Todos os anos, quando chega a semana santa, eu me lembro da minha infância nesse período do ano. As lembranças se acumulam, principalmente na sexta-feira: as imagens de santos cobertas por um pano preto, ou roxo (não me recordo com precisão) ; a matraca nas mãos do sacristão, percorrendo o pátio da Basílica, em intervalos de quinze a vinte minutos, se muito, emitindo um ruído alto e enervante; a imagem de Cristo exposta no centro da igreja para receber o ósculo dos fiéis, ordenados em fila indiana. Me lembro, e como me lembro, de que em uma certa hora da tarde (a memória não me deixa dizê-la) , anunciada pelo relógio da Basílica, minha mãe, com a voz emocionada, afirmava que naquele momento começava a agonia de Jesus.
Muitas pessoas não tomavam banho na sexta-feira, um hábito que talvez ainda seja conservado pelas pessoas mais humildes. E os rádios tocavam músicas fúnebres.
Já o sábado de Aleluia era outro dia, e não apenas no sentido cronológico. À tarde uma pequena multidão se reunia na praça do mercado público, para ouvir alguém ler o testamento de Judas. A cada objeto legado por Judas a um habitante da nossa cidadezinha, as risadas explodiam. No dia seguinte era o domingo de Páscoa, da ressurreição de Cristo. Terminava a semana santa e na segunda-feira os cristãos voltavam a "pecar".
A seguir o "Soneto da Sexta-Feira da Paixão", do poeta pernambucano Carlos Pena Filho (1929-1960), extraído do livro "Os Melhores Poemas - Carlos Pena Filho, Global Editora, 1983.
Morto. Como também já morre o dia.
Mas continua a ser noutros lugares?
Ou morto diariamente nos altares,
por ser diversa a morte que morria?
O corpo morto: azul melancolia
do mesmo azul perdido pelos ares,
vivo azul sobre os campos, sobre os mares,
sobre a clara manhã e a hora tardia.
Um corpo morto. Um corpo morto de homem,
igual a esses cadáveres de guerra,
que as batalhas atraem e consomem?
Ou um que junta o mundo à sua sorte,
contempla a sombra em torno e desce à terra
e morre em solidão e vence a morte?
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