quarta-feira, janeiro 16, 2008

OS MELHORES ANOS DAS NOSSAS VIDAS (The Best Years of Our Lives/1946)

Este artigo saiu num jornal de Natal, onde eu mantinha uma coluna semanal sobre cinema, na primeira metade dos anos 1990. Tendo revisto o filme há poucos dias, resolvi publicá-lo aqui, com algumas alterações em relação ao texto original.
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Um dos mais graves problemas da guerra é que os seus malefícios continuam mesmo depois de ela chegar ao fim. Ou seja, os seus efeitos sobre a nação envolvida no conflito, sobre a população e sobre os homens que estiveram no campo de batalha. Sabe-se como ficou quase toda a Europa depois da Segunda Guerra e das grandes dificuldades que a sua população enfrentou. Por não senti-la dentro do seu território, o povo americano sofreu bem menos os efeitos sociais e econômicos da Segunda Guerra. Já os americanos que foram lutar, muitos deles, na volta, tiveram que enfrentar uma outra guerra.
É de três desses homens que trata "Os Melhores Anos de Nossas Vidas". De volta para casa e para as suas vidas de civis, Al Stephenson (Fredric March), Fred Derry (Dana Andrews) e Homer Parrish (Harold Russel) encontram sérias dificuldades para se readaptarem à sociedade. E como se pudessem prevê-las, Al e, principalmente Homer, são tomados por uma apreensão quando o táxi em que viajam se aproximam de suas casas. (A apreensão é acentuada pelo detalhe de os rostos dos três ex-combatentes serem vistos, em duas ocasiões, apequenados no espelho retrovisor.) A do segundo é ainda maior porque ele não tem idéia de como se comportarão os seus pais e a namorada Wilma (Cathy O'Donnel), ao reencontrarem-no usando ganchos em lugar das mãos. E, infelizmente, Homer estava certo em seus receios: desde o instante em que a mãe não consegue dominar um curto soluço de dor quando olha o filho acenando com um gancho para o táxi que parte, ele passa a viver um desconforto psicológico, como uma vítima da curiosidade de adultos e crianças, e objeto de constrangimento do pai, que, na presença do filho, evita fazer coisas que exijam o uso das mãos. Somente Wilma não parece nem um pouco afetada pela mutilação de Homer, demonstrando-lhe o mesmo amor que sentia antes de ele partir.
É exatamente aí que ele tem mais sorte do que Fred, que não terá motivos de satisfação ao reencontrar a frívola esposa Marie (Virginia Mayo). Ela que, praticamente, viu o marido sair da lua-de-mel para a guerra, e, por causa do temperamento volúvel, não pôde impedir que a longa separação comprometesse o casamento, crê, ingenuamente, que a volta de Fred, envergando o vistoso uniforme da Força Aérea, possa fazê-la recuperar o amor por ele. Mas, na verdade, o seu interesse é apenas no status de Fred como um herói de guerra, cujo símbolo é representado por aquele uniforme. Quando ele troca a farda pelos trajes civis, ela sente um travo de decepção com o marido, e a partir daí, começam os problemas para ele. Frustrado por voltar ao mesmo trabalho que fazia antes de ir para a guerra, e com um salário muito inferior ao que ganhava como capitão, Fred acaba se demitindo do emprego, ao tempo em que é abandonado por Marie. Por ironia, o seu próximo trabalho é numa empresa que constrói casas pré-fabricadas, com o aproveitamento de material de sucata de aviões.
Também Al não está totalmente confortável no seu trabalho no banco. Responsável pela carteira que financia empréstimos aos desmobilizados, Al gostaria de socorrer os ex-companheiros que recorrem ao banco, mas sem poder oferecerem garantia (como fez uma vez com um deles) , mas é obrigado a se curvar às normas da instituição.
"Os Melhores Anos das Nossas Vidas" atinge perfeitamente o objetivo de expor os obstáculos enfrentados pelos civis, que foram para a guerra, em se readaptarem à vida no tempo de paz. Entre os quais a hostilidade que sofrem de pessoas que não foram convocadas para lutar e têm medo de perder o emprego para aqueles que, eles julgam, voltaram cobertos de glória. A direção de William Wyler ("O Colecionador", "Ben-Hur") é muito boa, sabendo explorar os momentos tensos, dramáticos, românticos e até os (esporadicamente) humorísticos. Ele adota, em quase todo o filme, o método de usar a câmera muito próxima dos atores, como se pretendesse conquistar a cumplicidade, a adesão do espectador. A qualidade da sua direção faz-se sentir também no rendimento dos intérpretes, todos muito bem, a começar pelo tarimbado e excelente Fredric March, e até Harold Russel, que nunca havia representado. Os dois, aliás, ganharam o Oscar de Melhor Ator e Melhor Ator Coadjuvante.
Pena que o vigor e a firmeza do roteiro amoleçam no final. O casamento de Homer e Wilma parece implausível, depois de se ver que Homer, consciente de que o amor deles não poderia dar certo, tenta esquivar-se ao assédio da namorada. É uma solução que dá a impressão de ter sido arranjada para levar uma mensagem de esperança aos inúmeros mutilados de guerra, entre os quais se incluía o próprio Russel, que teve as mãos decepadas durante um treinamento de batalha. E a "concessão" do final não pára por aí. O ardente beijo trocado entre Fred e Peggy (Teresa Wright), a filha de Al, depois da cerimônia, prenuncia outro casamento.
Apesar desse deslize, o filme se mantém de pé por todas as qualidades já apontadas.

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