terça-feira, março 29, 2005

(Do meu livro Clarita, 1993.)

A VELHA SENHORA E A FILHA

"Não sei por que você foi inventar de marcar essa consulta pra hoje".
Pela terceira vez a velha senhora queixava-se à filha. A filha fez uma careta, franzindo os cantos da boca, e desviou os olhos para o televisor ligado. Ainda em casa a mãe começara a cantilena, como se não estivesse convencida de que a consulta fora marcada para aquele dia, graças à desistência de uma pessoa. Não fora isso, ela só seria atendida dali a quase um mês.
O televisor exibia a novela das sete e todos os presentes, à exceção da velha senhora e da filha (esta olharia com a mesma indiferença para um quadro que estivesse no lugar do aparelho) , acompanham atentamente as cenas. A filha, às vezes, olhava para a recepcionista, que, quando não estava ocupada em atender a alguém, tinha o rosto inclinado para o televisor. Por alguns minutos ela conseguiu errar o olhar entre a telinha, a recepcionista e as pessoas sentadas à sua frente. Parecia acreditar que, evitando virar-se para a velha mãe, esta parasse de aborrecê-la com queixas e resmungos. Mas foi como se a velha senhora tivesse concedido uma pequenina trégua, e, ao término dela, retomasse o ataque com uma mais decidida determinação.
"Você está cansada de saber que eu não gosto de sair de casa no dia dos meus anos".
Dessa vez a filha deu um muxoxo, conservando-se calada. Um som de risadas chamou-lhe a atenção para o televisor e ela viu uma cena cômica, que, no entanto, não lhe arrancou sequer um sorriso. As risadas não tinham ainda cessado, quando ela voltou a ouvir a voz da mãe, e foi quase um alívio que sentiu ao perceber que a velha senhora escolhera outro alvo para onde apontar o seu azedume.
"Seu pai continua ignorando o dia dos meus anos. Que custava dar um simples telefonema? Mas não. Ele só tem atenção para aquela sujeita".
Era um assunto a que ela voltava a cada ano, no dia do seu aniversário. A filha aprendera a não mais discuti-lo, porque a mãe achara desde a primeira vez que ela assumia a defesa do pai. Nesse ponto lhe dava razão, pois ficara ao lado do pai - o único dos filhos do casal - na questão daquela separação. No entanto, ela contava com uma arma poderosíssima para enfrentar o assédio da mãe, desde que há uns três anos um dos irmãos deixara de frequentar-lhes a casa, em consequência de uma briga violenta entre a sua mulher e a velha mãe.
"E o queridinho da senhora (assim se referia ao irmão mais velho, e com justiça, por ser, entre todos os filhos, aquele que tinha a preferência do amor da mãe) ? Nem no aniversário da senhora ele aparece lá em casa e a senhora não diz nada".
"Mas o Ronaldo nunca deixa de me telefonar no dia dos meus anos. Já hoje ele me deu os parabéns. Se não vem me visitar, é por causa daquela cascavel".
"Ele não quer é contrariar a mulherzinha dele. O que ele é, é um barriga-branca".
Foram interrompidos pelos acordes da Marcha Nupcial, provindos da televisão. A velha senhora virou o rosto para o aparelho e por um instante concentrou-se na cena de um casamento. Já a filha permaneceu na mesma posição, como se não tivesse ouvido a música.
"Não sei o que o meu filho viu naquela sujeita. Desde a primeira vez que botei os olhos naquela sirigaita que percebi que não era a mulher certa para o Ronaldo. Muito metida, sem educação, a boca suja. E nem bonita é. Ninguém tira da minha cabeça que aquilo foi macumba".
"Ô que bobagem, mamãe", interrompeu a filha, que dessa vez não pôde reprimir um sorriso.
"Bobagem não senhora. Tenho certeza que foi uma macumba e macumba das boas. O meu filho estava quase noivo da Estelinha. Uma moça de ouro. Fina, educada, afetuosa (a nora talhada para a senhora dominar, pensou a filha) e bonita ainda por cima. A Estelinha jamais iria afastar o meu filho de mim. Eu pedi tanto ao Ronaldo pra não casar, mostrei os defeitos daquela mulher, mas não houve jeito".
Uma gritaria no vídeo interrompeu mais uma vez a velha senhora e a fez voltar-se para o televisor, agora acompanhada pela filha. Os recém-casados partiam para a lua-de-mel, saudados por uma pequena multidão. A cena talvez tenha despertado na filha a lembrança de um outro casamento, este na vida real e não concretizado, porque ela disse virando-se para a mãe.
"A ele a senhora pediu e ele não atendeu. Mas comigo a senhora não teve essa consideração. Simplesmente me proibiu de casar".
"E você ainda acha que teria futuro com um casamento daquele? Um pé-rapado, que nem presença tinha".
"A senhora não gostava dele, porque ele era pobre. Mas era um homem bom e me queria bem. E eu também gostava muito dele. Eu é que fui uma besta, não fugindo com ele. Tanto mais que o papai não era contra o casamento, até simpatizava com ele"
"Seu pai? Essa é boa - a velha mãe soltou uma risada, que chamou a atenção de uma moça, sentada de frente para elas. Seu pai o que é, é a falsidade em figura de gente. Tratava bem o seu namorado, mas depois vinha falar mal dele pra mim".
A filha sentiu o impulso de insultar a mãe, revoltada por ela pretender dividir com o ex-marido a culpa pelo casamento irrealizado, mas foi contida pelo receio de causar um escândalo ali na sala de espera, o qual, parecia-lhe, aquela moça estava farejando, pois não tirava mais a atenção dela, desde aquela risada da velha senhora. E talvez essa sujeição às regras sociais, impedindo-a de desrespeitar a mãe, quando já não se sentia mais tão tolhida pelo despotismo dela, tenha lhe revelado, em toda a plenitude, a impotência que marcou toda a sua vida. Por ela jogara fora a chance de viver ao lado do homem que a amava e desperdiçara a sua vida ao lado de uma mulher tirânica.
A mãe não parava de falar, atraindo agora a atenção de outras pessoas, além da moça, já que a novela terminara e ninguém se interessava pelo jornal. De súbito, a filha sentiu uma vontade incontrolável de chorar. Disposta a não resistir às lágrimas, levantou-se para sair em busca de um lugar isolado. Vendo-a se afastar, a mãe perguntou com voz autoritária pra onde você vai? ela respondeu que ia tomar um pouco de ar. "Não demore, que nós já vamos entrar", recomendou a velha senhora, aproveitando para cobrar da recepcionista a vez de ser atendida.
Com os olhos úmidos, a filha atravessava a porta que dava acesso ao corredor, quando sofreu um encontrão com um casal de crianças que, à dianteira dos pais, chegavam alegres e gritalhonas. Passou as mãos pelo corpo dolorido, em seguida foi refugiar-se no fundo do corredor. Despovoado, quase às escuras, aquele recanto favorecia a sua necessidade de desabafo. À sua frente erguia-se uma árvore frondosa. Ali se deixou ficar, chorando baixinho, até ser chamada pela recepcionista. Puxou o lenço e enxugou cuidadosamente as lágrimas. Na sala, a mãe a esperava, de pé. Estendeu o braço para a filha e as duas se afastaram a passos lentos.

sexta-feira, março 25, 2005

RASHOMON


Depois de ler a experiência de Moacy Cirne com Rashomon, relatada em seu livro LUZES, SOMBRAS E MAGIAS - Os Filmes que Fazem a História do Cinema, resolvi publicar aqui um artigo sobre o filme, escrito há pouco mais de dez anos, e que saiu no Diário de Natal. Na época, Rashomon tinha sido lançado em vídeo. Ei-lo.
De forma admirável, Rashomon (1950) expõe e analisa a fragilidade moral do ser humano, quando posto diante de uma situação que exige a coragem de assumir a verdade de um fato. No incidente envolvendo a esposa, o marido e o bandido, durante um passeio do casal pela floresta, e tendo por testemunha um lenhador, vê-se que quando três dessas pessoas prestam depoimento à autoridade policial (à exceção do marido, morto na ocasião) , cada uma o faz dando uma versão diferente do fato, que não possa comprometê-la. Impossível saber qual é a verdadeira, pois cada um dos depoentes falseia o fato, para tirar proveito dele. Nem na versão do morto pode-se confiar, porque ela é divulgada por intermédio de um medium. Ou seja, alguém inerente às fraquezas inerentes ao ser humano.
Rashomon, assim, seria uma obra totalmente cética em relação à natureza humana, ao revelar que o homem carece da disposição de assumir a verdade sobre uma ocorrência em que for envolvido. Se digo "seria" é porque, depois de expor as fraquezas dos participantes daquele incidente (e também da testemunha e até do medium) , o filme, no final, faz um sinal otimista, um sinal de esperança na recuperação do homem. E nada melhor que esse aceno seja feito pelo lenhador, quando resolve adotar o recém-nascido que fora abandonado no portal, do qual o homem do povo roubara os panos que o cobriam. É bom dizer, aliás, que esse final otimista foi elaborado por Akira Kurosawa e seu co-roteirista Shinobu Hashimoto. Ele inexiste nos dois contos em que o roteiro de Rashomon se baseia. Na época, com 40 anos, Kurosawa ainda podia ter ilusões em relação ao ser humano. Se o filme fosse feito hoje, é quase certo que ele não o encerrasse dessa maneira. Em tempo: os contos são do escritor japonês Ryonosuke Akutagava, que cometeu suicídio aos 35 anos.
Saindo do aspecto temático, Rashomon se apresenta como uma mais do que bem-sucedida combinação de elementos que o tornam um filme extraordinário. As imagens das cenas passadas na floresta não têm apenas a beleza plástica, como aquela em que o sol aparece por entre as árvores. Elas podem conter, além da beleza plástica, um elemento poético, combinado com um quê de onirismo: o marido conduzindo pela rédea o cavalo, em que a mulher, usando um chapéu e um véu brancos, está montada.
A música de Fumio Hayasaka é outro ponto a destacar, sobretudo nas partes em que ela é acompanhada pelo ritmo de tambores. No tocante ao comportamento do elenco, cabe uma menção especial ao desempenho dos três atores centrais. A atuação extrovertida de Toshiro Mifune, no papel do bandido, que privilegia os gestos exuberantes e o gargalhar constante, contrapõe-se à de Masayuki Mori (o marido). É uma interpretação trabalhada muito mais na expressão facial, compondo uma máscara muda e gélida, que pode exprimir a ironia e o desprezo em relação à mulher. Quanto a esta, é vivida por Machiko Kyo, cujo momento alto se dá quando ela leva as mãos crispadas aos olhos, para não ver a expressão de ódio do marido. Uma imagem em que se casam a beleza visual do close e a dramaticidade da interpretação.
Ganhador do Festival de Veneza e do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro (ambos os prêmios em 1951), Rashomon abriu as portas do Ocidente para Akira Kurosawa, que, com os filmes seguintes, consolidou o seu nome como um dos maiores diretores do cinema. Merecidamente.
NOTA ATUAL (1) - Preciso chamar a atenção para o uso expressivo do som na prolongada luta entre o bandido e o samurai. Depois de consumada, com a morte do segundo, ouve-se o arquejar intenso e contínuo do primeiro.
NOTA ATUAL (2) - Na crítica sobre Rashomon, inserida em seu livro Um Filme por Dia (Companhia das Letras, 2004), Antônio Moniz Vianna afirma que a música de Rash0mon foi inspirada em diversas partes do Bolero, de Ravel.

terça-feira, março 22, 2005

A SEMANA SANTA DA MINHA INFÃNCIA

Todos os anos, quando chega a semana santa, eu me lembro da minha infância nesse período do ano. As lembranças se acumulam, principalmente na sexta-feira: as imagens de santos cobertas por um pano preto, ou roxo (não me recordo com precisão) ; a matraca nas mãos do sacristão, percorrendo o pátio da Basílica, em intervalos de quinze a vinte minutos, se muito, emitindo um ruído alto e enervante; a imagem de Cristo exposta no centro da igreja para receber o ósculo dos fiéis, ordenados em fila indiana. Me lembro, e como me lembro, de que em uma certa hora da tarde (a memória não me deixa dizê-la) , anunciada pelo relógio da Basílica, minha mãe, com a voz emocionada, afirmava que naquele momento começava a agonia de Jesus.
Muitas pessoas não tomavam banho na sexta-feira, um hábito que talvez ainda seja conservado pelas pessoas mais humildes. E os rádios tocavam músicas fúnebres.
Já o sábado de Aleluia era outro dia, e não apenas no sentido cronológico. À tarde uma pequena multidão se reunia na praça do mercado público, para ouvir alguém ler o testamento de Judas. A cada objeto legado por Judas a um habitante da nossa cidadezinha, as risadas explodiam. No dia seguinte era o domingo de Páscoa, da ressurreição de Cristo. Terminava a semana santa e na segunda-feira os cristãos voltavam a "pecar".
A seguir o "Soneto da Sexta-Feira da Paixão", do poeta pernambucano Carlos Pena Filho (1929-1960), extraído do livro "Os Melhores Poemas - Carlos Pena Filho, Global Editora, 1983.
Morto. Como também já morre o dia.
Mas continua a ser noutros lugares?
Ou morto diariamente nos altares,
por ser diversa a morte que morria?
O corpo morto: azul melancolia
do mesmo azul perdido pelos ares,
vivo azul sobre os campos, sobre os mares,
sobre a clara manhã e a hora tardia.
Um corpo morto. Um corpo morto de homem,
igual a esses cadáveres de guerra,
que as batalhas atraem e consomem?
Ou um que junta o mundo à sua sorte,
contempla a sombra em torno e desce à terra
e morre em solidão e vence a morte?

terça-feira, março 15, 2005

CANTANDO NA CHUVA - Uma revisão

Cantando na Chuva, de Stanley Donen & Gene Kelly (1952), é o maior musical da história do cinema. Críticos e cinéfilos, creio, não têm dúvida quanto a essa afirmativa. Uma sucessão de belas músicas (principalmente a que dá título ao filme) e uma primorosa coreografia formam uma união perfeita. Se não tivesse outros momentos inspirados de dança e música, Cantando na Chuva ainda assim se manteria no topo dos filmusicais, graças a duas sequências antológicas. A primeira, mais lembrada, é aquela em que Don Lockwood (Gene Kelly) canta e dança sob a chuva, que é uma das maiores sequências já realizadas pelo cinema. A segunda, menos famosa, mas de grande brilho, é a dança de Kelly com a bela e sensual Cyd Charisse. É uma dança, inclusive, a que não falta um ingrediente de erotismo, não só por alguns movimentos, como pelo corpo da dançarina.

É preciso ressaltar, no entanto, que a grandeza de Cantando na Chuva deve-se também à sua adesão à comédia, até mesmo à comédia pastelão, na cena em que Katty Selden (Debbie Reynolds) atira uma torta no rosto de Lina Lamont (Jean Hagen), mas que era destinada a Lockwood. E entre os momentos mais engraçados está na pré-estréia do primeiro filme sonoro pelo estúdio onde trabalham Lockwood e Lamont. Aliás, na exibição do filme infiltra-se outro elemento que transcende o gênero musical, ou seja, as dificuldades e problemas enfrentados nos primeiros momentos do cinema falado. Entre esses se destaca a voz de Lina Lamont, tão inadequada ao cinema sonoro que ela precisa ser dublada por Katty Selden. (A título de curiosidade: alguns atores do cinema mudo, por causa da voz, não se adaptaram ao cinema falado, sendo o caso mais célebre o de John Gilbert, que teve que abandonar a carreira, falecendo pouco depois.)

O elemento crítico estende-se ao cinema na sua função de magia, de ilusionismo, de escamoteação da realidade (observem-se a sequência em que Don Lockwood leva Kathy Selden para conhecer um "set" de filmagem e a outra em que Lockwood e Lina Lamont ensaiam uma cena de amor, em meio a um clima de hostilidade entre os dois. Nessa junção de musical, comédia e crítica satírica ao cinema, Cantando na Chuva ultrapassa os limites do gênero e inscreve-se entre os maiores filmes de todos os tempos, realizado numa época em que o cinema americano, mesmo sem perder de vista o objetivo comercial, vivia uma grande fase criativa, tão distante do que é hoje em dia.

sábado, março 12, 2005

O LIVRO DE MOACY




Na próxima segunda-feira, dia 14, pela manhã, o poeta e escritor Moacy Cirne estará lançando o livro LUZES, SOMBRAS E MAGIAS: OS FILMES QUE FAZEM A HISTÓRIA DO CINEMA, na Capitania das Artes. O evento fará parte das comemorações do Dia Nacional da Poesia, e alguém pode se perguntar por que lançar uma obra sobre o cinema em uma data dedicada à Poesia. Mas se o livro não é de poesia, é sobre poesia. Sim, sobre a poesia. A poesia em forma de imagens, feita por grandes artistas/poetas do cinema. Não há, pois, o que estranhar na decisão do autor quanto à data do lançamento do seu livro.
Já li o Luzes, Sombras e Magias. Aproveitando este espaço, vou tecer algumas considerações sobre ele, sem a pretensão de fazer uma crítica. De início, quero chamar a atenção para o estilo de Moacy, fluente, sem a aridez, nem a proliferação de termos técnicos (um defeito em que incorrem muitos professores universitários, e ele foi um) , e adotando, às vezes, o humor. Os não-iniciados em cinema não têm o que temer. Estes ficarão sabendo, depois de lerem o livro, e de maneira clara, mas sem ceder ao ordinário, como ver um grande filme. Como quando Moacy disserta sobre os elementos criativos de um filme (a narrativa, a história, a interpretação dos atores, a fotografia, a música, etc.) , citando exemplos de filmes, alertando, no entanto, que é preciso haver uma perfeita interação entre eles, uma harmonia, de maneira que um não sobrepuje os demais. Ou seja, um filme não deve ser destacado só pela fotografia, ou pelo roteiro, ou pela atuação dos intérpretes, etc.. Se assun for, será uma obra de pouco valor.
Na parte "Dez momentos que me marcaram" há um relato curto, mas que revela bem a personalidade do autor, já na adolescência. Ele foi ver Rashomon, no cinema da sua querida Caicó, acompanhado de um tio. Os dois saíram do cinema sem entender nada do que se passara na tela. Moacy, no entanto, não se conformou em não fruir um filme que, segundo lera, fora aclamado pelos críticos, recebendo prêmios, e passou a se dedicar à leitura de obras que lhe revelassem o processo artístico de um filme como aquele. E com a leitura, aliada à sensibilidade, foi adquirindo a visão crítica para avaliar os filmes que ele passaria a assistir.
Além de de filmes, Moacy fala de livros sobre cinema. Entre eles de Cine-Lembrança, uma seleção de críticas do potiguar Berilo Wanderley, organizada pela viúva. É uma merecida homenagem ao, talvez, maior crítico do Estado. Também os de José Lino Grunewald e de Antonio Moniz Vianna. No livro A Magia do Cinema, de Roger Ebert, Moacy analisa a lista dos maiores filmes que o autor cita, apontando várias omissões. Com toda a razão assinala as ausências de Janela Indiscreta, de A Regra do Jogo, de Desencanto (e eu acrescentaria ade Rashomon, que Moacy esqueceu) e, imaginem só, de qualquer um dos filmes de Visconti. Discordo, em parte, da preferência de Ebert por Nosferatu, em detrimento de Aurora. Embora goste mais do primeiro, acho que os dois filmes de Murnau poderiam ser relacionados.
Moacy também faz a sua lista; ou melhor, as suas listas, já que os seus filmes preferidos estão divididos em 4 categorias: l) obras-primas, em número de 102; 2) filmes excelentes; 3) filmes ótimos; 4) filmes especialmente bons. Na primeira, são feitos comentários sobre cada filme, dos quais o de Hiroshima, Meu Amor talvez seja o mais bem escrito. E ao falar de A General (Buster Keaton) , Moacy reconhece, hoje, que Chaplin lhe parece mais completo do que o outro. Não há dúvida, amigo. E é na relação das obras-primas que me permito divergir dele quanto aos seguintes filmes: O Anjo Azul (Sternberg) , ao qual prefiro O Expresso de Shangai, como já disse aqui neste espaço uma vez , mas que, talvez, não o incluísse numa lista de 100. Chego a pensar se a inclusão de O Anjo Azul não se deve à presença exuberante de Marlene Dietrich, por causa do entusiasmo com que Moacy fala dessa grande estrela do cinema. Os outros filmes são O Evangelho Segundo São Mateus, Terra Em Transe, O Império dos Sentidos, Um Dia Muito Especial (um belo filme, mas que, ao meu ver, não tem a estatura de uma obra-prima) e Dogville. (Mas lista é uma questão de gosto pessoal e de outros elementos que compóem o temperamento e a formação de quem a elabora.) Aliás, sobre Dogville, Arca Russa (Sokúrov) e Nossa Música (Godard) , dos quais só conheço o primeiro, tenho outra ressalva. Tratando-se de obras bem recentes, me parece arriscada a inclusão delas entre obras que, através de décadas e décadas, têm conservado a condição de monumentos cinematográficos. Quem, no entanto, conhece Moacy, sabe muito bem que isso é do temperamento dele. E o temperamento das pessoas é terra onde não se deve pisar. Será que alguém já disse isso? Enfim, um belo livro. Gosto mais dele do que do anterior, Cinema, Cinema, que já era bom. E agora, é quem gosta do cinema como arte, ir correndo para a Capitania na próxima segunda. E os que não gostam também devem ir, pelo que Moacy representa na paisagem cultural de Natal. E na paisagem humana.

quarta-feira, março 09, 2005

FILMES QUE GOSTARIA DE REVER




Com o título acima estou iniciando uma seção, que publicarei neste espaço, à medida que for me lembrando de certos filmes que vi na adolescência e nunca mais os revi. Em sua maioria, são filmes de pouca ou (talvez) nenhuma importância, porque me faltava, na época, a visão do cinema como arte, que só vim adquirir alguns anos depois. Mas foram filmes para mim inesquecíveis, vários deles dirigidos por cineastas importantes ou talentosos. Hoje falarei de quatro filmes: três franceses e um americano.
Começo com Por Ternura Também se Mata (Porte de Lilas, René Clair, 1957) . É a história de um velho pobre que mora com uma neta em uma cidade portuária, que não me lembro qual é. A neta é bem jovem, talvez ainda adolescente. Um dia o velho abriga em sua casa um homem que está fugindo da polícia. Os dias vão passando e o estranho, um pouco maduro, mas atraente e experimentado na arte de seduzir, começa a atrair a atenção da inexperiente jovem. O velho percebe o que está acontecendo e fica preocupado. Se a memória de quase 50 anos atrás não estiver me traindo, ele descobre que os dois irão fugir. E, então, resolve matar o intruso. Da sinopse da história me lembro, e , certamente, com algumas lacunas; e me parece que o filme transcorre, se não totalmente, pelo menos em grande parte à noite. É o último filme, no mínimo, interessante de Clair, que, antes, fizera a leve e deliciosa comédia As Grandes Manobras (1955) , ainda um belo filme, que vejo, vez por outra, numa gravação em VHS.
O segundo filme é Delírio de Loucura (Bigger than Life, 1956) , de Nicholas Ray, um dos diretores que deram prestígio ao cinema americano nos anos de 1950. Um homem de classe média (não me lembro de sua profissão) apresenta um problema de saúde, depois de submetido a um exame médico. O medicamento prescrito, com o passar do tempo, começa a produzir alterações em seu comportamento. De um homem pacífico, bem relacionado com a esposa e o filho pequeno, ele se transforma numa pessoas irascível e violenta, trazendo para a família o medo, até o pânico. Desse filme me recordo, vagamente, do exame a que o homem é submetido e de uma cena de violência dele contra o filho. A vontade maior de rever Delírio de Loucura, é porque o personagem é interpretado por James Mason, o meu ator preferido.
De Amar é Minha Profissão (En Cas de Malheur, Claude Autant-Lara/1958) , guardarei para sempre a cena em que Brigitte Bardot, no frescor dos seus vinte e poucos anos, atravessa correndo, nua-nua, o quarto de um apartamento, flagrada por Jean Gabin. Uma cena de poucos segundos, mas inesquecível. Era a primeira vez que via uma mulher despida na tela, e logo Brigitte. Possuo o livro de Georges Simenon, em que o filme é baseado. Um bom livro, talvez melhor do que o filme, só que este tem Brigitte e ao natural.
Foi mais ou menos na mesma época que vi um filme atípico de Marcel Carné (autor da obra-prima O Boulevard do Crime, 1945) : Ele, Ela e o Outro (Le Pays d'ou Je Viens, 1956) , comédia leve, agradável, em oposição aos filmes sombrios e densos de Carné, com Françoise Arnoul (uma atriz mignon, não especialmente bonita, mas sensual, que teve um relativo sucesso no cinema francês dos anos de 1050) e o cantor Gilbert Bécaud, fazendo um papel duplo. Disse me lembro bem, além de uma cena em que ele canta ao piano.

sábado, março 05, 2005

E SE...

Há uns dez minutos ele está observando a mulher em seu sono intranquilo, a remexer-se, ora virando-se para o lado, ora voltando à posição de costas para a cama. A nudez da mulher é resguardada apenas pela calcinha branca, mas esta, transparente e bem ajustada ao corpo, deixa-lhe quase exposta a bunda, quando ela está de costas para ele. Enquanto a observa, ele procura precaver-se de qualquer sinal que o indique estar desperto, estático naquela posição, para que a mulher não acorde do sono inquieto e venha tirar-lhe a concentração nas palavras que ela disse há pouco, quando seus corpos estavam entrelaçados.
Pouco depois sentiu vontade de urinar. Levantou-se e, com cuidado para não fazer ruído, foi para o banheiro, à sua esquerda, a três passos da cama. Ficou sentado no vaso, para continuar olhando para a mulher, cujo corpo conseguia distinguir, graças a um pouco da iluminação vinda da rua através da porta aberta do pequeno terraço, à direita da cama. Quando terminou de urinar, decidiu deixar o quarto. Palmilhou-o silenciosamente, tendo a mesma cautela ao abrir a porta. Ao passar pela porta do quarto das crianças, ouviu o ressonar de uma delas. Na sala de visitas, dirigiu-se à janela e abriu-a. Uma aragem invadiu a sala, tocando-lhe o rosto, e ele sentiu um inesperado prazer, como se recebesse a carícia de uma mulher. Lá em baixo a rua estava silenciosa e deserta, tão diferente das horas do dia.
A pergunta da mulher voltou a assediá-lo. "E se eu gostasse de trepar com ele, o que é que você fazia?" Não entendia a razão de conferir um valor real àquelas palavras (ao ponto de lhe roubarem o sono) , se fora ele que as criara para a mulher dizê-las. Como outras sem conta, ao longo do casamento. (Desde os primeiros dias de casados, acostumara a mulher a falar certas coisas durante o ato sexual. Isso o deixava excitado.)
Mas, na verdade, fora o procedimento da mulher naquela noite que o perturbava. Ela fizera a pergunta, como ele ordenara, ele não disse nada, e foi aí que acontecera o inesperado: ela repetiu a pergunta, com uma pequena variação: "Hem, e se eu gostasse da pinta dele, o que é que você fazia?" A pergunta era a mesma. Mas estranhou que ela a repetisse, parecendo-lhe demonstrar um interesse incomum, e ficou com a sensação de que o seu silêncio (também um fato inédito nos jogos entre eles) tenha-a levado à desconfiança de que ele não estava simulando naquele momento; e sendo assim, ela quisesse saber como ele reagiria a uma situação real e não apenas imaginada para tornar mais excitante o ato sexual. Pensou em perguntar, na hora e depois de terminarem, a razão daquela segunda pergunta, mas acabou desistindo.
E agora estava ali insone na madrugada longa, olhando a rua, pela qual passava um carro em marcha lenta, como se o motorista não quisesse ferir o silêncio da hora. Quis consultar o relógio, esquecendo que o deixara no quarto. Sabia que não era muito tarde, mas que o sono já não viria sem a ação de um medicamento.
Ao ir pegar o remédio no armário do banheiro, encontrou a mulher saindo de lá. Tinha vestido uma blusa, talvez para se proteger do vento nas costas. "Perdeu o sono, bem?" Ele disse que sim e que ia tomar um sonífero e ver um pouco de televisão. Quando ainda estava no banheiro, ouviu-a soltar um longo bocejo.
Dia seguinte, como de praxe, ele saiu com a mulher e os dois filhos. Deixou primeiro os filhos na escola, depois a mulher no trabalho. Se beijaram, disseram tchau, a mulher saiu do carro, ele ficou observando-a retirar-se. Ao passar por um homem, este se virou e pôs-se a olhar para ela. Lá do carro ele não despregou os olhos do estranho, que só retomou a caminhada quando ela entrou num prédio. Ligou o carro e foi embora.

terça-feira, março 01, 2005

OS 10 MAIORES FILMES DE ALFRED HITCHCOCK

Inicio, hoje, uma série dos 10 maiores filmes de grandes cineastas. Na minha visão, claro. Será publicada uma vez por mês, sempre na primeira postagem do mês. (Eventualmente, poderei fazê-lo uma segunda vez.) Os filmes serão relacionados em ordem preferencial, em português, exceto aqueles que são mais conhecidos pelo título original, e com a data. Mas, mesmo nesse caso, não deixará de ser também citado o título dado no Brasil. Alguns grandes diretores, infelizmente, vão ficar de fora. Uns (como Jean Renoir), por não conheçer dez obras de sua filmografia; outros (o caso do também francês Jacques Tati), pelo fato de a sua filmografia não atingir esse número mínimo. A série começará com Hitchcock, e não há um motivo especial para essa escolha, pelo menos, consciente. Nem poderia alegar que é´por conheçer a maior parte de sua obra, pois, assim, teria optado por Visconti, ou Kubrick, dos quais vi todos os filmes ( no caso do italiano, estou falando dos em longa-metragem) . Que seja, pois, o "gordinho sinistro" a liderar essas seleções.
1. Janela Indiscreta (1954)
2. Vertigo (Um Corpo que Cai, 1958)
3. A Sombra de uma Dúvida (1943)
4. Os Pássaros (1963)
5. Pacto Sinistro (1951)
6. O Homem que Sabia Demais (1956)
7, Psicose (1960)
8. O Homem Errado (1958)
9. Festim Diabólico (1948)
10, Os Trinta e Nove Degraus (1935)