domingo, novembro 27, 2005

HISTÓRIA REAL


Este texto foi publicado há mais de um ano em um site sobre cinema (o nome não me ocorre, no momento), quando eu ainda não tinha blogue. E é apresentado do mesmo modo como saiu naquela página.
Nesse filme de 1999, disponível em DVD, David Lynch conta a história verídica de Alvin Straight, um homem velho e doente, que viaja centenas de quilômetros, dirigindo um carrinho cortador de grama, para visitar o irmão convalescente de um acidente vascular, com o qual está de relações cortadas há mais de dez anos. É uma história plena de calor humano, em que participam valores , como a amizade, a solidariedade, a bondade e uma certa ternura, mas tudo isso exposto de maneira comedida e sóbria, sem exageros. E aí vale perguntar o que fez Lynch se interessar por um assunto tão estranho ao seu universo temático e estilístico. Onde aqui o diretor de O Homem Elefante, Veludo Azul e Coração Selvagem, que levava o espectador ao mal-estar, ao incômodo, à perturbação, ao mostrar o grotesco, o horrendo, a crueldade e a violência em doses cavalares? Em nenhum momento. Ou, talvez, na cena em que uma mulher atropela mortalmente um veado. É uma cena dramaticamente muito forte, que expõe o descontrole emocianal da mulher. Seu desabafo à beira do histerismo chega a incomodar (fazendo lembrar um pouco o Lynch de outros carnavais), mas, ao encerrá-lo, ficamos sabendo do seu amor por aquela espécie de animal e acabamos sendo compassivos com ela.
O filme, repetimos, respira calor humano através de seus personagens, mas sem forçar a barra para conquistar a cumplicidade do espectador. Como acontece com as grandes obras, tudo é feito sem abuso de gestos e de expressões faciais, com exceção da cena acima citada, e com delicadeza e sensibilidade. Essa contenção, esse comedimento se espalham pelos diálogos, sobretudo quando intervém Alvin, que conta com a boa interpretação de Richard Farnsworth. Quando, por exemplo, ele retorna do exame médico a que se submeteu, a filha Rose (Sissy Spacek) lhe pergunta o que o médico achou dele. Alvin responde: "Ele achou que eu estou bem". Na verdade, ele não está bem, mas prefere não se estender sobre o assunto.
E que personagem esse Alvin Straight! Teimoso, obstinado, às vezes, rude, mas sensível, como o demonstra no diálogo com aquele outro velho, também combatente na Segunda Grande Guerra, e no encontro com a moça grávida que está fugindo de casa. Vive com a filha, a quem trata com a brandura e a tolerância de quem lida com uma pessoa que sofre de um certo retardo mental e que, ainda por cima, perdeu a guarda dos filhos para o Estado, por causa de um acidente doméstico, do qual, no entanto, não teve culpa. Sua obstinação em visitar o irmão doente e promover a reconciliação entre eles é comovente, sem que Lynch precise esfregar-nos isso na cara.
E o reencontro de Alvin com Lyle (Harry Dean Stanton) é mostrado sem arroubos, sem lágrimas, sem qualquer sombra de melodrama ou de sentimentalismo. Apenas se vê Alvin, do lado de fora da casa, gritar o nome do irmão, que lhe responde de dentro da casa. A imagem final mostra os dois sentados à varanda da casa, mudos, contemplando as estrelas, como tantas vezes o fizeram quando eram jovens.

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