domingo, junho 13, 2010

É A VIDA, É A VIDA

Foto : Google


Eu os via toda semana num supermercado, empurrando o carrinho, ou de mãos dadas enquanto caminhavam para fazer as compras. Ele muito gordo, estatura mediana, o rosto sisudo que não irradiava simpatia, que parecia se acentuar pelo uso de óculos. Ela nem magra, nem gorda, mais alta do que ele, e, se a boca não estivesse sempre pronta para o riso, não tinha a expressão fechada do marido. Não formavam um casal bonito, mesmo, presumo, de quando jovens, mas a mulher, apesar da passagem dos anos, conservara o porte esbelto ao andar e uma certa elegância, que faltavam a ele. Caminhavam conversando em voz baixa e nunca percebi, mesmo discretamente, que estivessem discutindo por qualquer coisa.
E um dia o vi sozinho. Supus que ela ficara em casa, presa por alguma doença sem gravidade - uma gripe, ou um simples resfriado. Mas já estranhei quando na outra semana ele de novo apareceu sem a companhia da mulher. E assim se sucedeu pelas semanas seguintes.
Um dia, conversando com a minha mulher, soube que a senhora estava sofrendo do Mal de Alzheimer. E aqui preciso dizer que eles moram na rua que passa ao lado da minha. Pela janela do meu quarto muitas vezes vi o homem no portão da casa, barrigão nu, sozinho, ou conversando com alguém. Em diversas ocasiões vi o carro deles entrando ou saindo de casa. Em sua caminhada diária, minha mulher passa em frente da casa deles e quase sempre encontrava a empregada que lhes servia há anos sem conta. Dos cumprimentos iniciais passaram a ter um contato, pois a minha mulher cultiva muito bem a prática da conversa. Foi, portanto, através da empregada, que ela soube da enfermidade da senhora.
E então eu continuei a ver o homem solitário no supermercado, me parecendo ainda mais carrancudo. E, de repente, também ele deixou de aparecer. E pela minha mulher soube que ele estava muito doente (não me lembro de quê), foi internado e lá mesmo no hospital morreu.
E o que vejo hoje em dia da janela do meu quarto? A senhora, que via sempre ao lado do marido, andando com uma certa desenvoltura para a idade, só caminha um trecho da calçada de sua casa se amparada por uma enfermeira. E ontem a vi empurrada numa cadeira de rodas, ela que empurrava, sem dificuldade, o carrinho de compras. Não conhece os filhos, não conhece a velha empregada. Nem tem ideia de que o companheiro de quase toda uma vida partiu para sempre.

14 comentários:

nina rizzi disse...

sobreira, os teus textos me emocionam, camarada. esse, em especial, ainda mais. não conheço nenhuma história sim, mas é a coisa da memória e da idade. e o afeto, claro.

lindo, viu! beijos.

Jota Effe Esse disse...

Pra variar, o texto é memorável, digno de muitos elogios. Mas não entendi por que dizes que a mulher é mais alta do que o marido, se na foto parece mais baixa. Bom, isso é apenas um detalhe,que não desmerece o texto em nada, e a imagem dos dois caminhando de mãos dadas é linda. Meu abraço.

Bené Chaves disse...

Tem um ditado que diz:'se de novo não morres, de velho não escapas'. Pois é, Sobreira, a vida segue aniiquilando os seus viventes e deixando-os órfãos e abandonados. É uma ruptura cruel e indiferente aos sentimentos de todos nós. Gostei muito do seu texto, pois nos revela a crua realidade de uma existência. Parabéns!

Um abraço...

Claudinha ੴ disse...

Querido amigo,

o tempo é cruel com todos nós. Tenho passado por momentos de constatação disto que me entristecem bastante. Acho que deveríamos nos tornar adultos e estacionar. Morreríamos quando chegasse a hora, mas com disposição e vitalidade. Você retrata tão bem esta realidade,que pareço conhecer seus vizinhos.
Um beijo!

Jacinta Dantas disse...

E o tempo segue, marcando e demarcando os que por ele passam - ou é o tempo que passa por nós?
É Francisco, A doença que faz a pessoa perder-se de si mesma, tráz a sensação, para quem acompanha o doente, de que a perda já aconteceu mas o corpo continua ali. Triste realidade.

No seu texto, reflito que é preciso amor, solidariedade e compromisso que se transformem em cuidado que ajudam a manter a dignidade da pessoa afetada por esse mal.

Um abraço

tb disse...

Assim é a vida... assim é. Um texto com a qualidade da sua assinatura, meu amigo!
meu beijo rendida à arte de bem saber escrever

. fina flor . disse...

ai, como é triste, né?

morro de medo dos meus pais ficarem doentes! morro de medo de ficar uma velinha doente.

tão bom se todos fizessem sua passagem na hora certa dormindo, quetinho na cama, sem sofrer nem causar sofrimento, né?

beijos, querido

MM.

. fina flor . disse...

ai, como é triste, né?

morro de medo dos meus pais ficarem doentes! morro de medo de ficar uma velinha doente.

tão bom se todos fizessem sua passagem na hora certa dormindo, quetinho na cama, sem sofrer nem causar sofrimento, né?

beijos, querido

MM.

Mariazita disse...

Querido Francisco
Muito triste este seu relato.
Infelizmente cada dia esta doença se torna mais vulgar.
Apesar de emocionar gostei do texto.

Boa semana. Beijinhos

DILERMArtins disse...

Mas bah, Francisco.
Que linda história de amor!
Em meio as desgraças da doença e da morte você nos deixa um fio de esperança: Grandes amores são assim, quando já não são possíveis neste mundo, partem...Vão viver no além!

Jacinta Dantas disse...

Ei Francisco,
Bom Dia!

Passando por aqui só para dizer Sim: Sim, sua impressão está mais que certa. De um jeito bem resumido(e bota resumido), falo da experiência vivida na despedida do meu pai.

Grande abraço

Barbara disse...

Implacável é o fato de que sabemos como chegamos, com crescemos mas nunca saberemos como atravessaremos esta dimensão.

tb disse...

Pois é meu amigo. Gostei de o ver pela minha casota. É sempre um enorme prazer receber quem tanto é para mim. Em relação à morte de Saramago... o mundo e a literatura ficam um pouco mais pobres. Já coloquei uma notinha lá em casa.
Beijinhos

Marco disse...

Ah, amigo Sobreira... Escreveste como um mestre!
Belo e emocionante texto. Bem, assim é a vida. Bem disse o Padre Antonio Vieira que somos folhas ao vento. Ainda hoje eu estava conversando com um amigo sobre as intermitências da vida, da saúde da gente que se esvai... Num dia, lépidos, empurando carrinho. No outro, cadeira de rodas ou mesmo hospital. E tumba!
Por isso, mais do nunca:
Carpe diem. Aproveite o dia e a vida.