quarta-feira, novembro 30, 2005

O MASCARADO

Estava, com alguns amigos, no velório de uma pessoa de nossas relações. Num dado momento, percebemos que algo inusitado estava ocorrendo, por causa de uma certa agitação das pessoas mais afastadas de nós. Pude observar que alguns dos presentes não conseguiam manter a compostura exigida para a ocasião e riam. De nada valeram as minhas palavras de censura a curiosidade dos amigos era mais forte e logo e logo o nosso grupo estava desfeito. Acabei levado por eles. Qual não foi o meu espanto, quando descobri a razão de todo o alvoroço: perto do caixão, conversando com a viúva e outros parentes do morto, vi um homem vestido de preto e cujo rosto estava encoberto por uma máscara. Usava uma máscara preta, para combinar com o terno, imaginei, e que se adequava à lugubridade da ocasião. Pelo menos, a mim me pareceu, mas somente a mim, pois as demais pessoas ali presentes (inclusive as que formavam a roda em que estava e que há bem pouco tempo falavam compungidamente da morte do amigo) viam na presença do mascarado motivo para diversão. Os próprios familiares do morto devem ter mantido, à custa de muito esforço, a compostura da ocasião. Eu estava movido por uma indominável curiosidade a respeito daquele estranho, e, quando ele se retirou, alvejado por olhares e risos sarcásticos, andei perguntando por ele, mas ninguém o conhecia. Realmente eu fiquei muito impressionado com o homem. A visão de sua soturna máscara não me saía da cabeça. A todo momento ela surgia à minha frente, impedia-me de me concentrar no meu trabalho, na leitura, num programa de tevê. Falei do caso a diversas pessoas, na esperança de alguma delas conhecesse o homem e a razão de ele usar a máscara, em vão - de todas ouvi a mesma resposta de que nunca o viram, invariavelmente acompanhada de uma boa risada. Disse para mim mesmo que nunca mais o veria, mas a sua imagem ficaria retida na memória, do mesmo modo que, por uma impressão diversa, conservamos a imagem de uma bela mulher, a quem vemos uma única vez na vida.
Felizmente me enganava. Uma tarde o reencontreu num banco. Eu estava numa fila quilométrica, aguardando impacientemente a vez de ser atendido, quando percebi que, de repente, as pessoas das outras filas tinham desviado a atenção para o lado da minha fila. Devia estar ocorrendo algo muito engraçado, as pessoas não olhavam apenas com um vivo interesse, mas estampavam um sorriso zombeteiro nos lábios. Impelido por uma curiosidade natural, virei-me em direção ao final da fila, e quem estava lá? Ninguém menos do que o estranho homem que encontrara no velório. Apesar de olhar com discrição, pude observar que não usava a mesma máscara. Usava dessa vez uma colorida, de feição inspirada na forma do rosto de um palhaço. Cada vez mais impressionado pelo comportamento do homem, perguntei aos vizinhos próximos sobre ele, mas nenhum deles o conhecia. É um doido a mais nesta cidade já cheia de doidos, comentou o primeiro a quem consultei. Depois de ser atendido, saí por entre a minha fila e a vizinha, curioso para ver o mascarado de perto. É obvio que não podia ver-lhe o rosto, para fazer uma avaliação de sua idade, mas, não sei por quê, supus que não fosse mais jovem. Tinha um porte elegante, a cabeça ereta, o que, quando sentado, podia dar às pessoas a falsa impressão de ser alto. Essa sua postura conferia-lhe um ar de altivez, que o fazia ignorar os olhas zombeteiros.
Nosso terceiro encontro aconteceu numa festa de aniversário, à qual não queria ir, por não conhecer o aniversariante, mas um amigo tanto insistiu que acabei sendo levado por ele. Como das vezes anteriores, o mascarado apareceu bem depois de mim e, do mesmo modo, sua chegada provocou um alvoroço nos convidados.Por estar num ambiente festivo, estava bastante alegre. Passou a maior parte do tempo num pequeno grupo, do qual participava o anfitrião, conversando e rindo, empunhando um uísque, parecendo íntimo de todos. Estava usando uma máscara azul-celeste e me ocorreu que lera, não sabia onde, que o azul tem uma conotação de alegria e satisfação, indicando que, se alguém o escolhe, é por estar de bem com o mundo e os seus semelhantes. Contei ao amigo que já o encontrara num velório e num banco, cada vez com uma máscara diferente, como se a colocasse de acordo com o ambiente ou a natureza do evento. Revelei a minha curiosidade em saber a razão daquilo, mas ninguém, a quem perguntei, conhecia o homem. Se quiser, eu te levo ao Edmundo, quando ele estiver só, e você pergunta a ele, ofereceu-se o meu amigo. Eu falei tá legal e, logo depois, ele se afastou em direção a um outro grupo. Continuei no meu canto, a observar o mascarado.
Em dado momento, vi-o deixar o grupo e caminhar para o lado em que me encontrava. Passou perto de mim e me cumprimentou, tudo bem? Me virei e acompanhei-o até desaparecer da minha vista. Supus que ia ao banheiro e fiquei na mesma posição, aguardando que ele retornasse.Um pouco antes tinha decidido satisfazer a intensa curiosidade com o próprio mascarado. Ansioso, vi-o andar de novo na minha direção e, ao chegar perto de mim, perguntei-lhe se podia me dar a sua atenção por um minuto. Por uma hora, se for preciso, amigo, respondeu , afável, o que reforçou a minha disposição. Comecei me desculpando pela inconveniência de estar invadindo a sua intimidade, para satisfazer uma enorme curiosidade. (Estava tão perto dele que poderia tocá-lo, olhando fixamente nos olhos restringidos pela máscara, e pareceu-me ver neles um ar de gravidade que denunciaria a reprovação do homem à minha bisbilhotice.) É que desde a primeira vez que o vira num velório, não tinha deixado de pensar um só instante na sua figura. Tentara me valer dos amigos, mas nenhum o conhecia, desse modo, embora constrangido, me via obrigado a dirigir-me a ele. Ele se incomodaria em atender a minha curiosidade? A respeito de quê? Senti um tom animoso na voz, o que confirmava a censura que julgara ver-lhe nos olhos. Mas não podia mais recuar e disse que gostaria de saber por que usava máscara. E o sr por que não a usa? Foi com essa pergunta que respondeu à minha, e, com um pedido de licença, retirou-se e foi reunir-se com os amigos.
Fiquei meio estonteado com a reação do homem. Esperava até mesmo uma grosseria, depois que o percebi aborrecido com a minha intromissão - algo do gênero de por que o sr não se importa com a sua própria vida e deixa a dos outros em paz? Jamais aquelas palavras: e o sr por que não a usa? O curioso é que não fiquei aborrecido, e nem mesmo frustrado, por continuar ignorando a razão da conduta daquele excêntrico, tão inesperada fora a sua reação. Permaneci um pouco no mesmo lugar, a observá-lo. Ele recuperara a alegria e o humor perdidos durante o nosso breve encontro. Depois resolvi circular um pouco pela casa. Antes de sairmos, o amigo voltou a se oferecer para me levar ao anfitrião, a fim de me informar sobre o mascarado, mas disse-lhe que não estava mais interessado. E com o tempo foi me arrefecendo o interesse por ele e hoje, quando o encontro, a sua figura não me chama mais a atenção.
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Extraído do meu livro "Clarita" (1993) , este conto foi reduzido para se adequar às dimensões desta página. Acredito que a redução não tenha prejudicado o texto.

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