Cícero era o nome do meu avô paterno. Os netos não o chamavam de vovô, mas de Pai Cícero. Estive com ele apenas duas vezes, já que morávamos em cidades muito distantes uma da outra. (Meu outro avô também morava numa cidade longínqua, aliás, vizinha à de Pai Cícero.) Mas nunca me saiu da lembrança a visão de Pai Cícero trabalhando, com paciência e habilidade, na feitura de palitos. Fazia aquilo como "hobby", não como ofício, que este era exercido num cartório. Os palitos eram usados na sua própria casa e eram dados aos parentes. Quando voltávamos para a nossa cidade, os levávamos em uma quantidade razoável.
Gostava de ler. Não tenho ideia dos autores que lia, mas tenho quase certeza, por sua pouca instrução, que não eram dos maiores da literatura. E gostava de que os netos lessem para ele. Fazia-o, disso tenho certeza, para avaliar a capacidade do neto. Fui "testado" uma vez. Eu tinha uns nove para dez anos. Um tanto amedrontado diante daquele homem mirrado, mas que impunha autoridade, mesmo involuntariamente, que na cabeça daquele menino devia ter uns duzentos anos, peguei o livro e comecei a ler o trecho que ele indicou. Não me lembro se o trecho era longo, mas não devo ter lido menos que dez minutos. A uma certa altura ele me mandou parar, pediu o livro e disse que podia me retirar. Me afastei sem saber o que o Pai Cícero tinha achado da minha leitura. Só quando já estávamos de novo em casa é que ouvi do papai como tinha me saído no "teste." Pai Cícero tinha gostado, sim. Segundo ele, de todos os seus netos da minha idade, eu era o que lia melhor. Foi o primeiro elogio que recebi na vida. E dos mais sinceros, creio.
Já no físico - alto, magro, mas não muito, espigado - o meu avô materno era muito diferente de Pai Cícero. Um traço marcante de vovô Pirajá era a sua extremada religiosidade. Ao rezar o terço de todas as noites, o fazia ajoelhado sobre caroços de milho (ou de feijão, não me lembro com precisão). Se ouvisse alguém dizer, por exemplo, "ô vento danado," a advertência vinha em cima da bucha: "não diga isso, que o vento é de Deus." Já o conheci muito pobre, vivendo de uma modestíssima venda de gêneros alimentícios, mas possuíra bens imóveis, que foram lhe escapando por uma falta de tino para negócios e, também diziam, pela doação de parte deles à Igreja. Um homem bom, honesto, às vezes, doce, mas que, fácil, perdia as estribeiras. E, zangado, era outro homem, embora mantivesse o controle do uso de palavras chulas.
Em uma de suas visitas à nossa casa, ele soube que uma das minhas irmãs, que fizera um casamento desastroso, levara uma surra do cafajeste do marido. Ah, pra que foram dizer a ele! Indignado ao último grau, vovô Pirajá queria, por fina força, ir à casa da neta tomar satisfações com o marido dela. Foi um custo para o papai demovê-lo da ideia. E, na época, já estava aí pelos setenta.
Mas se o papai conseguiu dissuadi-lo daquela vez, de outra vez foi por ele dissuadido, numa ocorrência em que o envolvido era eu. Foi no mesmo dia da chegada do vovô. Eu tinha feito uma traquinagem qualquer e o papai ia me bater, e foi aí que o vovô se meteu. Primeiro, ele pediu ao papai que dispensasse a punição. Depois, como o genro se mostrasse inflexível, mudou de atitude e disse que não o deixaria fazer aquilo comigo. O papai recuou, atendeu ao sogro, e, se bem me lembro, me disse que agradecesse ao meu avô por não levar uma pisa.
À noite, no meu quarto, antes de dormirmos, vovô me aconselhou a não contrariar mais o meu pai, para não apanhar. Quando ele foi embora, fiquei com medo de que a surra tivesse sido apenas adiada. Mas a raiva do meu pai já tinha passado e a travessura ficou por isso mesmo. Obrigado, vovô Pirajá!
5 comentários:
Querido amigo, as histórias de nossa infância, de nossos avós são deliciosas. Imagino o menino Sobreira aprontando, rsrs. Mas seu avô Pirajá deveria ter dado uma surra no mané sim, ou deveriam ter prendido o cabra. Já o avô Cícero, parecia mais preocupado com o saber... Fiquei aqui imaginando sua história num mundo de costumes e geografia tão diferentes pra mim...
Um beijo!
* Sobre a foto, não sou eu não. Aquele template eu peguei na net, num site de templates e até gostaria de trabalhar mais a imagem, colocar umas borboletas, mas não deu tempo ainda, rsrs e nem sei se tenho permissão para mudar a imagem...
Querido,
É, de fato, refrescante voltar às histórias escondidas de nossa infância; é melhor ainda saber que houve pessoas que nos acompanharam... mas não nos deixarão!
Quereria eu poder lembrar-me de meus avôs... não o posso. Os perdi antes de tê-los... mas posso falar de duas Matriarcas... que criaram seus filhos, ambas com mais de oito filhos... que criaram seus filhos... com amor, sabedoria e respeito.
Bem, no recado que você me deixou pediu-me cuidado: sabe como fica o coração depois de um choque, não? Pois é... a minha carga foi alta.
Mas sei que "vai passar"...
Meu coração ainda queima e grita, mas também sonha e ri!
Adorei seu post...
Um beijo enorme
Déinha
Que bela história!
Uma delícia de ler, dá até pra imaginar seu avô Cícero....tão bom receber um elogio sincero e lá na frente saber que ele foi fundamental pra pessoa que somos hj.
Eu, por sua vez, não conheci meus avós, só tive uma avó, e essa valeu por muitas. Do signo de leão, minha avó sempre teve muita personalidade...hj ela é uma das pessoas que mais me faz falta.
Querido, obrigada por essas emoções. Um bj.
Uma história particular tão bem contada incorpora-se a imaginário de quem a ouve. Gostei muito.
Agradeço a sua delicada visita.
Beijo, carinho,
AdéliaTheresaCampos
Caro Francisco, boas lembranças de seus dois avôs. Para os netos avôs são sempre sábios velhinhos.Apesar de as vezes não convivermos muito com eles, mesmo assim, os poucos momentos ficam gravados em nossa memória, como foi o seu caso. No meu, não cheguei a ter nenhuma experiência que me recorde com os meus, pois quando comecei a ter algum entendimento, ambos já haviam falecidos. Quanto a meu neto acho que terá muito que contar, pois o mesmo mora aqui em casa e participo muito de sua vida. Um abraço do avô do Felipe,sete anos de sabedoria e muitos porquês?
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