sexta-feira, março 25, 2005

RASHOMON


Depois de ler a experiência de Moacy Cirne com Rashomon, relatada em seu livro LUZES, SOMBRAS E MAGIAS - Os Filmes que Fazem a História do Cinema, resolvi publicar aqui um artigo sobre o filme, escrito há pouco mais de dez anos, e que saiu no Diário de Natal. Na época, Rashomon tinha sido lançado em vídeo. Ei-lo.
De forma admirável, Rashomon (1950) expõe e analisa a fragilidade moral do ser humano, quando posto diante de uma situação que exige a coragem de assumir a verdade de um fato. No incidente envolvendo a esposa, o marido e o bandido, durante um passeio do casal pela floresta, e tendo por testemunha um lenhador, vê-se que quando três dessas pessoas prestam depoimento à autoridade policial (à exceção do marido, morto na ocasião) , cada uma o faz dando uma versão diferente do fato, que não possa comprometê-la. Impossível saber qual é a verdadeira, pois cada um dos depoentes falseia o fato, para tirar proveito dele. Nem na versão do morto pode-se confiar, porque ela é divulgada por intermédio de um medium. Ou seja, alguém inerente às fraquezas inerentes ao ser humano.
Rashomon, assim, seria uma obra totalmente cética em relação à natureza humana, ao revelar que o homem carece da disposição de assumir a verdade sobre uma ocorrência em que for envolvido. Se digo "seria" é porque, depois de expor as fraquezas dos participantes daquele incidente (e também da testemunha e até do medium) , o filme, no final, faz um sinal otimista, um sinal de esperança na recuperação do homem. E nada melhor que esse aceno seja feito pelo lenhador, quando resolve adotar o recém-nascido que fora abandonado no portal, do qual o homem do povo roubara os panos que o cobriam. É bom dizer, aliás, que esse final otimista foi elaborado por Akira Kurosawa e seu co-roteirista Shinobu Hashimoto. Ele inexiste nos dois contos em que o roteiro de Rashomon se baseia. Na época, com 40 anos, Kurosawa ainda podia ter ilusões em relação ao ser humano. Se o filme fosse feito hoje, é quase certo que ele não o encerrasse dessa maneira. Em tempo: os contos são do escritor japonês Ryonosuke Akutagava, que cometeu suicídio aos 35 anos.
Saindo do aspecto temático, Rashomon se apresenta como uma mais do que bem-sucedida combinação de elementos que o tornam um filme extraordinário. As imagens das cenas passadas na floresta não têm apenas a beleza plástica, como aquela em que o sol aparece por entre as árvores. Elas podem conter, além da beleza plástica, um elemento poético, combinado com um quê de onirismo: o marido conduzindo pela rédea o cavalo, em que a mulher, usando um chapéu e um véu brancos, está montada.
A música de Fumio Hayasaka é outro ponto a destacar, sobretudo nas partes em que ela é acompanhada pelo ritmo de tambores. No tocante ao comportamento do elenco, cabe uma menção especial ao desempenho dos três atores centrais. A atuação extrovertida de Toshiro Mifune, no papel do bandido, que privilegia os gestos exuberantes e o gargalhar constante, contrapõe-se à de Masayuki Mori (o marido). É uma interpretação trabalhada muito mais na expressão facial, compondo uma máscara muda e gélida, que pode exprimir a ironia e o desprezo em relação à mulher. Quanto a esta, é vivida por Machiko Kyo, cujo momento alto se dá quando ela leva as mãos crispadas aos olhos, para não ver a expressão de ódio do marido. Uma imagem em que se casam a beleza visual do close e a dramaticidade da interpretação.
Ganhador do Festival de Veneza e do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro (ambos os prêmios em 1951), Rashomon abriu as portas do Ocidente para Akira Kurosawa, que, com os filmes seguintes, consolidou o seu nome como um dos maiores diretores do cinema. Merecidamente.
NOTA ATUAL (1) - Preciso chamar a atenção para o uso expressivo do som na prolongada luta entre o bandido e o samurai. Depois de consumada, com a morte do segundo, ouve-se o arquejar intenso e contínuo do primeiro.
NOTA ATUAL (2) - Na crítica sobre Rashomon, inserida em seu livro Um Filme por Dia (Companhia das Letras, 2004), Antônio Moniz Vianna afirma que a música de Rash0mon foi inspirada em diversas partes do Bolero, de Ravel.

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