"Decameron" é o primeiro filme da denominada "Trilogia da Vida" feita por Pier Paolo Pasolini, complementada por "Contos de Canterbury" (1973) e "As 1001 Noites de Pasolini" (1974). Das cem histórias do clássico de Giovanni Boccaccio, Pasolini aproveitou nove. Na maior parte destas ele privilegiou o erotismo em forte dosagem, com cenas de sexo explícito, onde é exposta a nudez, mas permeadas de um humor irreverente, atingindo até o escrachado. Humor em que é percebível a crítica ao clero (em dois episódios: o das freiras que seduzem um jovem humilde que vai trabalhar como jardineiro no convento e que se finge de surdo-mudo, e o do matreiro padre, que se vale da credulidade do casal, fazendo os dois crerem que ele transformaria a esposa em uma égua, para vê-la nua e se aproveitar dela, na presença do marido), à burguesia nascente, enfatizando a ganância material.
Mesmo nas histórias a que faltam o erotismo e a prática sexual, o humor comparece em meio à malícia dos personagens, à esperteza (confrontando-a com uma ingenuidade quase infantil), à cobiça e até ao escatológico, como na primeira história. Vemos aqui um Pasolini debochado, impiedoso na crítica às pessoas (de algumas destas destacando defeitos físicos) e aos costumes, mostrando-se ainda mais irreverente do que em certos filmes anteriores. Era uma nova fase de sua carreira, e, para inaugurá-la, não poderia escolher ninguém melhor do que um autor da linhagem de Boccaccio.
Entre os personagens fictícios infiltra-se um personagem real: o pintor Giotto di Bondone, interpretado pelo diretor. Contratado para pintar o interior de uma igreja, a sua presença, talvez, sirva como uma espécie de contraponto às nove histórias que compõem o filme. E é possível que ela represente uma homenagem de Pasolini a Giotto, amigo de Boccaccio, e, segundo se diz, citado por este no seu livro. Durante o processo de criação da pintura, Giotto tem sonhos com santos e até com Maria, personificada por Silvana Mangano, ainda esbanjando beleza do alto dos seus 42 anos, os quais irão lhe irão servir de inspiração.
Seja por qual motivo for, essa presença do pintor, no entanto, passa a impressão de ser um elemento estranho em um filme cuja pontaria mira nos alvos já mencionados. Ainda mais porque faz também parecer que, através dela, Pasolini pretendeu fazer uma (leve) análise do processo da criação artística (observe-se que "Decameron" se encerra com esta indagação de Giotto, depois de concluído o trabalho: "Por que criar uma obra de arte, se sonhar com ela é tão mais doce"?), análise, a meu ver, inapropriada à proposta e ao espírito do filme, que, apesar disso, não chega a ser prejudicado e constitui-se em um dos melhores do cineasta.
2 comentários:
Querido amigo Francisco
Antes da Revolução do 25 de Abril de 1974 não era permitida, em Portugal, a exibição de filmes eróticos, nem pouco mais ou menos...
Deixavam mostrar o tornozelo e olhe lá!!! :)))
Claro que depois da Revolução foi um fartar de filmes pornográficos e eróticos.
Lembro-me bem do "Decameron", e recordo-me que gostei imenso, especialmente pelo seu humor muito especial e particular. (Confesso que erotimos e pornografia não tenho paciência para ver, nem nunca tive).
Sem dúvida um dos melhores filmes de Pasolini.
Beijinhos
Mariazita
Hum me pareceu um filme interessante. Claro que já ouvi falar da obra, mas nunca tive contato. Foi daí que a Globo resolveu fazer a sua versão!? Hummm interessante... A maneira muito competente como você escreve nos dá vontade de ler e ver. Um ótimo fim de semana para você! Um abraço.
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