terça-feira, dezembro 15, 2009

O BAÚ

Foto in Google




De uns meses já, vinha observando que a situação estava mudando. Apreensivo, sentia o Supremo Mandatário perder, gradativamente, a sua autoridade, embora a sua Guarda Policial se mantivesse ativa na repressão. E nas prisões aumentasse cada vez mais o número de contestadores. No entanto, as manifestações de protesto se sucediam: nas passeatas, nos jornais, nas realizações artísticas. Sentia que, mesmo entre os membros do Colegiado, havia vozes divergentes. Outro grave sintoma da crise por que estava passando o Regime: o líder do único Partido, responsável pela assunção ao poder do Supremo Mandatário, tinha repentinamente silenciado. Sua ausência nas últimas solenidades oficiais era motivo de especulações. O Grande Chefe (como era tratado pelos seus liderados) teria caído em desgraça e estaria fazendo companhia, na prisão, aos inimigos do Regime. Ou estaria refugiado no exterior, ao abrigo da justiça dos futuros detentores do poder.

Um belo dia o Regime caiu. Previu a queda, três dias antes. Despiu-se do uniforme do Partido, retirou da parede do quarto os retratos do Grande Chefe e do Supremo Mandatário, e, de sob a fronha, a bandeira do Partido, com que se cobria ao dormir. Atirou tudo num baú velho. Na madrugada, carregou o baú para o quintal da casa. Próximo a um limoeiro, cavou uma vala profunda, onde o enterrou. Num papel, demarcou o local. Dia seguinte fugiu para um outro país.

Durante o tempo que lá permaneceu, acompanhou atentamente a nova situação do seu país. Com ódio, mas com esperança. Esperou muito tempo, mas não em vão. Um dia, a situação voltou ao que era antes de sua fuga. O Grande Chefe fora de novo o responsável pela volta ao poder, não mais da pessoa do antigo Supremo Mandatário, que esse fora passado pelo fuzis, mas de um seu filho. Quando regressou, sua primeira providência foi ir ao quintal, munido do papel que conservara em seu poder. Desenterrou o baú e abriu-o ali mesmo: tudo intacto. No mesmo dia mandou lavar e passar o uniforme e a bandeira. Limpou carinhosamente os retratos. Uniformizado e conduzindo em cada mão um retrato, saiu às ruas para comemorar a vitória. Ao voltar para casa, pendurou os retratos na parede e despiu o uniforme, que guardou. Depois foi dormir, enrolado com a bandeira, como não fazia há muitos anos.


NATAL (1977)


- Extraído do meu livro de contos Não Enterrarei os Meus Mortos (1980).

Um comentário:

Mariazita disse...

Querido Francisco
Gostei muito deste seu texto.
É interessante que estou a (re)ler o livro "A casa dos espíritos", da Isabel Allende, e nesta altura (do livro) acontece exactamente o que o seu texto descreve:
A queda do poder das mãos dos "fascistas" em favor dos comunistas, para rapidamente, e em força, voltar às mãos dos fascistas.
A verdade é que isso acontece muitas vezes.
Você descreve as cenas com muito realismo.

Uma boa noite e uma semana feliz.

Beijinhos
Mariazita