terça-feira, abril 12, 2005

O PRISIONEIRO




Eu tinha dormido mal na noite anterior. Por sorte era um sábado, assim eu podia recuperar as horas de sono perdidas. Então pedi à minha mulher, quando ela se levantou, que trancasse a porta e jogasse a chave pela fresta. Pedi também que depois que as crianças tomassem o café, fossem levadas para passear. Elas fazem muito barulho e não devia ser perturbado. Eu ainda não estava dormindo, ouvi nitidamente a chave ser passada e atirada para dentro do quarto. Ainda ouvi algum barulho das crianças e a advertência da minha mulher de que não deviam perturbar o sono do papai. Pouco depois não ouvi mais nada, então adormeci de vez. Já passava das onze quando acordei. Ainda permaneci deitado uns dez minutos, depois me levantei e me encaminhei para o banheiro. De volta ao quarto, troquei de roupa e calcei os sapatos. Eu cantarolava, estava de bom humor, com o sono em dia e um banho reparador. Estava em forma para a cervejada dos sábados, com um grupo de amigos. Já passava das doze, tinha que me apressar, eles já estariam me esperando. Corri para a porta, me abaixei para apanhar a chave e não a achei por ali. Podia ser a pressa, que nos cega os olhos nessas ocasiões. Sofreei a ansiedade e, lentamente, procurei a chave pelo quarto inteiro. Até debaixo dos móveis esquadrinhei. Babau. Pensei: talvez sonhasse que a chave fora atirada pela fresta da porta, como havia pedido à minha mulher. Quem sabe ela não a tivesse guardado, no caso de precisar retirar alguma coisa do quarto? Ia ser isso. Então chamei minha mulher. Ela custou a me ouvir, mesmo que gritasse e ao mesmo tempo batesse na porta, pois as crianças faziam barulho e, ainda por cima, o televisor estava ligado. Eu lhe perguntei se havia ficado com a chave, porque não a encontrava. Ela respondeu que jogara a chave pela fresta, do jeito que lhe recomendara. Bem, aqui no quarto é que não está, disse um pouco nervoso. Já procurei debaixo da cama, do guarda-roupa e do penteador, já procurei pelo quarto todo e nada. Pois eu fiz do jeito que você mandou, ela tornou a dizer. A gente era capaz de passar o resto do dia nesse puxa-encolhe, eu dizendo que a chave não estava no quarto, ela repetindo que a havia jogado pela fresta. O certo era providenciar para sair dali. Então eu lhe pedi que experimentasse outra chave. Ela se afastou, com pouco voltou com outras chaves, que passou a meter na fechadura. Nenhuma serviu. Sugeri que tentasse com as chaves do vizinho. Enquanto isso, imaginava uma maneira de sair. Através das duas janelas - a do quarto e a do banheiro - era impossível, por serem cercadas de uma grade de ferro, externamente. A não ser que se derrubasse a grade de uma das janelas, mas isso resultaria numa solução apenas parcial, já que eu conseguiria sair, mas, com a porta fechada, continuaríamos sem manter ligação com o quarto. A minha mulher reapareceu com um molho de chaves, experimentou-as, sem êxito. Já começava a me enervar. Por desencargo de consciência, dei outra busca minuciosa. Em vão. A minha mulher também estava se enervando e ameaçou as crianças de surrá-las, se continuassem a fazer zoada. Lhe pedi que procurasse manter a calma, para não complicar mais ainda a situação. Foi aí que me lembrei do revólver. Ora, por que não tinha pensado nele antes? Com um tiro ou dois arrebentava a porta, como vi milhões de vezes no cinema. Eu guardava o revólver no meu escritório, numa das gavetas do birô, trancada, fora do alcance das crianças. Pedi à mulher que me desse ele através da janela, mas depressa ela apagou o meu fogo, me lembrando que o havia emprestado ao compadre Atílio. É mesmo. O compadre Atílio teve que fazer uma viagem inesperada e me pediu o revólver. Já nem me lembrava mais.
As horas voavam. Os amigos já estavam reunidos em nossa mesa cativa. Há muitos anos nos reuníamos naquele bar, frequentados por pessoas que gostavam de uma boa música. Cantávamos, batíamos grandes papos, saíamos com disposição para enfrentar os cinco dias chocos que tínhamos pela frente. Não fosse por esses momentos felizes, aguardados ansiosamente, a minha vida e a dos meus amigos (e de muita gente, creio) perderia toda a motivação. Por aí se vê que não devia estar gostando nem um pouquinho da condição de prisioneiro. A mulher e as crianças estavam almoçando. Não tinha um tico de fome, só queria sair dali e continuava a bolar planos de fuga. Não podia nunca supor que, além da minha mulher, a nossa empregada estava preocupada com a minha prisão e até chegara a ter uma idéia, que comunicou à patroa. A mocinha pensou logo no Homem de Aço. Esse tal era um tarzan que estava se exibindo na cidade, capaz, segundo a publicidade, de arrastar um jipe daqueles antigos e partir um bloco de pedra com as mãos, além de outros prodígios de força física. Para a nossa empregadinha, naquele homem estava a solução, e o pior é que minha mulher aceitou a sugestão. Foi duro convencê-la do trabalho que seria localizar o Homem de Aço e que, depois de tudo, ele podia achar uma humilhação ser chamado para botar abaixo uma simples porta.
Pouco depois o meu vizinho apareceu com uma faca e um martelo. Ao chegar em casa, a mulher lhe contara sobre mim. Um seu conhecido tinha ficado uma vez preso num quarto e alguém abrira a porta com o auxílio de uma faca e um martelo. Vamos ver se dá certo com você também, ele me disse. Apenas por polidez, eu lhe pedi que não se incomodasse, mas ele respondeu que não era incômodo nenhum me ajudar a sair da enrascada e que estávamos no mundo para nos ajudarmos mutuamente. Taí um cara raro hoje em dia. Fiquei envergonhado por não ter me esforçado para que nosso relacionamento nunca tivesse ido além de um bom- dia. Talvez me achasse um grandessíssimo besta, enfurnado em casa ao voltar do trabalho, a cara colada nos livros, em vez de fazer amizade com os vizinhos. Tinha toda a razão de ficar lá na casa dele, se divertindo com a minha sorte, e, no entanto, estava ali suando para abrir aquela porta. O som do martelo batendo no cabo da faca repercutia no quarto e eu pensava numa maneira de me penitenciar por ter desprezado a amizade daquele vizinho. Dagora em diante ele seria um dos amigos que se sentariam à nossa mesa aos sábados, à qual só tem acesso as pessoas por nós escolhidas rigorosamente. E nem seria necessário que ele partilhasse de nossos gostos e de nossas idéias, ele só não participaria de nossos encontros se não quisesse. Outros vizinhos também tinham deixado suas casas e estavam ajudando o homem, na base de sugestões e no revezamento das marteladas. O corredor devia estar cheio de gente. Pelo tom de voz das pessoas, dava para sentir que elas estavam tensas, tanto quanto eu. Quando, finalmente, a porta abriu-se, ouvi um grito uníssono de alegria, mais ou menos como acontece quando a energia elétrica retorna à noite, depois de um longo apagão. O meu vizinho escancarou a porta e uma rajada de vento invadiu o quarto, como a anunciar a chegada da liberdade. Minha mulher caiu nos meus braços, as crianças me fizeram festas, os vizinhos também me abraçaram. Eu não disse uma palavra, nem esbocei o menor gesto de retribuição àquelas efusões de carinho. Parecia uma estátua, de tão emocionado.
(Do meu livro Não enterrarei os meus mortos, Fundação José Augusto, Natal, 1980)

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