve fiel a ele até o fim da vida. Claro que o surrealismo, e não podia ser de outra forma, aparece bem mais diluído em meio aos temas que ele aborda a partir de uma certa parte de sua carreira, mas é bem visível, por exemplo, num filme como O Fantasma da Liberdade, o penúltimo de sua obra. Numa entrevista aos críticos franceses André Bazin e Jacques-Doniol Volcroze, concedida nos anos 50 do século passado, Buñuel, após a observação do primeiro de que ainda conservava vínculos com o surrealismo, não só não nega o fato, como reconhece a sua dívida com aquele movimento. E falando em Bazin, este inclui Buñuel na lista dos cineastas que fazem "o cinema da crueldade", ao lado de Dreyer, Kurosawa, Hitchcock, Stroheim e Preston Sturges.
Examinando-se os filmes de Buñuel sob o prisma da narrativa e da linguagem, observa-se, se não um desprezo, pelo menos um desinteresse pelo cuidado, pelo apuro da forma. Ou seja, interessa-lhe é o impacto da cena, que a veracidade desta não seja comprometida por "adornos". É o antípoda de Visconti, que, mesmo quando mostra uma cena "forte", de impacto, jamais abdica do seu estilo requintado, do apuro visual-plástico, da elegância formal. Não se trata de um parentesco com o despojamento de Bresson, nem com o de Rosselini; não, é o toque de Buñuel, como existe o toque de Welles, o de Hitchcock, o de Fellini, enfim, dos grandes cineastas. Ele mesmo disse, certa vez, detestar o que chamava de "angulos complicados". E também não gostava do uso da música no cinema, conforme afirmou na mesma entrevista.
Voltando ao tema da crueldade na obra de Buñuel. Esse enfoque dado ao seu cinema o desagradava muito e, aparentemente, ele desconhecia (ou fingia) desconhecer a avaliação de Bazin. Pelo menos, não faz referência ao crítico francês na autobiografia Meu Último Suspiro (Nova Fronteira, 1982). Nesse livro, indispensável para se conhecer o cineasta e, principalmente, o homem, Buñuel revela a tristeza que sentiu ao ler este slogan, escrito sobre o cartaz de um dos seus filmes, exposto num cinema de Paris: "O metteur-en-scène" mais cruel do mundo". E o pior é que essa "crueldade" vinha associada à sua pessoa. Um pouco mais adiante de quando fala desse fato, ele conta a impressão causada em Vittorio De Sica por Viridiana. De Sica assistiu ao filme na Cidade do México (onde Buñuel residia), ao lado de Jeanne, esposa de Buñuel. Saiu do cinema "horrorizado", "sufocado", e depressa tomou um táxi, junto com Jeanne, para ir a um bar. No trajeto, perguntou a ela se o marido era um monstro na intimidade e se acontecia de bater nela. Resposta de Jeanne: "Quando é preciso matar uma barata, ele me chama".
O homem era tão digno de interesse quanto o cineasta. Tinha as melhores idéias quando estava solitário num bar, degustando um bom vinho. Adorava usar disfarces que o deixassem irreconhecível. Ele conta a peça que pregou no set de filmagem de Viva Maria, de Louis Malle. Entrou ali usando uma peruca, passou um tempão pra lá e pra cá, examinando a câmera, fitando os atores, e todos se perguntavam quem era aquele estranho velho, parecendo ser alguém enviado pelo produtor. Nem Jeanne Moreau, que trabalhara com ele há pouco tempo, não o reconheceu. Muito menos o próprio filho Jean Louis, que trabalhava como assistente de Malle.
No capítulo "A Favor e Contra" de Meu Último Suspiro, Buñuel revela aquilo de que gosta e de que não gosta, inclusive de filmes. Alguns filmes de que gostava: O Tesouro de Sierra Madre (Huston), Brinquedo Proibido (Clement), La Strada, A Doce Vida (Fellini), Glória Feita de Sangue (Kubrick), O Encouraçado Potemkin (Eisenstein), Persona
(Bergman). Gostava dos primeiros filmes de Lang e dos filmes feitos por Renoir até a chegada da Segunda Guerra. Não gostou de Casanova (Fellini), do qual saiu muito antes do fim, de Roma, Cidade Aberta (Rosselini), e detestou A Um Passo da Eternidade (Zinnemann), que classificou de "melodrama militarista e nacionalista".
Quase inteiramente surdo, Luis Buñuel morreu em 1982, com a mesma idade do século.

terça-feira, abril 19, 2005

OS DEZ MAIORES FILMES DE ORSON WELLES

1. Cidadão Kane (1941)
2, A Marca da Maldade (1958)
3. Soberba (1942)
4. O Processo (1962)
5. Otelo (1952)
6. Grilhões do Passado (1955)
7. Verdades e Mentiras (1975)
8. O Estranho (1946)
9. Falstaff (1965)
10. A Dama de Shanghai (1946)

sábado, abril 16, 2005

FILMES QUE GOSTARIA DE REVER

Na postagem anterior sobre este tema, houve um comentário do escritor Bené Chaves fazendo referência a Brinquedo Proibido (René Clement, 1952), como um dos filmes que ele gostaria de rever. Foi oportuna a intervência de Bené, porque me fez pensar nesse filme, que vi, eu tinha doze/treze anos, na cidade de Cajazeiras (PB), onde passava uma temporada na casa de um irmão. Para ser sincero, não me lembro de nada dele, exceto do casal de crianças, sendo a garota uma lourinha. Devo ter sido levado pelo meu irmão, de vontade própria não iria ver aquele filme de atores completamente desconhecidos para mim. Só muitos anos depois fui descobrir que o diretor Clement gozava, nos anos de 1950, de um certo prestígio junto à crítica. Outra descoberta: a garotinha era interpretada por Brigitte Fossey, que teve uma carreira discreta no cinema ao atingir a idade adulta. Quando já morava em Natal, a partir de 1965, um amigo vivia falando desse filme, que, pelo menos durante alguns anos, foi bem visto pela crítica em geral. O cineasta Luis Buñuel gostava muito dele. Espero um dia revê-lo, nem que seja para ter uma grande decepção.
Um trágico acontecimento - um terremoto - que atingiu a ilha de Sumatra (Indonésia) no mês passado, me fez lembrar do filme Ao Sul de Sumatra. Este eu vi no cinema de Canindé, minha cidade. O meu desejo de revê-lo é motivado pela presença da atriz Suzan Ball. Uma bela e sensual morena que morreu com a idade de 22 anos, abortando uma carreira que parecia promissora. (Vi depois outro filme de Suzan Ball, lançado no Brasil quando ela não mais vivia.) Seu parceiro era Jeff Chandler, que morreira alguns anos depois, com pouco mais de quarenta anos. O diretor é Budd Boetticher, que, ao incursionar pelo western, chegou a ser elogiado pelo lendário crítico francês André Bazin. Uma curiosidade. O título original é East of Sumatra. A mudança da posição geográfica no título brasileiro só pode ter saído da cabeça dos nossos tradutores. Ah, sim. A atriz morreu vítima de um câncer provocado por um ferimento numa perna, durante a rodagem desse filme.
O terceiro filme vi em Fortaleza e já estava mais "velhinho", embora ainda sem a visão crítica que adquiri anos depois. Trata-se de Os Amantes do Tejo, cuja história, da qual só recordo vagamente uma ou outra cena amorosa, é passada em Lisboa. O par romântico era formado por Daniel Gelin e Françoise Arnoul. Essa Françoise Arnoul, já disse na postagem anterior, em que falei de um filme dela, dirigido por Marcel Carné, era uma atriz mignon, não especialmente bonita, mas que irradiava uma forte sensualidade. E naqueles anos de 1950 teve lá a sua popularidade. É só por ela, no frescor da juventude, que gostaria de rever esse filme, pois o diretor Henri Verneuil é o menos confiável dos três aqui citados, embora tenha visto dele uns três filmes interessantes.

terça-feira, abril 12, 2005

O PRISIONEIRO




Eu tinha dormido mal na noite anterior. Por sorte era um sábado, assim eu podia recuperar as horas de sono perdidas. Então pedi à minha mulher, quando ela se levantou, que trancasse a porta e jogasse a chave pela fresta. Pedi também que depois que as crianças tomassem o café, fossem levadas para passear. Elas fazem muito barulho e não devia ser perturbado. Eu ainda não estava dormindo, ouvi nitidamente a chave ser passada e atirada para dentro do quarto. Ainda ouvi algum barulho das crianças e a advertência da minha mulher de que não deviam perturbar o sono do papai. Pouco depois não ouvi mais nada, então adormeci de vez. Já passava das onze quando acordei. Ainda permaneci deitado uns dez minutos, depois me levantei e me encaminhei para o banheiro. De volta ao quarto, troquei de roupa e calcei os sapatos. Eu cantarolava, estava de bom humor, com o sono em dia e um banho reparador. Estava em forma para a cervejada dos sábados, com um grupo de amigos. Já passava das doze, tinha que me apressar, eles já estariam me esperando. Corri para a porta, me abaixei para apanhar a chave e não a achei por ali. Podia ser a pressa, que nos cega os olhos nessas ocasiões. Sofreei a ansiedade e, lentamente, procurei a chave pelo quarto inteiro. Até debaixo dos móveis esquadrinhei. Babau. Pensei: talvez sonhasse que a chave fora atirada pela fresta da porta, como havia pedido à minha mulher. Quem sabe ela não a tivesse guardado, no caso de precisar retirar alguma coisa do quarto? Ia ser isso. Então chamei minha mulher. Ela custou a me ouvir, mesmo que gritasse e ao mesmo tempo batesse na porta, pois as crianças faziam barulho e, ainda por cima, o televisor estava ligado. Eu lhe perguntei se havia ficado com a chave, porque não a encontrava. Ela respondeu que jogara a chave pela fresta, do jeito que lhe recomendara. Bem, aqui no quarto é que não está, disse um pouco nervoso. Já procurei debaixo da cama, do guarda-roupa e do penteador, já procurei pelo quarto todo e nada. Pois eu fiz do jeito que você mandou, ela tornou a dizer. A gente era capaz de passar o resto do dia nesse puxa-encolhe, eu dizendo que a chave não estava no quarto, ela repetindo que a havia jogado pela fresta. O certo era providenciar para sair dali. Então eu lhe pedi que experimentasse outra chave. Ela se afastou, com pouco voltou com outras chaves, que passou a meter na fechadura. Nenhuma serviu. Sugeri que tentasse com as chaves do vizinho. Enquanto isso, imaginava uma maneira de sair. Através das duas janelas - a do quarto e a do banheiro - era impossível, por serem cercadas de uma grade de ferro, externamente. A não ser que se derrubasse a grade de uma das janelas, mas isso resultaria numa solução apenas parcial, já que eu conseguiria sair, mas, com a porta fechada, continuaríamos sem manter ligação com o quarto. A minha mulher reapareceu com um molho de chaves, experimentou-as, sem êxito. Já começava a me enervar. Por desencargo de consciência, dei outra busca minuciosa. Em vão. A minha mulher também estava se enervando e ameaçou as crianças de surrá-las, se continuassem a fazer zoada. Lhe pedi que procurasse manter a calma, para não complicar mais ainda a situação. Foi aí que me lembrei do revólver. Ora, por que não tinha pensado nele antes? Com um tiro ou dois arrebentava a porta, como vi milhões de vezes no cinema. Eu guardava o revólver no meu escritório, numa das gavetas do birô, trancada, fora do alcance das crianças. Pedi à mulher que me desse ele através da janela, mas depressa ela apagou o meu fogo, me lembrando que o havia emprestado ao compadre Atílio. É mesmo. O compadre Atílio teve que fazer uma viagem inesperada e me pediu o revólver. Já nem me lembrava mais.
As horas voavam. Os amigos já estavam reunidos em nossa mesa cativa. Há muitos anos nos reuníamos naquele bar, frequentados por pessoas que gostavam de uma boa música. Cantávamos, batíamos grandes papos, saíamos com disposição para enfrentar os cinco dias chocos que tínhamos pela frente. Não fosse por esses momentos felizes, aguardados ansiosamente, a minha vida e a dos meus amigos (e de muita gente, creio) perderia toda a motivação. Por aí se vê que não devia estar gostando nem um pouquinho da condição de prisioneiro. A mulher e as crianças estavam almoçando. Não tinha um tico de fome, só queria sair dali e continuava a bolar planos de fuga. Não podia nunca supor que, além da minha mulher, a nossa empregada estava preocupada com a minha prisão e até chegara a ter uma idéia, que comunicou à patroa. A mocinha pensou logo no Homem de Aço. Esse tal era um tarzan que estava se exibindo na cidade, capaz, segundo a publicidade, de arrastar um jipe daqueles antigos e partir um bloco de pedra com as mãos, além de outros prodígios de força física. Para a nossa empregadinha, naquele homem estava a solução, e o pior é que minha mulher aceitou a sugestão. Foi duro convencê-la do trabalho que seria localizar o Homem de Aço e que, depois de tudo, ele podia achar uma humilhação ser chamado para botar abaixo uma simples porta.
Pouco depois o meu vizinho apareceu com uma faca e um martelo. Ao chegar em casa, a mulher lhe contara sobre mim. Um seu conhecido tinha ficado uma vez preso num quarto e alguém abrira a porta com o auxílio de uma faca e um martelo. Vamos ver se dá certo com você também, ele me disse. Apenas por polidez, eu lhe pedi que não se incomodasse, mas ele respondeu que não era incômodo nenhum me ajudar a sair da enrascada e que estávamos no mundo para nos ajudarmos mutuamente. Taí um cara raro hoje em dia. Fiquei envergonhado por não ter me esforçado para que nosso relacionamento nunca tivesse ido além de um bom- dia. Talvez me achasse um grandessíssimo besta, enfurnado em casa ao voltar do trabalho, a cara colada nos livros, em vez de fazer amizade com os vizinhos. Tinha toda a razão de ficar lá na casa dele, se divertindo com a minha sorte, e, no entanto, estava ali suando para abrir aquela porta. O som do martelo batendo no cabo da faca repercutia no quarto e eu pensava numa maneira de me penitenciar por ter desprezado a amizade daquele vizinho. Dagora em diante ele seria um dos amigos que se sentariam à nossa mesa aos sábados, à qual só tem acesso as pessoas por nós escolhidas rigorosamente. E nem seria necessário que ele partilhasse de nossos gostos e de nossas idéias, ele só não participaria de nossos encontros se não quisesse. Outros vizinhos também tinham deixado suas casas e estavam ajudando o homem, na base de sugestões e no revezamento das marteladas. O corredor devia estar cheio de gente. Pelo tom de voz das pessoas, dava para sentir que elas estavam tensas, tanto quanto eu. Quando, finalmente, a porta abriu-se, ouvi um grito uníssono de alegria, mais ou menos como acontece quando a energia elétrica retorna à noite, depois de um longo apagão. O meu vizinho escancarou a porta e uma rajada de vento invadiu o quarto, como a anunciar a chegada da liberdade. Minha mulher caiu nos meus braços, as crianças me fizeram festas, os vizinhos também me abraçaram. Eu não disse uma palavra, nem esbocei o menor gesto de retribuição àquelas efusões de carinho. Parecia uma estátua, de tão emocionado.
(Do meu livro Não enterrarei os meus mortos, Fundação José Augusto, Natal, 1980)

sábado, abril 09, 2005

PUNHOS DE CAMPEÃO (The Set-Up, 1949)

Esse filme de Robert Wise (A Noviça Rebelde) pode ser analisado sob três premissas. A primeira se centraliza no casal formado pelo veterano boxeador Stoker (Robert Ryan) e Julie (Audrey Totter) . Há uma tensão no seu relacionamento, provocada pela recusa de Julie em aceitar que o marido continui na profissão, servindo de saco de pancada para os adversários. "Na última luta você demorou a me reconhecer", ela diz a certa altura de um princípio de discussão que se estabelece no quarto de um hotel, onde Stoker aguarda o momento de ir para o estádio. Ele promete que aquela será a sua última luta, mas ela sabe que será mais uma promessa vã. Magoada, rejeita o ingresso, que ele deixa sobre uma mesa antes de sair. Julie, enfim, decide ir ao estádio, e isso faz Stoker sorrir, quando olha pela terceira vez para o quarto do hotel, através da janela do vestiário, e vê a luz apagada. É, talvez, o mais belo plano do filme, no qual o rosto do boxeador aparece quase imprensado na janela entreaberta. Quando, no entanto, ele sobe ao ringue e percebe vazia a cadeira reservada para a esposa, a decepção e a raiva que sente são canalizadas para o jovem adversário, que, num certo momento, revela estranheza pela disposição de Stoker em derrotá-lo. E ao ser informado pelo treinador de que precisa perder, pois a luta foi "comprada" por Little Boy (Alan Baxter), a revolta o estimula ainda mais a derrubar o seu contendor, afrontando todos aqueles que o colocaram naquela situação. Ele se conscientiza de que a sua honra e a sua dignidade não podem baixar à lona.
A segunda premissa diz respeito ao comportamento dos espectadores, que chega a atingir o sadismo. Todos estão ali para se satisfazer com a sorte dos boxeadores. Querem ver sangue, e quanto mais abundante, melhor. Essa atitude está emblematizada na figura do cego, que acompanha a luta pela narração do guia. Ao ouvir deste que Stoker está com um olho machucado, o cego lhe diz que o adversário deve concentrar o ataque sobre aquele olho. E o fato de serem mostrados alguns espectadores em situações risíveis, não diminui, ao contrário, acentua, o impacto da crítica a todos ali presentes.
A terceira premissa conduz à denúncia da corrupção no boxe. Não tenho certeza, mas me parece que Punhos de Campeão é pioneiro em expor a invasão do gangsterismo no boxe. E o faz com muita veemência, inclusive por mostrar a vingança de Little Boy, ao se ver lesado por Stoker: ele manda os capangas darem uma surra violenta em Stoker, da qual participa como testemunha e também como agressor, ao proceder à mutilação das mãos do boxeador. (E assim, pela ação dos gangsters, é realizado o desejo de Julie de ver o marido abandonar o ringue. Ela também se torna vencedora.)
Sob esse último aspecto, aliás, o filme integra uma categoria que norteou uma boa parte da produção hollywoodiana do pós-guerra, ou seja, a de obras empenhadas na denúncia dos males da sociedade americana. O mesmo Wise trilharia outras vezes esse caminho, como, por exemplo, em Quero Viver. Punhos de Campeão quase atinge o nível da obra-prima. E poderia até ser a de Wise, se não existisse Amor, Sublime Amor, embora neste não se deva esquecer a importante participação do coreógrafo Jerome Robbins, justamente creditado como co-diretor. Por fim, é indispensável mencionar em Punhos de Campeão o feito de que o tempo de narrativa e o tempo de sua projeção na tela são exatamente iguais.

quarta-feira, abril 06, 2005

A QUE CHEGA EM CERTAS MANHÃS

Lia um texto num jornal e a certa altura o autor disse algo que me trouxe uma inesperada alegria. Uma revelação, mas feita de passagem, talvez porque, para ele, o fato não tenha o mesmo valor que para mim. Diferentemente de quando você está conversando com um amigo e ele diz de alguma coisa que lhe ocorre com certa frequência e você, surpreendido, exclama "mas isso também acontece comigo" , e os dois começam a falar daquilo que têm em comum. Não, o autor disse aquilo no meio de uma frase longa, como se fora um breve parêntese, e, no entanto, senti uma grande alegria por saber que aquele estranho, com quem, certamente, jamais me encontrarei, e eu nos uníamos naquela ocorrência.
É o seguinte. Em certas manhãs acordo e enquanto permaneço deitado por algum tempo, me deixando envolver por um restinho de sono, chega-me, de repente, a lembrança de uma determinada música. Mas aí está o detalhe: não é uma música de um CD que tenha adquirido há pouco e venha ouvindo com frequência; não, é uma música que fez parte da minha infância ou da minha juventude e que nunca mais ouvi. E agora ela está nos meus ouvidos, como se viesse de um rádio, ou de outro aparelho, ali ao meu lado. Só que, ao contrário do que se a estivesse realmente ouvindo, ela não tem um tempo de duração, pois permanece grudada nos meus ouvidos quando, enfim, me levanto e vou fazer o asseio matinal e durante uma parte do dia.
Haverá uma explicação para isso? Quem sabe o Dr. Freud tenha. Mas é até melhor que não haja, que o fato permaneça como um desses indevassáveis mistérios da mente humana. O bom é que essas músicas, que julgava apagadas das minhas lembranças, retornem no alvorecer de certos dias, deixando-me "ouvi-las" depois de tantos e tantos anos. E já estou pensando em qual será a próxima.

sábado, abril 02, 2005

OS DEZ MAIORES FILMES DE JOHN FORD






1. No Tempo das Diligências (1939)


2. Paixão dos Fortes (1946)


3. Rastros de Ódio (1956)


4. Depois do Vendaval (1952)


5. O Homem que Matou o Facínora (1962)


6. Vinhas da Ira (1940)


7. Sangue de Heróis (1948)


8. O Delator (1935)


9. O Último Hurrah (1958)


10. Crepúsculo de uma Raça (1964)