terça-feira, julho 21, 2009

UM POEMA PARA A ASPIRINA

O poeta João Cabral de Melo Neto (1920-1999) padeceu a maior parte de sua vida (desde os 16 anos, segundo Joel Silveira no livro "A Milésima Segunda Noite da Avenida Paulista", Companhia das Letras/2003) de uma dor de cabeça diária. Um mal de causa jamais diagnosticada nos inúmeros e minuciosos exames feitos por Cabral, conforme ele revelou a Joel em uma entrevista de 1971. "Minha cabeça e partes vizinhas, incluindo a garganta, já foram fotografadas de todos os ângulos e esmiuçadas nos mínimos detalhes. Mas a dorzinha continua a resistir bravamente e a esconder dos médicos os motivos por que dói. E por que dói? Minha opinião é que se trata de uma dorzinha de fundo neurótico". O jornalista, no entanto, se apressa a desmentir que o poeta seja um neurótico, pois "quem conversa com João Cabral não distingue nada que lembre um neurótico. A fala é mansa, os gestos parcos, a atenção total ao que lhe dizem".
Para combater a "dorzinha", Cabral converteu-se em um consumidor persistente da aspirina. Por anos a fio ingeriu diariamente um comprimido de hora em hora do medicamento. Já em 1971 a ingestão do analgésico diminuira para um comprimido de 4 em 4 horas. É de admirar que o poeta tenha vivido até quase os 80 anos, levando em conta os efeitos colaterais e as reações adversas no seu organismo que o remédio devia causar. E essa convivência diária e por longos anos com a aspirina, como se fosse ela uma mulher que lhe minorasse a dor da alma, fez com que Cabral escrevesse um poema sobre a aspirina - uma espécie de homenagem ao medicamento. O poema chama-se "Num Monumento à Aspirina" e integra o livro "A Educação pela Pedra", publicado pela Editora do Autor em 1966, que transcrevo a seguir.
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Num Monumento à Aspirina.
Claramente: o mais prático dos sóis,
o sol de um comprimido de aspirina:
de emprego fácil, portátil e barato,
compacto de sol na lápide sucinta.
Principalmente porque, sol artificial,
que nada limita a funcionar de dia,
que a noite não expulsa, cada noite,
sol imune às leis de meteorologia,
a toda hora em que se necessita dele
levanta e vem (sempre num claro dia):
acende, para secar a aniagem da alma,
quará-la, em linhos de um meio-dia.
*
Convergem: a aparência e os efeitos
da lente do comprimido de aspirina:
o acabamento esmerado desse cristal,
polido a esmeril e repolido a lima,
prefigura o clima onde ele faz viver
e o cartesiano de tudo nesse clima.
De outro lado, porque lente interna,
de uso interno, por detrás da retina,
não serve exclusivamente para o olho
a lente, ou o comprimido de aspirina:
ela reenfoca, para o corpo inteiro,
o borroso de ao redor, e o reafina.


Um comentário:

Anônimo disse...

Obrigado pela explicação