Um belo dia apareceu na nossa cidade aquele frade baixinho, um pouco gordinho, usando óculos, com idade regulando pelos trinta anos, no máximo. Chamou logo a atenção pelo jeito comunicativo, falando com todos, até mesmo com as crianças, exibindo uma simpatia e uma descontração que não pareciam postiças. O andar era apressado e bamboleante. Essa última particularidade originou uma piada contada à mamãe por uma amiga, e pela mamãe para outras pessoas. Segundo a amiga da mamãe, o filho dela, que era coroinha, ao voltar para casa depois de uma missa celebrada por Frei Eduardo, disse a ela: "mamãe, agora chegou um frade que celebra missa dançando."
A minha casa ficava no caminho para o convento dos frades. Era raro o dia em que não via Frei Eduardo passar pela nossa rua, pois ele ia à igreja pela manhã e à tarde, como acontecia com a maior parte daqueles frades. Teve uma manhã em que ele estava retornando ao convento no momento em que eu jogava bola com um amigo, na calçada lá de casa. Ele vinha pelo meio da rua, no seu passo característico, quando a bola chutada por um de nós foi em sua direção. Pois não é que aquele frade amorteceu a bola, que, na verdade, não fora arremessada com muita força, e em seguida fez uma série de embaixadas com o pé, de nos deixar de boca aberta? Quando terminou a exibição, Frei Eduardo devolveu a bola para mim com o pé e, sorrindo, disse: "Qualquer dia desses vou bater bola com vocês."
Esse dia, para nossa decepção, nunca aconteceu, e hoje acredito que Frei Eduardo tenha dito aquilo apenas por gentileza. Em todo caso, tive um contato bem próximo com ele, os dois separados somente pela peneira do confessionário. É que por ser Frei Eduardo capaz de atos como o da exibição futebolística, inconcebível em qualquer um dos outros frades, ele foi escolhido entre os meninos para confessor. Era como se cada um de nós o tivesse na conta de um amigo mais velho, que nos deixasse à vontade para confessar os pecados, sem sentirmos vergonha ou temor. Só que comigo (não me recordo se os outros meninos tiveram mais sucesso), o desejo de ter Frei Eduardo por confessor só se realizou uma única vez.
Foi numa tarde, com a igreja quase deserta e Frei Eduardo era o único frade disponível para atender a algum esporádico pecador. Fui desfiando os pecadilhos com desembaraço e a sensação de estar à vontade, como esperava me sentir na presença de Frei Eduardo, exceto quando ele me perguntou se praticava o onanismo. Esse era sempre pra mim o momento mais difícil da confissão, o embaraço, a vergonha refletiam-se na minha voz e na minha pele e não foi diferente com Frei Eduardo.
Houve um breve silêncio depois de confessar o último pecadilho, rompido por Frei Eduardo, que perguntou se ainda tinha algo a revelar. Respondi que não, ele pôs-se a me dar conselhos, a me fazer recomendações, poucos, é verdade, consumindo menos tempo do que os outros frades. Quando fiz menção de me levantar, depois de ouvir a penitência e de receber a absolvição, Frei Eduardo me pediu para esperar e fez aquela pergunta:
"Escuta. Você é irmão da Lúcia?"
"Sou".
"Está bem. Pode ir, meu filho."
Saí da igreja com aquela pergunta me rodando na cabeça. Por que Frei Eduardo quisera saber se eu era irmão da Lúcia? Não tinha como discernir o que sentia, exceto uma sensação de estranheza, que aumentou quando cheguei em casa. Ao responder à pergunta da mamãe se me confessara, acrescentei que me confessara com Frei Eduardo e disse o que acontecera. Percebi algo diferente na expressão do rosto dela, além de um leve rubor.
Frei Eduardo foi embora, Lúcia morreu, eu cresci, arranjei emprego, casei, vieram os filhos, e mesmo com a passagem dos anos não esqueci aquele episódio da minha infância e continuei intrigado com a pergunta do frade. Já morava há muito tempo na capital quando um dia hospedei um irmão bem mais velho, residente noutra cidade, que viera de férias. Na véspera do seu retorno, fomos à noite a um bar na praia. As cervejas já se acumulavam na mesa, estávamos relembrando a nossa cidade do passado (ele a visitara depois de muitos anos ausente), de repente lhe perguntei se se lembrava de Frei Eduardo.
"Me lembro demais. Não só dele, mas de muitos daqueles frades."
O meu irmão ia começar a falar de um vigário que se tornou famoso na cidade por várias de suas atitudes, quando o interrompi:
"Você sabe o que houve uma vez em que me confessei com Frei Eduardo?"
Me lançou um olhar de vivo interesse e falei da pergunta do fradinho, do efeito que ela causara em mim até aquele momento e da reação da nossa mãe. Ele me ouvia atentamente relatar o fato e só falou quando o encerrei.
"Pois eu lhe digo que a atitude da mamãe foi perfeitamente compreensível. Você era ainda um menino que mijava na rede (sorriso do meu irmão), portanto, não sabia dos rumores que se diziam sobre Frei Eduardo com algumas mulheres da nossa cidade. Falavam até da mulher do Hercílio Campos. (Se lembra de Dona Erandir, que vivia na igreja?) Não sei se aqueles rumores tinham algo de verdade; se as pessoas interpretavam maldosamente aquele jeito de ser daquele fradinho. Não sei. Então, a mamãe, que não desconhecia aquele falatório envolvendo Frei Eduardo e algumas mulheres, ao ouvir você contar que Frei Eduardo tinha falado na filha dela, pensou logo que a Lúcia estava dando motivo para andar na boca do povo."
"E ela deu motivo para o falatório das pessoas?"
"Isso eu não sei. E é claro que as pessoas não iam falar na minha frente."
Ficamos repentinamente calados, mas por alguns segundos. O meu irmão voltou a falar.
"A Lúcia também, você deve se lembrar, era uma moça muito comunicativa. Era por isso muito popular em nossa cidade. Talvez aquele fradinho, também muito comunicativo, gostasse da nossa irmã como uma alma gêmea. Talvez não tenha havido nenhuma maldade naquela pergunta. Quê que você acha?"
Disse que não sabia o que dizer. E o meu irmão logo puxou outro assunto.
3 comentários:
Querido Francisco,
Que texto bonito!
Há frades de todo tipo... mas o mais bonito, é que nem todos são religiosos!
Sou suspeita para falar... porque encaro religião de uma outra maneira que não a tradicional, embora meu coração sempre chame a tradição. É bela e faz sentido. Mas precisa saber "sabê-la".
Querido, amei seu texto.
É lindo!
Deus abençoe.
E obrigada pelos comentários tão lindos e reais em meu blog!
Um beijo!
Meu caro Francisco
Como não vinha aqui há um tempinho, estive a ler os últimos três posts, os que não tinha visto.
O poema de fim de ano de Mário Quintana é espectacular!
Não o conhecia.
Copiei-o e guardei-o junto de vários textos que tenho de Mário Quintana, de que gosto imenso.
O post sobre os seus avós é um verdadeiro doce.
Quanta ternura e saudade se desprende das suas palavras!
Finalmente, temos Frei Eduardo.
Uma tão grande riqueza de pormenores, leva-nos a visualizar a igreja, os frades, a bola nos pés de frei Eduardo...lindo!
Eu já lhe disse que tenho um prazer enorme em vir aqui?
Acredite, ler o que você escreve sabe-me sempre tão bem!
Não posso espaçar tanto as visitas ao seu espaço -:)
Até breve
Beijinhos
Mariazita
Olá Sobreira!
Eta Frei Eduardo sapeca! Ahahaha, mas sempre tem um, eu conheci vários assim. Um dia ainda vou entregar no blog... Texto ótimo de se ler. Beijos!
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